Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 281 - 30 de março a 3 de abril de 2005
Leia nesta edição
Capa
Unicamp, reitor à vista
Cesar Lattes, um cientista
   brasileiro
Cabeça no cosmo
Ciência e política
Razões da coincidência
Siarq: memória científica
Ônus da fama
Volta à USP em 1960
O adeus de um parceiro
Fotografias revelam as paixões
Edison Shibuya
Mundo das interações
Damy detectou talento precoce
Lattes: um sonho
Um ciclo se fecha. Fica a lição
O Lattes que não está
   na plataforma
O porão e as alturas
Histórias reais
Martha, o esteio.
  Às filhas, o saber
 


9

O adeus de um parceiro
simples e leal



CLAYTON LEVY


Aos 86 anos, o físico José Leite Lopes fala da física com a mesma paixão e entusiasmo que marcaram o início de sua carreira nos anos 40. Até dois anos atrás, ele fazia questão de marcar presença diária na sede do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), instituição fundada por ele em 1949 em parceria com o amigo Cesar Lattes, já à época considerado o maior nome da física nacional. Hoje, às voltas com uma artrose no joelho, Leite Lopes vai menos ao CBPF, mas continua ligado a tudo o que acontece no mundo da física. Por isso mesmo, a morte de Lattes, ocorrida no último dia 8, representou para ele não apenas “uma grande perda para a ciência”, mas também a despedida de um “grande amigo e companheiro”.

A convivência estreita e o ideal de alavancar a ciência no Brasil, numa época em que a ciência não era tratada como prioridade estratégica, fizeram com que Leite Lopes e Lattes se tornassem mais do que colegas de trabalho. Eles foram parceiros com toda a carga de cumplicidade que essa relação encerra. Talvez por isso, ao falar do amigo, Leite Lopes fuja dos chavões de ocasião usados para definir Lattes. Para ele, o brasileiro que descobriu o méson pi e quase ganhou o Prêmio Nobel, foi, antes de tudo, “um homem simples, simpático e leal”.

Professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e daEncontro de jovens físicos em Princeton, em 1949: da esq. para a dir., José Leite Lopes, Hideki Yukawa, autor da previsão teórica do méson passado, Christian Moeller e esposa, Cesar Lattes, Hervásio de Carvalho e Walter Shutzer  (Acervo de Cesar Lattes) Universidade de Estrasburgo, na França, Leite Lopes chorou ao telefone ao falar sobre a morte de Lattes ao Jornal da Unicamp. Na entrevista que segue, ele resgata a história de uma das parcerias mais profícuas da ciência brasileira, cujos frutos sustentam boa parte da pesquisa realizada no país.

Jornal da Unicamp – Em sua opinião, qual a importância de Cesar Lattes para o desenvolvimento da ciência no Brasil e na América Latina?

José Leite Lopes – Muito grande. O trabalho dele mostrou que era possível um jovem brasileiro fazer uma descoberta importante na física universal. Isso teve um grande impacto na América Latina. Países como Argentina, Peru e Bolívia ficaram entusiasmados e também avançaram em suas pesquisas. Ele também mostrou que era possível a um país do Terceiro Mundo e da América Latina fazer pesquisa de qualidade mesmo em condições não tão favoráveis quanto às dos países do Primeiro Mundo.

JU – Um dos professores de Lattes durante o curso de graduação, no então Instituto de Filosofia, Ciências e Letras, em São Paulo, foi o físico ítalo-ucraniano Gleb Wataghin, que inaugurou a física de partículas no Brasil e também foi um dos principais responsáveis pelo estabelecimento da física experimental como atividade científica no país. Em sua opinião, de que maneira o trabalho de Wataghin influenciou Lattes?

