Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 281 - 30 de março a 3 de abril de 2005
Leia nesta edição
Capa
Unicamp, reitor à vista
Cesar Lattes, um cientista
   brasileiro
Cabeça no cosmo
Ciência e política
Razões da coincidência
Siarq: memória científica
Ônus da fama
Volta à USP em 1960
O adeus de um parceiro
Fotografias revelam as paixões
Edison Shibuya
Mundo das interações
Damy detectou talento precoce
Lattes: um sonho
Um ciclo se fecha. Fica a lição
O Lattes que não está
   na plataforma
O porão e as alturas
Histórias reais
Martha, o esteio.
  Às filhas, o saber
 

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Lattes conversa com o cozinheiro do Laboratório de Chacaltaya: cooperação rendeu parceria de quase 40 anosPesquisadores trabalham na montagem dos "sanduíches emulsão-chumbo"

O porão e as alturas
em tempos pioneiros

ARMANDO TURTELLI

No início da década de 60, uma troca de cartas entre o físico japonês Yukawa e Lattes dava início a uma colaboração que duraria quase 40 anos, caso único na física brasileira, e que influenciaria várias gerações de físicos. O acordo começou com base nas relações informais existentes entre os dois lados, iniciadas quando a comunidade de origem japonesa no Brasil havia arrecadado fundos para a pesquisa no Japão, na época difícil naquele país no pós-guerra.

O propósito da colaboração era continuar as pesquisas sobre interações nucleares utilizando como instrumento a radiação cósmica, tema no qual os japoneses já se destacavam.

O detector utilizado era o mesmo que Lattes e os japoneses já dominavam muito bem: as emulsões fotográficas de alta resolução, também chamadas de emulsões nucleares. O local escolhido para montar a experiência foi o Laboratório de Física Cósmica do Monte Chacaltaya (a 5.220m de altitude e a 20km de La Paz), construído principalmente graças ao entusiasmo e à influência de Lattes. O projeto, apesar de seu início singelo, aproveitava a sinergia (técnica, científica, experimental, teórica e humana) dos grupos envolvidos e era ambicioso, pois pretendia levar adiante esses estudos por tempo indefinido, melhorando a eficiência e aumentando o tamanho do detector sempre que a situação financeira e as limitações técnicas o permitissem.

Inicialmente, as chapas eram expostas na Bolívia por alArmando Turtelli (ao centro) e seus colegas de pesquisa no porão do Bento Quirino, em 1969: salto de qualidadeguns meses e depois reveladas. Sua análise era feita no Japão e no Brasil. Lattes trabalhava então na USP e as chapas eram analisadas nas salas ocupadas pelo seu grupo no prédio da física superior, onde também estavam a microscopia e as instalações para revelar as chapas. O conjunto de placas fotográficas que formavam o detector era chamado de "câmara" e a sua área e o seu tempo de exposição iam aumentando, conforme o grupo superava as normais dificuldades financeiras e os problemas logísticos para a montagem dos detectores em um local distante e de difícil acesso. A ida de Lattes a Pisa em 1964 (lá ficou por cerca de dois anos) dificultou um pouco as coisas, mas não impediu que a Colaboração fosse adiante.

O grande salto de qualidade na experiência ocorreu com a chamada Câmara 13 (a décima terceira a ser exposta em Chacaltaya). Era uma câmara de dois andares, com seus blocos de "sanduíches emulsão-chumbo" separados por uma camada de piche que servia de alvo para as partículas da radiação cósmica. A revelação fotográfica de milhares de chapas (cada uma medindo 40cm por 60cm), que constituíam essa câmara, ocorreu em 1967 e foi uma operação já no limite da experiência e dos recursos do grupo de então, devido principalmente à enorme quantidade de chapas existentes, o que implicava em problemas de importação de material químico para a revelação, logística do processamento químico, ampliação da câmara escura de então etc. A secagem das chapas era feita em varais improvisados nos corredores do prédio. Com o contínuo entusiasmo de Lattes (então com cerca de 42 anos), que motivava os jovens membros do grupo, e com o empenho e a eficiência dos colegas japoneses presentes na ocasião, a revelação da Câmara 13 foi um sucesso.

