Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 281 - 30 de março a 3 de abril de 2005
Leia nesta edição
Capa
Unicamp, reitor à vista
Cesar Lattes, um cientista
   brasileiro
Cabeça no cosmo
Ciência e política
Razões da coincidência
Siarq: memória científica
Ônus da fama
Volta à USP em 1960
O adeus de um parceiro
Fotografias revelam as paixões
Edison Shibuya
Mundo das interações
Damy detectou talento precoce
Lattes: um sonho
Um ciclo se fecha. Fica a lição
O Lattes que não está
   na plataforma
O porão e as alturas
Histórias reais
Martha, o esteio.
  Às filhas, o saber
 

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Martha, o esteio.
Às filhas, o saber

MANUEL ALVES FILHO

Cesar Lattes tinha uma relação de amor, mas também de extrema dependência da mulher, de acordo com as filhas e amigos. Martha era o esteio dele, como todos definem. "Lattes foi um homem devotado à fisica vinte e quatro horas por dia. Parte desse mérito foi de dona Martha, que o aliviou do ônus das atenções a tantos problemas do cotidiano. Foi uma companheira excepcional, inspirando confiança, segurança e esperança mesmo nas situações mais adversas. Pessoa inteligente, afetuosa e sobretudo amiga, dona Martha teve papel muito importante na vida de Lattes", afirma Alfredo Marques, físico, amigo e co-fundador do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) ao lado do ex-docente da Unicamp.
No destaque, Martha e Cesar viajam em lua-de-mel, em 1948; acima o casal em 1956

Segundo as filhas, Lattes e Martha tratavam-se por "minha filha" e "meu filho". Irreverente, temperamental e provocador, o físico costumava acordar a mulher em plena madrugada para lhe pedir um favor: "Diga-me algo interessante, minha filha". Para chamar a atenção, ele também a despertava para queixar-se de um mal-estar qualquer. Martha, preocupada, perguntava se ele desejava um chá, ao que Lattes assentia. A esposa então se levantava e rumava para a cozinha para preparar a bebida do marido. Ao retornar ao quarto, porém, encontrava-o sempre dormindo. "Ele não pegava um copo d'água. Às vezes, ele chegava a pedir para que minha mãe lesse o jornal e depois lhe contasse as novas", relata a filha Maria Tereza.

Maria CarolinaMaria LúciaMaria CristinaMaria Teresa


Bodas de ouro em 1998Lattes também gostava de fazer brincadeiras com a mulher. Numa ocasião, ele decidiu sair com um dos netos para um passeio de carro. Por azar, o veículo entrou em pane bem diante de um motel. O cientista rumou então para o empreendimento, de onde telefonou para Martha. "Minha filha, adivinhe onde estou? Estou num motel. E acompanhado do Thomaz", disse, para em seguida entregar-se às gargalhadas. As filhas contam que não tinham, até a adolescência, dimensão da importância do pai. Isso se deve à maneira como foram criadas. De acordo com Maria Tereza, tanto Lattes quanto Martha jamais usaram a fama do cientista para facilitar-lhes as vidas. "Papai era muito simples", reforça Maria Lúcia.

E era mesmo, conforme Ana Maria Ribeiro de Andrade, pesquisadora do Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST), unidade vinculada ao Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), cuja sede está no Rio de Janeiro. Ela conheceu Lattes na condição de historiadora, em virtude da pesquisa que desenvolveu para a sua tese de doutorado. O físico, segundo ela, era um dos protagonistas do processo histórico que ela estudava. "Por conta do meu trabalho, nós nos tornamos amigos. Quando podia, eu o visitava em Campinas. Quando vinha ao Rio, ele sempre dava um jeito de me ver". Embora fosse o físico brasileiro de maior reconhecimento internacional, afirma Ana Maria, Lattes tinha uma atitude "franciscana" quando faziam algum comentário elogioso em relação à sua contribuição para a ciência.

Casal com as filhas e netos, em 1980Extremamente sensível, Lattes era como uma criança que não conhecia o que era a vaidade, na visão da historiadora. Em compensação, era muito irreverente e, como já dito, temperamental. "Ele sempre falava o que lhe vinha à cabeça, sem medir as conseqüências. Isso fez com que colecionasse alguns desafetos", diz. Uma informação curiosa fornecida por Ana Maria diz respeito à paixão do físico pelas orquídeas. Ele as cultivava no sítio que tinha em Itatiaia, no Rio de Janeiro, recanto no qual costumava passar férias com a família. "Lattes gostava de presentear as mulheres com essas flores. Eu mesma recebi algumas". Segundo ela, o cientista revelara o desejo de usar a propriedade para abrigar uma espécie de organização não-governamental, que se ocuparia de executar ações voltadas à preservação ambiental. Infelizmente, ele não teve tempo de concretizar o projeto.

Pai - De acordo com Maria Lúcia, Lattes foi um pai muito carinhoso, a seu modo. Ele jamais foi buscar uma das filhas na escola. Em compensação, não media esforços para garantir o bem-estar das Cesar Lattes e as quatro filhas em 2002: pai investia no conhecimentoquatro, o que incluía a criação de condições para que aprimorassem o conhecimento. Todas elas ganharam, quando crianças, edições completas da Enciclopédia Britânica. "Mesmo depois de formadas, ele nos presenteava com assinaturas de revistas relativas às nossas áreas de atuação. Eu mesma ainda recebo uma publicação que trata de arquitetura", afirma Maria Tereza, que obviamente é arquiteta. O físico, destaque-se, tinha um enorme orgulho das filhas. Vivia ressaltando suas qualidades profissionais, o que muitas vezes o fazia cometer exageros. "Acho que ele me considerava tão brilhante quanto Picasso", diverte-se Maria Carolina, artista plástica.

Maria Cristina por Portinari: presenteAinda em relação ao carinho que nutria pelas filhas, Lattes procurava valorizar ao máximo as produções de cada uma, por mais prosaicas que fossem. Tudo o que preparavam era excelente, fosse uma refeição trivial ou um humilde chinelo de espuma. "A comida podia até estar ruim, mas ele comia tudo e ainda elogiava. Quanto ao chinelo, ele usava até acabar", recorda Maria Carolina. Por conta dessa simplicidade, certa feita o físico ofereceu a uma das filhas o que considerava ser um "singelo" presente. Lattes acompanhara Maria Carolina ao cinema, para assistir ao filme "O Circo". Como Maria Cristina não pudera ir, ele resolveu compensá-la com um retrato. A obra foi encomendada a um artista amigo, de nome João Cândido Portinari. "Até hoje me arrependo por não ter trocado de lugar com minha irmã", lamenta, em tom de brincadeira, Maria Carolina.

Mais dois exemplos da simplicidade de Lattes? Pois bem, um dia ele telefonou para Maria Lúcia, que morava em Paris, onde fazia o doutorado, para dizer que a visitaria em breve. Como precisava seguir para Turim, para participar de um importante congresso na Academia de Ciências, faria antes uma escala na capital francesa. E assim foi feito. No dia do evento científico, ele se despediu da filha e rumou para a Itália. Algum tempo depois, em novo contato telefônico, Maria Lúcia pergunta ao pai como fora o congresso. "Ele me respondeu que não foi porque o sapato tinha apertado o seu pé. Preferiu ficar no hotel", relata. O outro episódio envolveu o porteiro do prédio onde o cientista morava. Como precisava assinar um cheque e estava sem os óculos, Lattes acabou pedindo a órtese do funcionário emprestada. Gostou tanto que não a devolveu mais.

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