Leite Lopes – Influenciou de uma forma importante. O Wataghin chamou o LattesLopes (em pé, à direita) ao lado de Lattes nas comemorações dos 50 anos do méson pi, no CBPF, no Rio de Janeiro (Acervo de Cesar Lattes) para um trabalho em cooperação sobre a abundância dos núcleos no universo e ficou impressionado com o rapaz. Com isso, deu um grande impulso ao Lattes. Claro que o Lattes absorveu a influência do Wataghin, mas não apenas dele. A convivência com o Giuseppe Occhialini (1907-1993) também foi muito importante, talvez até mais que a com Wataghin, principalmente na construção dos aparelhos necessários aos experimentos.

JU – O senhor teve uma convivência bastante estreita com Lattes. Como ele reagiu no episódio do Nobel que não veio?

Leite Lopes – Evidentemente que ele gostaria de ter recebido o prêmio. Mas ele era muito jovem na época. Era um estudante. Já o Cecil Powell (1903-1969) era o chefe do laboratório em Bristol. Então era natural que o foco se voltasse para o chefe e não para um de seus estudantes. Mas acho que o Lattes poderia ter ganho o prêmio. Depois disso, quando ele foi para os Estados Unidos trabalhar com o americano Eugene Gardner (1913-1950), também quase ganhou o Nobel. Mas esse americano trabalhou na bomba atômica e ficou doente do pulmão. Deu silicose e ele morreu antes de ganhar o prêmio. Se ele não tivesse morrido, o Lattes teria levado o Nobel junto com ele.

JU – Como foi a participação de Lattes na criação do CBPF?

Leite Lopes – Quando convivi com ele em São Paulo, na década de 40, nósEm Princeton: da esq. para a dir., em pé, Walter Shutzer, Hideki Yukawa e Cesar Lattes; agachados, Jayme Tiomno, José Leite Lopes e Hervásio de Carvalho (Acervo de Cesar Lattes) discutíamos muito sobre a física no Brasil. São Paulo já tinha um bom grupo em física experimental. O Rio de Janeiro, apesar de contar com um grupo de estudos em estados sólidos, ainda não tinha grupos experimentais em física nuclear. Eu discutia muito isso com o Lattes, dizendo que depois que se formasse ele poderia vir para o Rio de Janeiro. Falamos sobre isso por algum tempo, por carta, por telefone e pessoalmente. A idéia foi amadurecendo. Eu estava na Federal do Rio, mas a universidade não tinha dinheiro para física nuclear. Um dia, o Lattes pediu a um amigo, Nelson Lins de Barros, que era músico, que averiguasse essa situação no Rio. O Nelson, que estava havia anos nos Estados Unidos, veio ao Rio e contei a ele o que estava acontecendo.

Foi então que o Nelson marcou um encontro com seu irmão, o embaixador João Alberto, para conversarmos sobre o assunto. O embaixador ficou muito surpreso e disse que o Rio não poderia ficar de fora da física nuclear. Como a universidade não tinha dinheiro, o embaixador propôs a criação de um instituto privado. Em seguida, no dia 15 de janeiro de 1949, nos reunimos na Praia Vermelha e fizemos a primeira reunião formal para esboçar a criação do CBPF. O banqueiro Mário de Almeida financiou os primeiros recursos, o próprio João Alberto também colaborou, o dinheiro veio todo de gente que não estava no governo. O Lattes participou de todo o processo e depois projetou e montou os laboratórios.

JU – O que mudou no estudo da física no Brasil depois de Cesar Lattes?

Leite Lopes – Mudou muita coisa. Foram criados vários institutos de pesquisa e a ciência ganhou um impulso importante. Os físicos brasileiros ficaram entusiasmados com o trabalho do Lattes no exterior. Ele foi um divisor de águas. Depois da criação do CBPF outros institutos foram criados para fazer pesquisa em física. Em Pernambuco, São Paulo, Rio Grande do Sul, Belo Horizonte. Também houve um impacto importante no próprio governo. O almirante Álvaro Alberto (Álvaro Alberto da Motta Silva 1889-1976), representante brasileiro na Comissão de Energia Atômica da ONU, foi ao presidente Dutra e disse que era importante criar um conselho nacional de pesquisa. Então o Dutra formou uma comissão, que redigiu os princípios desse conselho e mandou para o Congresso. O texto foi aprovado, dando origem, em 1951, ao CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico). O Lattes fez parte da comissão que escreveu o projeto.

