Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 281 - 30 de março a 3 de abril de 2005
Leia nesta edição
Capa
Unicamp, reitor à vista
Cesar Lattes, um cientista
   brasileiro
Cabeça no cosmo
Ciência e política
Razões da coincidência
Siarq: memória científica
Ônus da fama
Volta à USP em 1960
O adeus de um parceiro
Fotografias revelam as paixões
Edison Shibuya
Mundo das interações
Damy detectou talento precoce
Lattes: um sonho
Um ciclo se fecha. Fica a lição
O Lattes que não está
   na plataforma
O porão e as alturas
Histórias reais
Martha, o esteio.
  Às filhas, o saber
 

12

Monte de Chacalthaya, na Bolívia, onde Lattes começou suas pesquisas ainda na década de 40 e que depois serviu de base para o programa de Cooperação Brasil-Japão de Raios Cósmicos

Improviso nos porões do Cotuca, nos primórdios do Instituto de Física, em 1969: filmes pendurados em varaisEdson Shibuya
Um testemunho

O professor Edison Shibuya pode não ter sido o pesquisador que mais conviveu com Cesar Lattes, mas seguramente foi o que mais esteve com o cientista em seu último quarto de vida. A amizade entre os dois perdurou por quase quatro décadas. Shibuya, hoje lotado no Departamento de Raios Cósmicos do Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW) da Unicamp, foi aluno de Lattes na segunda metade da década de 1960, quando cursava física na USP.

Em 1967, Lattes transferiu-se para a Unicamp. Um ano depois, recrutou estudantes e pesquisadores para tocar o projeto da Colaboração Brasil-Japão de Raios Cósmicos, cujo início deu-se em 1962, na USP. Shibuya, um dos integrantes da força-tarefa, foi contratado como instrutor em 1969, depois de uma breve passagem por Campinas no ano anterior.

Shibuya testemunhou o nascimento e a consolidação do Instituto de Física e tornou-se uma referência na pesquisa da Unicamp e na cooperação nipo-brasileira, talvez o caso mais longevo de uma parceria científica binacional que se tem notícia no país. Nessa condição, foi parceiro e interlocutor privilegiado de Lattes e de teóricos japoneses que escreveram capítulos fundamentais da histórica da física contemporânea.

Depois da aposentadoria de Lattes, em 1986, Shibuya assumiu a condução das pesquisas, que continuam até hoje. Na condição de professor e pesquisador pioneiro do IFGW e, como não poderia deixar de ser, sucessor e amigo de Lattes, a quem visitou poucos dias antes de sua morte, Shibuya concedeu a entrevista que segue.


Jornal da Unicamp - Quando e em que circunstâncias o senhor conheceu Cesar Lattes?
Edison Shibuya - Conheci o professor Lattes em 1967, na USP, onde eu cursava o terceiro ano de faculdade. Ia começar a iniciação científica em seu grupo. Com sua vinda para Campinas, ele deixou a condução dos trabalhos sob responsabilidade do professor Mário Schenberg, por quem efetivamente fui orientado, já que era ele que assinava meus relatórios. Em fevereiro de 1968, com a primeira experiência a ser feita na Unicamp dentro do projeto da Colaboração Brasil-Japão de Raios Cósmicos, o material foi montado no Brasil. Vim para Campinas colaborar na preparação dos filmes e das placas de emulsão nuclear. Trata-se de um material fotossensível, que é acondicionado em envelopes especiais, à prova de luz e de umidade.

Esse material foi exposto à radiação cósmica durante todo o ano de 1968. Os filmes foram retirados em 1969, para fazer o processamento químico na câmara escura localizada no porão do prédio onde funciona hoje o Colégio Técnico da Unicamp (Cotuca), na rua Culto à Ciência, no Botafogo. Na ocasião, era o principal prédio da Unicamp. Eram tempos heróicos e emocionantes. Os filmes ficavam pendurados em varais de roupa. Às vezes, transformávamos dois prendedores quebrados em um.

Martha e Cesar Lattes recebem Shibuya em 2000: amizade de quase quatro décadas

JU -A amizade começou aí?
Shibuya - Quando eu vim para cá, não me sentia muito à vontade na presença do professor Lattes, já na época uma personalidade mundial. De uma certa maneira, eu tinha receio de conversar com ele. Depois, a amizade foi indo, com tropeços, como em toda grande amizade. Lembro-me, por exemplo, que em 1977, quando eu era seu orientado na tese de doutoramento, ele me disse durante a leitura de um texto: "Olha, não vamos continuar essa discussão enquanto você não parar com esse negócio de me chamar de senhor e/ou professor". Foi uma dificuldade razoável, por causa da minha ascendência. Para nós, descendentes de orientais, torna-se uma regra o respeito aos mais velhos e aos mais experientes. Ele sabia disso. E me cutucou...

