Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 281 - 30 de março a 3 de abril de 2005
Leia nesta edição
Capa
Unicamp, reitor à vista
Cesar Lattes, um cientista
   brasileiro
Cabeça no cosmo
Ciência e política
Razões da coincidência
Siarq: memória científica
Ônus da fama
Volta à USP em 1960
O adeus de um parceiro
Fotografias revelam as paixões
Edison Shibuya
Mundo das interações
Damy detectou talento precoce
Lattes: um sonho
Um ciclo se fecha. Fica a lição
O Lattes que não está
   na plataforma
O porão e as alturas
Histórias reais
Martha, o esteio.
  Às filhas, o saber
 


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Cesar Lattes, um cientista brasileiro



Carlos Henrique de Brito Cruz

Cesar Lattes foi um dos maiores cientistas que o Brasil já teve. Nasceu em Curitiba, em 1924. Educou-se na Escola Americana, de Curitiba, e no Instituto Médio Dante Alighieri, de São Paulo. Em 1943, graduou-se na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP.

Na USP, encontrou no professor Gleb Wataghin a orientação para se iniciar na ciência. Wataghin havia chegado ao Brasil em 1934, vindo da Itália. Lattes logo se interessou pela física experimental, dedicando-se ao estudo de raios cósmicos, área de pesquisa em que Marcelo Damy, Giuseppe Occhialini, Paulus Pompéia e outros cientistas obtiveram resultados de impacto internacional com experimentos realizados em São Paulo. Para realizá-los, os cientistas se beneficiaram da construção do túnel da Avenida Nove de Julho, no centro da cidade – físicos experimentais não hesitam em usar todas as oportunidades para conseguir obter bons dados e fundamentar um experimento.

Em 1946 Lattes foi trabalhar no grupo de pesquisa do professor Cecil Powell, emA equipe de Cecil Powell (na extrema esquerda) na Universidade de Bristol: Lattes (na fila do meio, ao centro), Occhialini ( segundo da dir. para esq., na primeira fila) e Camerini (à direita de Lattes, de gravata) estavam entre os colaboradores (Foto: Acervo de Cesar Lattes) Bristol, Inglaterra, onde já estava Occhialini. Powell era um cientista renomado. Há muitos anos vinha desenvolvendo uma técnica experimental para observar partículas elementares usando emulsões de filmes fotográficos. Partículas elementares constituem o átomo. Em geral, todos conhecemos o próton, o elétron e o nêutron. Mas há muitas outras, cada uma com uma função específica na construção do átomo. As emulsões dos filmes fotográficos servem para detectar partículas porque, se forem suficientemente sensíveis, registram com um risco escuro o caminho percorrido por elas quando o filme é revelado.

Foi então que, em 1947, Lattes deu uma contribuição singular. Ao analisar emulsões expostas nas altas montanhas dos Pirineus, ele percebeu traços que poderiam identificar uma partícula até ali não observada, embora sua existência tenha sido prevista antes pelo físico japonês Hideki Yukawa. Para confirmar as medidas - em física experimental sempre é preciso muitos testes para se ter alguma certeza de uma medida -, Lattes levou emulsões às montanhas ainda mais altas dos Andes bolivianos, a 5 mil metros de altitude. Para chegar ao Monte Chacaltaya, preparar os experimentos e realizar as medidas, era necessárioO professor Gleb Wataghin (ao centro), em sala de aula do Instituto de Física, na década de 70: formador de gerações de pesquisadores (Foto: Acervo de Cesar Lattes) carregar instrumentos delicados na neve, em lombo de animais, com pouco oxigênio por causa da altitude. Quanto maior a altitude, maiores as possibilidades de registrar a passagem de raios cósmicos - que vão se perdendo ao atravessar a atmosfera até atingir regiões mais baixas.