JU – A criação do Ministério da Ciência e Tecnologia também foi resultado desse processo?

Leite Lopes – Sim. No tempo do Jango (presidente João Goulart), o ministro Amaral Peixoto (Ernani do Amaral Peixoto, ministro para Reforma Administrativa) achava que havia muitos órgãos subordinados diretamente ao presidente da República. Então ele começou a pensar em transferir o recém-criado CNPq para o Ministério da Educação. Quando ele divulgou essa idéia, eu e outros colegas discordamos. Nós achávamos que o MEC não poderia receber essa incumbência uma vez que também não tinha conseguido resolver o problema da educação no Brasil. Nós já sabíamos que alguns países do Primeiro Mundo haviam criado ministérios para cuidar da ciência e da tecnologia, como por exemplo a Inglaterra. Então começamos a defender a idéia da criação no Brasil de um ministério específico para essa área. Fizemos o projeto, pensamos a estrutura, mas o ministério demorou a sair. Começou no tempo do Jango, passou toda a ditadura e só foi criado no governo Sarney. Demorou bastante.

JU – Em sua opinião, como está a pesquisa brasileira em física atualmente?

Leite Lopes – Acho que hoje há mais entusiasmo. Temos um ministério (Ciência e Tecnologia) que cuida das políticas para as pesquisas científicas. As agências de fomento criaram condições mais favoráveis para a pesquisa. No cenário mundial, o Brasil está numa boa situação em termos de pesquisa. Na América Latina, o Brasil é o principal destaque, ao lado da Argentina e do México. Na década de 50, após viajar por esses países, voltei ao Brasil e propus a criação do Centro Latino-Americano de Física para abrigar físicos vindos de toda a América Latina. Além disso, com um centro desse tipo seria mais fácil obter dinheiro da ONU (Organização das Nações Unidas) para a pesquisa.

JU – Qual a motivação que o Brasil oferece atualmente a um estudante de graduação que pretende seguir a carreira de pesquisador?

Leite Lopes – Em primeiro lugar, esse jovem precisa gostar muito da Ciência. É preciso gostar e trabalhar muito. É importante dominar a física e identificar qual é a parte que ele mais gosta. Depois é preciso associar-se a algum instituto de pesquisa. Acho que o interesse pela pesquisa deve ser incentivado ainda na graduação.

JU – Os trabalhos de iniciação científica são um bom começo para incentivar o jovem universitário nessa área?

Leite Lopes – Certamente. Mas também é preciso que os cursos sejam dados por físicos que realmente gostem da matéria.

JU –Desenvolveu-se no ensino fundamental do Brasil a cultura de que o estudo da física é algo difícil. Em sua opinião, como desfazer essa falsa imagem?

Leite Lopes – Tenho falado sobre isso por aí. É preciso ensinar bem a física para os alunos do curso secundário. Os estudantes não entendem física e matemática porque os professores não ensinam direito. Se o professor desenvolver a capacidade didática, acaba atraindo o estudante naturalmente. Ele (o aluno) acaba gostando e querendo fazer. Eu, por exemplo, tive um bom professor lá no Recife quando fui fazer o curso de química industrial. Chamava-se Luiz Freire. Ele não pôde desenvolver seus estudos fora do país, mas conhecia muito a física e a filosofia e tinha o dom de dar aulas muito cativantes. Com isso, ele me atraía. Foi esse professor que despertou em mim o interesse pela física.

JU – Em sua opinião, as universidades públicas brasileiras estão tendo uma atuação satisfatória no desenvolvimento da pesquisa em física?

Leite Lopes – Elas estão fazendo o possível. Há muitas dificuldades por causa da falta de dinheiro. No Brasil todo há falta de dinheiro. Mas se houver apoio do governo, o futuro da física e dos físicos brasileiros é bom.

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