Depois de 1986, com a sua aposentadoria, assumi a responsabilidade do grupo de pesquisa, e passei a trocar mais idéias com ele. Na época, ele me consultou sobre o que deveria fazer – se devia ou não se aposentar. Eu disse que era um direito seu, mas pedi que ele nos ajudasse na condução do projeto de colaboração com os pesquisadores japoneses.

JU - Em que resultou essa experiência?
Shibuya - Apareceu um evento importante que até hoje nós estamos tentando entender. Por seu aspecto, nós a batizamos de Andrômeda.

JU - O que foi exatamente esse evento?
Shibuya - Trata-se de um registro de muitas partículas ionizantes, agrupadas numa pequena área, totalizando uma energia altíssima, da ordem de 20 quatrilhões de elétron-volts.

JU -Esse programa continua até hoje?
Shibuyia - Na verdade, essa colaboração teve início em 1962, na USP. Com a transferência do professor Lattes para a Unicamp, foi trazida para Campinas. A Unicamp passou então a ter o principal laboratório brasileiro no âmbito do projeto. O programa continua, pelo menos enquanto eu estiver por aqui, na ativa...

Cesar Lattes comemora com os colegas, em 1969, a revelação dos filmes que mostraram o fenômeno de Andrômeda (destaque) pelos integrantes da Cooperação Brasil-Japão

JU - Em que consiste exatamente essa experiência?
Shibuya - Na tese de cátedra do professor Lattes, que não foi defendida por uma série de razões, consta a idéia de fazer uma colaboração com os japoneses, que na época estavam buscando um local mais apropriado para fazer experiências em raios cósmicos em altas altitudes. Chacaltaya, além de ter uma altitude acima de 5 mil metros, é de fácil acesso e já havia sido utilizada por Cesar Lattes na observação de três dezenas de decaimento de pi-mu. Chamamos o fenômeno, que a colaboração se propôs a estudar, de produção múltipla de mésons, que havia sido descoberto anteriormente.

Todo esse trabalho de cooperação iniciou-se por meio de uma carta do físico teórico japonês Hideki Yukawa, endereçada ao descobridor dessa partícula, Cesar Lattes. Uma reprodução dessa carta consta da tese não defendida por Lattes. Na verdade, era um quarteto de pesquisadores notáveis: Shoichi Sakata, Mituo Taketani, Hideki Yukawa e Shin-ItiroTomonaga, estes dois últimos ganhadores do Prêmio Nobel de Física em ocasiões diferentes. Yoichi Fujimoto e Shun-Iti Hasegawa, que foram alunos dos quatro pesquisadores, continuam até hoje a colaborar no projeto.

JU - O senhor poderia falar sobre o trabalho que cada um deles desenvolvia?
Shibuya - Yukawa, que fez o modelo dessa partícula, certamente era um que se destacava no grupo. Mas todos eram de altíssima categoria. Sakata, por exemplo, foi a primeira pessoa a dar um modelo de composição de partículas, depois aperfeiçoado e modificado pelo físico norte-americano Murray Gell-Mann. Esse modelo é chamado de "quark". Tomonaga, como disse, é Prêmio Nobel. Taketani, por sua vez, apesar de ser o mais jovem, era o mais entusiasmado com a colaboração Brasil-Japão. Esteve por três vezes no Brasil. Numa delas, foi o diretor científico do Instituto de Física Teórica, atualmente pertencente à Unesp. Ele trouxe vários colaboradores, entre os quais alguns ex-alunos.


Taketani e Lattes. em 1977: cientista brasileiro pediu, pouco antes de morrer, que trajetória de colega japonês fosse resgatadaO professor e pesquisdor Edison Shibuya no laboratório onde são guardadas as chapas

JU - Qual era a maior característica do Instituto de Física em sua fase inicial?
Shibuya - A improvisação. Os equipamentos eram quase artesanais. Esse aspecto é um dos pontos marcantes da personalidade do Cesar. Ele não gostava de coisas muito sofisticadas.

JU - Ele chegou a trabalhar com computadores?
Shibuya - Sim. Algumas histórias são impublicáveis (risos). No começo, quando havia esses terminais de grandes computadores, ele chegou a manipular mas logo se aborreceu. Numa certa ocasião, ele indagou se não havia um comando para mandar tudo para aquele lugar...