Armando Turtelli, hojeDessa revelação participaram, entre outros, Claudio Santos, Martha Mantovani, Edison Shibuya, Armando Turtelli e os bolivianos Carlos Aguirre e Mario Bravo, então no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas. A partir de 1968, parte do grupo que estava na USP começou a se transferir para o recém-criado Instituto de Física da Universidade de Campinas (nome na época). Ali, no final de 1968, foi iniciada a construção de uma câmara escura profissional nos porões do atual Colégio Técnico da Unicamp (na época, Bento Quirino), com capacidade para revelar mais de 12 mil chapas de raios-X e mais de mil placas de emulsões nucleares.

Os andares superiores do prédio da Rua Culto à Ciência eram ocupados por Zeferino Vaz e seus auxiliares diretos e o porão era do “grupo do Lattes”, expressão carinhosa onde havia uma forte conotação de respeito e de admiração. Ali estavam os microscópios e as salas improvisadas onde ficavam Lattes e os físicos japoneses, enquanto os membros mais jovens do grupo dividiam uma ampla sala comum, a microscopia. Naqueles anos, sempre havia um físico japonês residente, em geral um jovem, e os chefes (Fujimoto, Hasegawa) vinham a Campinas pelo menos uma vez por ano. No outro lado do corredor do porão estava o IBM 1130, sob a direção do general Valverde, utilizado por nós para a análise de dados e para as “simulações”.

Foi neste período que alcançamos a sistematização dos procedimentos de análise das chapas: revelação, medidas de energia das partículas, agrupamento em famílias, fluxos etc. Foram também propostos o modelo dos estados intermediários na produção múltipla de partículas (“bolas de fogo”) e o modelo das interações Centauro.

Na melhor tradição dos primórdios da física moderna, todos do grupo conviviam em um pequeno espaço, o que permitia uma intensa e permanente interação. Chegávamos ao redor de 9 horas da manhã, na hora do almoço comia-se algum prato feito no “Mercadão” e ficava-se até tarde da noite. Após as 18-19 horas, quando o resto do prédio se esvaziava, discutiam-se os resultados, as medidas feitas, as dúvidas, as propostas, os planos, os sonhos que todos tínhamos. Nesses momentos, a presença de Lattes era sempre o fator surpresa, pois com ele os temas das conversas eram os mais variados: física de partículas, histórias irreverentes, laboratórios de física em países distantes e impensáveis para nós na época (como a China de Mao e a União Soviética), política, música, artes em geral, divagações improvisadas sobre qualquer tema de física, relatividade (a eterna pedra no sapato para Lattes), grandes físicos etc.

Essas reuniões, seja para discutir resultados, ou simplesmente para conversar, também aconteciam na casa do “professor” na Rua Barão de Itapura, já perto da lagoa do Taquaral, em qualquer dia da semana, em qualquer horário, sempre que ele convocava o pessoal. Lattes fora contemporâneo de quase todos os “grandes” da física do século 20 e sempre tinha inúmeras histórias a nos contar sobre eles, coisas que os livros jamais nos haviam ensinado.

Naquele início de 1969, cassações e aposentadorias compulsórias nas universidades e institutos de pesquisa eram divulgadas quase diariamente na “Voz do Brasil”, programa de rádio mais ouvido no distante porão. Mesmo assim, não havia clima de desânimo. Apenas a situação era essa e cada um deveria fazer o seu trabalho da melhor maneira possível. Apesar de tudo, estávamos conscientes de que aquela era uma ocasião única em nossas vidas, porque aqueles eram tempos pioneiros, envoltos em uma aura de romantismo, que não se repetiriam mais em nossas vidas.

Algum dia tudo entraria nos eixos, as longas conversas noite adentro desapareceriam, a Universidade cresceria, todos ficariam mais distantes, o velho porão iria se transformar em um prédio, os horários seriam outros, tudo passaria a funcionar como em qualquer lugar “normal” ao redor do mundo e esse clima se desvaneceria.

Foi o que aconteceu. Os anos se passaram, o grupo de então se multiplicou, tanto aqui como no Japão, extrapolando o âmbito da colaboração original e passando a se dedicar a várias outras linhas de pesquisa, cada um de nós seguindo o seu caminho, que se iniciara naquele ambiente. E esse foi o maior legado daqueles tempos pioneiros.

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Armando Turtelli é professor do Instituto de Física “Gleb Wataghin” (IFGW) da Unicamp .

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