Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 281 - 30 de março a 3 de abril de 2005
Leia nesta edição
Capa
Unicamp, reitor à vista
Cesar Lattes, um cientista
   brasileiro
Cabeça no cosmo
Ciência e política
Razões da coincidência
Siarq: memória científica
Ônus da fama
Volta à USP em 1960
O adeus de um parceiro
Fotografias revelam as paixões
Edison Shibuya
Mundo das interações
Damy detectou talento precoce
Lattes: um sonho
Um ciclo se fecha. Fica a lição
O Lattes que não está
   na plataforma
O porão e as alturas
Histórias reais
Martha, o esteio.
  Às filhas, o saber
 

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Um experimental no
mundo das interações


AMÉLIA HAMBURGER

"Sempre achei que só se pode melhorar a qualidade de vida de uma nação formando cidadãos pensantes. Isso significa educação primária, essencialmente, que só pode ser feita com bons professores secundários. Para ter boa educação secundária, precisamos de bons professores universitários. E para isso necessitamos de pesquisa. A sensação que tínhamos era que o Brasil poderia dar um bom pulo se houvesse gente bem treinada e capacitada." Cesar Lattes, 1995 1

Cesar Lattes nasceu em Curitiba, Paraná, no dia 11 de julho de 1924, filho de imigrantes, Giuseppe Lattes, natural de Turim, e Carolina Maroni, de Alessandria, no Piemonte italiano. Foi casado com Martha Siqueira Neto, pernambucana, matemática, companheira de mais de cinqüenta anos, falecida em 2003. O casal tinha em sua casa, em Campinas, apoio e afetividade de uma família grande, as de suas quatro filhas, nove netos.

Cada um de nós, pesquisadores, o homenageamos em nossos Currículos Lattes, criados no CNPq como que um símbolo do que representou para a física, para a ciência brasileira, sua dedicação ao trabalho de pesquisa e de ensino, continuamente, ao longo de sua longa vida, sua prática do pensamento crítico na acepção da palavra como pensamento original, capacidade de discernimento, de imaginação e de coragem de descobrir coisas novas. Essa seria uma plataforma básica para os candidatos aos cargos e compromissos dos cientistas brasileiros, com a responsabilidade de garantir a existência e continuidade de umCesar Lattes em laboratório do Instituto de Estudo dos Metais, na Universidade de Chicago, em 1956: passagens por universidades norte-americanas na segunda metade da década de 50 pensamento científico em diálogo internacional permanente.

Assim foi sua carreira. César Lattes formou-se na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, em 1943. Imediatamente se tornou assistente de Gleb Wataghin, conhecido de seu pai e grande incentivador de sua ida para a física. Trabalhou inicialmente em física teórica com Wataghin e também com Schenberg e Schutzer para logo se dedicar à física experimental. Realizou pesquisas sobre Raios Cósmicos, sugeridas por Gleb Wataghin - linha de pesquisa que Wataghin, Marcello Damy e Paulus Pompéia, depois Giuseppe Occhialini, iniciaram no Brasil com imediato sucesso internacional.

Em 1946 Lattes foi trabalhar, com Occhialini, no Laboratório de Cecil Powell na Universidade de Bristol, na Inglaterra. Utilizavam emulsões fotográficas, modificadas por sugestão da equipe de Powell e do próprio Lattes, para detecção de partículas nucleares, que deixam um traço na emulsão transparente, depois de revelada. Foram expostas chapas por Occhialini durante suas férias nos montes Pirineus, na França, a uma altitude de 2.800 metros. Em Bristol verificaram que apareciam traços de partículas antes desconhecidas. Lattes então decidiu ir para montanhas mais altas, numa estação meteorológica em Chacaltaya, nos Andes, a cerca de 5.000 metros, na Bolívia, onde o número de raios cósmicos é maior. Expostas as chapas lá, a descoberta foi amplamente confirmada. Eram os descobridores de uma importante nova partícula, o méson pi, ou pion. Anos depois, Powell receberia o prêmio Nobel pela descoberta.

Lattes, ainda em 1948, percebeu que o acelerador de partículas do Laboratório de Radiações de Berkeley, na Califórnia, Estados Unidos, nas experiências com reações nucleares que Eugene Gardner conduzia, tinha energia suficiente para produzir mésons pi. Poucas semanas depois de chegar a Berkeley, com bolsa da Fundação Rockefeller, Lattes detectou e identificou os mésons que estavam mesmo sendo produzidos.

Essas descobertas de Lattes, com Occhialini e Powell na Inglaterra, e com Gardner nos Estados Unidos, tiveram repercussão na imprensa internacional, e grande repercussão na imprensa brasileira. Ao voltar ao Brasil, Lattes foi considerado herói nacional.

Para a USP, e particularmente para a Faculdade de Filosofia, foi evidência do sucesso do empreendimento de Wataghin, a demonstração internacional da viabilidade de uma universidade de pesquisa no Brasil.

O fim da guerra contra o eixo nazi-fascista marca uma era de ativação geral das consciências para o desenvolvimento das ciências e de aplicações. Não é por coincidência a existência de discussões nos institutos, universidades, e, em geral, nos segmentos produtivos da sociedade paulista que levaram a Artigo, na Constituição Estadual de 1947, que dá os princípios da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, a Fapesp.

A volta de Lattes foi fator importante para a implantação, em 1951, da primeira agência, ao nível da Presidência da República, para apoio às atividades de pesquisa: o Conselho Nacional de Pesquisas, CNPq. No mesmo ano de 1951, pela iniciativa principalmente de Leite Lopes e de Lattes, com apoio de personalidades políticas do Rio de Janeiro, foi fundado o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, sendo Lattes seu primeiro diretor científico. O CBPF foi um dos principais centros onde se consolidou a pesquisa em física no país, com pessoas vindas de todo o Brasil.