JU - Quais eram, na sua opinião, outras características marcantes da personalidade de Lattes?
Shibuya - O patriotismo, sem dúvida, era uma das mais presentes. Isso fica patente em pelo alguns episódios de sua carreira. Lattes poderia fazer a carreira científica no exterior, em qualquer país, mas preferiu voltar para o Brasil. Ele queria ajudar a desenvolver o país. Isto fica claro na escolha dos nomes para as chamadas "bolas de fogo", todas batizadas por ele com palavras tupi-guarani.

JU - Colegas diziam que a intuição de Lattes era aguçada. O senhor concorda?
Shibuya - Sem dúvida. Talvez uma das coisas mais emblemáticas dessa intuição ocorreu na observação do méson pi. Ele nos falava – e nos ensinava –que a descoberta que ele fez foi o uso do bórax, em Bristol. Ele nos dizia que a partícula era conseqüência dessa observação, fruto de sua perspicácia. Um outro componente de sua personalidade era o seu jeito brincalhão. Não raro, ele pregava peças em seus colegas. Numa de minhas idas à Bolívia, eu era o único civil a bordo de um avião da FAB. Antes da ida subseqüente à Bolívia, ele me disse que, num jornal boliviano, apareceu uma nota a qual citava a visita, antes do golpe militar que derrubou o então presidente boliviano, de um avião militar brasileiro no qual estava um agente do SNI...

JU - E ideologicamente, como o senhor o enquadraria?
Shibuya - Certa vez, ele disse que os cientistas não podem ter dogmas. Uma coisa que ele comentou foi o fato de o dinheiro para a criação do CBPF ter sido tirado do mesmo fundo que financiava a repressão ao comunismo. E o Centro chegou a abrigar simpatizantes do socialismo.

Em 1964, às vésperas do golpe, Lattes foi para Pisa, na Itália, depois de intuir que algo ia acontecer quando viu a movimentação dos caminhões do exército nas ruas. Uma das pessoas de sua confiança que Lattes trouxe da USP foi Zuhair Warwar – que mais tarde foi chefe de gabinete do professor Zeferino Vaz. Warwar escondeu Mário Schenberg, que havia sido eleito deputado constituinte pelo Partido Comunista e estava sendo procurado pelos militares. Schenberg, assim como Leite Lopes, foi cassado pelo regime militar.

JU - Quando o senhor viu Cesar Lattes pela última vez?
Shibuya - Fui visitá-lo cinco dias antes de sua morte. Ele balbuciou: "Precisamos resgatar o Taketani". Esse resgate, provavelmente, tem várias conotações. Além de marxista, Taketani foi preso durante a guerra por que se opôs ao conflito. Mais tarde se posicionou contra a bomba atômica, chegando a ser ameaçado de morte. Ele, por exemplo, não podia entrar nos Estados Unidos, que lhe negava o visto. Lattes, como nacionalista que era, não gostava de certos modismos norte-americanos. Hoje, esse resgate certamente não passa pela parte política, mas sim na parte da física propriamente dita. Isso se faz necessário porque Taketani talvez seja uma das personalidades mais importante na Colaboração Brasil-Japão, apesar de não ter trabalhado nela diretamente. Ele deu um grande incentivo ao projeto até o final da vida.

JU - Como o senhor dimensiona a importância de Cesar Lattes no cenário científico nacional e internacional?
Shibuya - Isso fica bastante visível nos vários livros de física. Essa observação do méson e de outra partícula que ele não podia observar, chamada neutrino, foi um divisor. Como não era ionizante – não tem carga elétrica – era impossível de ser observada diretamente.

Cesar foi incumbido de estudar o nêutron com as emulsões. Ele fez uma reação de uma forma tal que o nêutron fosse produzido. E nessa oportunidade ele descobriu que o bórax estabilizava a imagem. Ele intuiu, de repente, que poderia pegar uma coisa rara, que é o méson pi. Por esse motivo, acho, que ele evitava o uso da palavra "descoberta" do méson.

O méson pi, atualmente conhecido como pion, que é produzido por meio de uma colisão, decai no méson mu (hoje chamado de muon) e numa outra partícula neutra. Por que outra partícula? Porque a energia desse mu é, em média, muito próxima de um determinado valor. Isso significa que aparece uma outra coisa neutra, que não deixa sinal. Essa partícula, ele costumava chamar de neutreto; hoje, conhecemos como neutrino. O pion é o responsável pela força forte; o neutrino e o muon são manifestação de uma força fraca. Então, numa tacada, eles viram duas das quatro forças que atualmente conhecemos na natureza. Isso abriu a física de partículas. Essa é a importância para a ciência internacional. Para o país, a importância é essa sua brasilidade. Cesar sempre fez questão de elevar o nome do país. Uma dessas provas é o reconhecimento prestado por Cartola e Carlos Cachaça, no samba-enredo "Ciência e Arte".

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