Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 281 - 30 de março a 3 de abril de 2005
Leia nesta edição
Capa
Unicamp, reitor à vista
Cesar Lattes, um cientista
   brasileiro
Cabeça no cosmo
Ciência e política
Razões da coincidência
Siarq: memória científica
Ônus da fama
Volta à USP em 1960
O adeus de um parceiro
Fotografias revelam as paixões
Edison Shibuya
Mundo das interações
Damy detectou talento precoce
Lattes: um sonho
Um ciclo se fecha. Fica a lição
O Lattes que não está
   na plataforma
O porão e as alturas
Histórias reais
Martha, o esteio.
  Às filhas, o saber
 


7

O insondável e as
razões da coincidência



Henrique Lins de Barros

Garoto de calça curta, ainda com uns 7 anos e cursando o primário, tive de fazer um trabalho sobre os brasileiros ilustres. Tratava-se de um álbum com fotografias daqueles que haviam marcado o seu nome na História do Brasil, dando-nos este sentimento de integração e de nação. Era claro para mim e para todos os meus colegas que deveríamos encontrar ilustrações de D. Pedro II, da Princesa Isabel. Caxias, Tamandaré e Cabral seriam indispensáveis. Tiradentes era um nome sagrado, de certa forma dividindo o espaço com o de Santos Dumont. Para mim, porém, o único nome que poderia ser lembrado era o de Cesar Lattes.

Lattes freqüentava minha casa e eu o conhecia bem. Tinha uma certa intimidade. Minha família estava ligada à criação do CBPF e as discussões sobre a física no Rio de Janeiro e no Brasil nos primeiros anos da década de 1950 eram comuns na hora do jantar. E Lattes era o grande nome. O maior de todos, o mais importante, que havia feito a descoberta do méson pi, o que, para mim, não significava nada, exceto o fato de ser a coisa mais importante que poderia haver. Somente um gênio poderia descobrir uma coisa invisível. E meu plano estava traçado. Meu álbum seria aberto com uma fotografia de Lattes, com a legenda “descobridor do méson pi”. Eu estava certo de que nem a professora saberia dizer o que aquilo queria dizer.
Lattes em momento de lazer na década de 40, na Inglaterra: a natureza estava entre seus assuntos preferidos nas conversas (Acervo de Cesar Lattes)

Sem muita cerimônia pedi, num bilhete mal escrito, uma fotografia para o Lattes. Meu pai serviria de mensageiro. E foi o que aconteceu. Exatamente o que ocorreu, só que um pequeno detalhe deixou-me atônito. Cerca de uma semana depois do pedido feito recebi um envelope de Lattes, com meu pai novamente no papel de mensageiro. No seu interior a foto desejada com uma dedicatória me tratando com muito respeito. Algo como “para o Enrique, uma lembrança do amigo... Cesar”. E aí eu me vi diante de algo novo. Lattes havia escrito o meu nome sem o H. Era verdade que o H era mudo, não se pronunciava, mas era o meu H. E Lattes, o descobridor de uma coisa que ninguém podia ver, não via o meu H mudo e havia errado o meu nome. Fiquei inseguro de entregar um trabalho com aquele erro. Certamente, a minha professora não aceitaria ver um erro ortográfico daquela magnitude. Mas entreguei assim mesmo, e tirei a maior nota.

Lattes vinha à minha casa vez por outra. Numa ocasião ele entrou em nosso apartamento com um desafio. Dizia ser capaz de quebrar uma régua de madeira com uma folha de jornal. Em casa tinham muitas réguas de madeira. Coisas de meu pai. E nós, eu e meus irmãos, estávamos seguros de que Lattes mentia. Como quebrar uma régua com uma folha de jornal? E a demonstração foi feita com sucesso. Lattes esticou a folha sobre a régua que estava na borda de uma mesa. Com um golpe seco, a régua quebrou-se. Ficamos tão interessados que repetimos a mesma experiência com todas as outras réguas.

Visitávamos Lattes de vez em quando em seu apartamento próximo à Lagoa RodrigoObra de Portinari pertencente ao acervo de Lattes: sem saber, artista retratou episódio dramático da infância do cientista (Fotos: Antoninho Perri) de Freitas. Em algumas ocasiões, Martha nos dizia que ele não estava bem. Nestes dias somente meus pais iam conversar com ele, enquanto eu e meus irmãos brincávamos no corredor de entrada do apartamento térreo.

Quando larguei o meu curso de engenharia, em 1966, e após uma infrutífera aventura na música, decidi ingressar na física. Lattes me chamou e disse: “Olha, tudo o que eu fiz não vale uma sinfonia de Mozart”. Eu pensei, sem qualquer modéstia: nunca pensei que poderia chegar aos pés de Mozart ou de Lattes. E continuei com a minha intenção de fazer física.

Já formado e trabalhando como pesquisador do CBPF tive alguns encontros com Lattes. Ele e os comentários agudos. Ele e a sua visão mordaz. Como diretor do Museu de Astronomia, eu o recebi umas duas vezes. Com ele conversava sobre a vida e a morte, sobre a física e a natureza. Falávamos sobre as nossas preocupações e nossos receios. Sempre conversas um pouco tensas, um pouco distantes, e, ao mesmo tempo, muito afetivas.

E meu último encontro com Lattes foi em Campinas. Martha e meus pais já haviam falecido. Eu e ele vivíamos esta estranha sensação de ausência que a morte traz. Fui visitá-lo graças ao amigo comum, Edison Shibuya. Lattes, da varanda de sua casa, nos viu chegando e com o controle remoto do portão abriu toda a entrada da garagem enquanto dizia, no seu jeito seguro: para um Lins de Barros este portão é pequeno. Claramente eu estava ali como representante de meus pais e meus tios, amigos próximos de Lattes, que partilharam com ele o ideal de se fazer uma ciência importante no Brasil. E Lattes conversou comigo sobre a morte e a vida, sobre meus pais, sobre Martha e a falta que ela fazia.

Conversou sobre algo maior que existe e nós não temos conhecimento. Falou sobre suas preocupações científicas, suas questões envolvendo as medidas da velocidade da luz, sobre Einstein e Lorentz. Comentou aspectos do meu trabalho em biomagnetismo e de minhas aventuras no campo da história da técnica e da ciência. Falou sobre as “coincidências” com as quais convivemos sem encontrar explicações. Falou sobre experiências de infância e mostrou-me um desenho de Portinari que retrata fielmente um momento dramático da infância narrado por ele para o pintor. O estranho: Portinari havia desenhado com detalhes uma situação que não havia vivido. Mostrou-me uma carta psicografada de Santos Dumont endereçada a ele.

E voltou a falar sobre a vida e a morte... e o que vem depois. Na despedida nos olhamos profundamente. De certa forma, sabíamos que não mais nos encontraríamos.

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Henrique Lins de Barros é pesquisador titular do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF)

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