César Lattes se dedicou durante muitos anos ao CBPF, compondo a sua diretoria científica. No Rio de Janeiro foi ainda professor titular de duas cadeiras no Departamento de Física da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil – a de Física Atômica e a de Física Nuclear – e, após a criação da Universidade do Rio de Janeiro, participou da instalação do Instituto de Física na Ilha do Fundão. Uma contribuição sua à UFRJ foi a montagem do Laboratório de Geocronologia, nas dependências do atual Departamento de Física dos Sólidos do Instituto de Fisica. Em documentário feito pelo cineasta José Mariani, Lattes deixa transparecer certa amargura pela sua saída do Rio de Janeiro.

Depois de estada de alguns anos em laboratórios nos Estados Unidos no fim da década dos anos cinquenta, em 1960, a convite de Mário Schenberg, Walter Schutzer e José Goldemberg, Lattes voltou à USP, contratado para reger a cátedra de Física Superior. Implantou um Laboratório de Emulsões Nucleares para analisar grandes câmaras de chapas expostas em Chacaltaya e organizou um grupo de pesquisas com jovens colaboradores.

Iniciou, em 1962, a colaboração Brasil-Japão de pesquisa em raios cósmicos, proposta em carta de Hideki Yukawa, o prêmio Nobel, teórico japonês que previu a existência das partículas mesônicas como responsáveis pela coesão nêutron – próton nos núcleos atômicos. Essa colaboração dura até hoje, no Laboratório da Unicamp. Em 1967, depois de se preparar para concurso de efetivação na cátedra, não competiu com J. Tiomno.

Lattes foi então convidado para a recém-criada Universidade de Campinas, por Marcello Damy, que organizava o Instituto de Física. Implantou o Departamento de Raios Cósmicos e o Laboratório de Emulsões Nucleares, onde se realizaram muitos trabalhos em colaboração internacional, especialmente com os físicos japoneses, destacando-se Yoichi Fujimori e Shunichi Hasegawa, entre eles. Além de resultados importantes, principalmente sobre as novas partículas formadas a muito altas energias, os hadrons, a convivência dos físicos japoneses entre nós, foi valiosa em várias dimensões de sua cultura científica, inclusive sobre a história da ciência. Essa interação merece estudos especiais.

Na Sociedade Brasileira de Física, Lattes participou das reuniões e da criação da Revista Brasileira de Física, em 1969-70. Entre os físicos mais velhos que, em geral, temiam que a produção científica brasileira não fosse ainda suficiente para sustentar uma revista, foi dos poucos que deram forte apoio. Hoje a Brazilian Journal of Physics é revista indexada internacionalmente.

Há vários documentos importantes que registram a presença bem humorada de Lattes, sua ironia inteligente, às vezes sentida como agressiva, sua dedicação ao trabalho e preocupação com a ciência no Brasil, seu espírito cooperativo, sua significativa carreira científica. É importante para tomarmos consciência da identidade cultural brasileira preservar, divulgar, valorizar a documentação. Parodiando Lattes, “sei que sem a história não há realidade objetiva”, sem a história não há identidade, o caminho da racionalidade.

Uma das características de César Lattes é certamente sua liberdade. Agora, nesta homenagem, ouso anotar, livre e brevemente, alguns pensamentos sobre ele. As idéias da física estão impregnadas na sua ligação no mundo. Tem visão eminentemente quântica: a descontinuidade. Pensamento de Wataghin, Bohr, Dirac. Partículas que se individualizam marcando sua presença nos detetores. Desconfia dos quarks, disse que não se mostram, que se individualizam no confinamento. Seriam limites a serem compreendidos. Um experimental que molda o mundo das interações, que espera ainda que se consiga imaginar como trazê-las à presença revelada.

Sempre coerente com dedicação enorme ao trabalho. Mobilizador do pensamento com idéias nem sempre aceitas e compreendidas. Requerem imaginação e falta de preconceito para poder assimilá-las, inventar-lhes um significado. "As máquinas também têm vontade", disse em entrevista televisiva a Chico Pinheiro. "Têm sua inércia" diz um colega imaginativo e sábio a quem conto a provocação. Duas características: uma é a ligação profunda, sentir o mundo real do pensamento científico, teórico e experimental numa só existência; outra é a da personalidade de desempenho atuante, tenaz, corajosa, impregnada de contradições expostas, mesmo que contundentes, para serem enfrentadas.

Há pouco tempo me telefonou. Queria que levássemos um de seus cinco microscópios que ficaram em São Paulo para ele ler, em sua casa, emulsões expostas e não estudadas. Essa empreitada quase deu certo, mas tinha baixa probabilidade de acontecer.

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1 - Em entrevista a Micheline Nussenzveig, Cassio Leite Vieira, Fernando de Sousa Barros, Neusa Amato e Alfredo Marques, para Ciência Hoje, 1995. Em "Cientistas do Brasil - Depoimentos SBPC", Org. e Ed. de Vera Maria de Carvalho e Vera Rita

Amélia Império Hamburger é professora e pesquisadora em física da USP. Atualmente atua em trabalhos interdisciplinares nas áreas de História e Filosofia da Física e Psicologia do Desenvolvimento como professora colaboradora no Departamento de Física Geral do Instituto de Física.

Agradeço contribuições de Igor Pacca, Ernst W. Hamburger e Fernando de Sousa Barros.

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