Os resultados nos Andes confirmaram as medidas anteriores. Em 1947, Lattes, Muirhead, Occhialini e Powell publicaram os resultados na revista Nature. No artigo, anunciaram a observação do méson pi – a partícula prevista por Yukawa –, também chamado píon. Meson, em grego, significa intermediário; a partícula observada recebeu o nome de méson pi pelo fato de sua massa ser intermediária entre a do elétron, muito leve, e a do próton, quase duas mil vezes maior. O méson é muito importante porque ajuda a manter estável o núcleo atômico, composto também de prótons, de carga elétrica positiva, e de nêutrons, sem carga elétrica. A interação do méson com os prótons e nêutrons permite que tantas cargas positivas dos prótons permaneçam perto umas das outras sem se repelir e desmontar o átomo.

Não contente em observar pela primeira vez o píon e demonstrar sua existência,O reitor Brito Cruz entrega a Cesar Lattes os títulos de Doutor Honoris Causa e de professor emérito, em outubro de 2004 (Foto: Antoninho Perri) Lattes partiu para Berkeley, na Califórnia. No laboratório de Eugene Gardner, um cientista experimental muito habilidoso, havia um acelerador de partículas recentemente construído, chamado Sincrocíclotron. Lattes levou a Berkeley duas coisas que ali não havia: uma, seu saber sobre como analisar os traços nas emulsões fotográficas e tirar deles algum significado; outra, emulsões especiais desenvolvidas em Bristol. As grandes descobertas em física estão geralmente relacionadas ao desenvolvimento de instrumentos especiais, capazes de perguntar à natureza sobre os segredos que ela parece tentar esconder. O cientista brasileiro mostrou que mésons estavam sendo produzidos no acelerador de partículas. Ou seja: pela primeira vez o homem provava ser capaz de controlar a produção de tais partículas. É muito interessante notar que píons estavam sendo produzidos no cíclotron o tempo todo, mas ninguém havia pensado em medi-los – ou, se pensou, não soube bem como fazê-lo. Foi então que Cesar Lattes fez toda a diferença.

Esta história longa contada de maneira curta ajuda a entender que o envolvimento de Lattes com os píons não foi circunstancial – ele não foi um cientista sortudo que estava no lugar certo na hora certa. Sua capacidade – inteligência, conhecimento e habilidade experimental – permitiram que ele fizesse do lugar onde estava, o lugar certo.

De muitas formas, estas foram descobertas heróicas. Nessa época, não havia Fapesp, CNPq, agências de fomento para pagar bolsas e auxílios. Toda a operação era bem mais complicada do que é hoje. A professora Amélia Hamburger, da USP, organizou há alguns anos uma bela exposição intinerante com imagens e explicações sobre a descoberta do píon e seus impactos na ciência mundial e no Brasil, a qual atualmente está no Instituto de Física da USP, em São Paulo.

De volta ao Brasil, Lattes tornou-se professor da USP. Muitos de nós, que nos tornamos físicos experimentais bem depois, lembramos bem de termos aprendido sobre Cesar Lattes ainda quando crianças – eu me lembro muito bem de uma foto dele acenando da porta de um avião da Panair do Brasil. Lembro também de, no Colégio Dante Alighieri, entesourarmos as raras figurinhas que mostravam Lattes ao lado de uma representação abstrata das “bolas de fogo” (uma outra importante descoberta que ele fez nos anos sessenta). A figurinha fazia parte do álbum “Coisas Nossas”, e era figurinha-chave – só se trocava por dez ou mais das outras.

Lattes foi decisivo na criação do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, na criação do CNPq e na consolidação da pesquisa em física como uma área de atividade com referenciais internacionais em nossas universidades. Em 1967, ajudou a criar o Instituto de Física da Unicamp, hoje talvez o único instituto de física no Brasil no qual há mais atividade em física experimental do que em física teórica – certamente em boa parte devido à direção que ele e outros, como Rogério Cerqueira Leite, Sérgio Porto e José Ripper, imprimiram à instituição nos anos seguintes.

A trajetória de Cesar Lattes é um modelo e um alento para centenas de jovens brasileiros que se interessam por ciência e por física. Ele foi fundamental num país em que pouco se reconhecem os heróis por capacidade intelectual. Em qualquer país do mundo, ele é reconhecido como um dos grandes cientistas – daqueles que sabem descobrir como perguntar à natureza e entender a resposta.

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Carlos Henrique de Brito Cruz, físico e engenheiro de eletrônica, é reitor da Unicamp e ex-presidente da Fapesp.

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