Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 244 - de 15 a 21 de março de 2004
Leia nessa edição
Capa
A propósito do Araguaia
Livro: saúde reprodutiva
Pesquisa :carne-de-sol
Metanol e diesel: medida certa
Geociências: viajando no tempo
Pochmann: meta de emprego
Jovens: transtornos mentais
Saúde: esquistossomose
Meio ambiente e biossegurança
Livro: ciências exatas
Unicamp na mídia
Painel da semanal
Oportunidades
Teses da semana
Metodologia: descarte de pneus
Fotografia: floresta urbana
 

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ARTIGO
A propósito do Araguaia

SANDRA NEGRAES BRISOLLA

Osvaldo Orlando da Costa era um homem grande e simples, como seu nome. Tinha mais de dois metros de altura, era negro e bonito. Eu o conheci quando ele terminava o curso de Engenharia na Universidade de Praga, na Checoslováquia, no início dos anos 60. Eu estava chegando para estudar e ele já estava quase de saída.

Osvaldão, como era mais conhecido, era um líder inato. Aliava o bom humor contagiante com uma bondade infinita. Sempre disponível para estudar com os colegas checos e latino-americanos, andava permanentemente rodeado de estudantes, falando alegremente e chamando a atenção dos circunstantes. Sua capacidade de liderança era inconteste: chegou a participar da organização de um dos primeiros centros acadêmicos da Universidade de Praga. Alguns anos mais tarde esse tipo de atividades desembocaria na Primavera de Praga, um movimento que se iniciou a partir da mobilização de intelectuais e de estudantes.
Figura exótica no contexto europeu dos anos 60, Osvaldão era foco de curiosidade por onde quer que andasse:

- “Quando cheguei, os meninos passavam saliva no dedo e esfregavam meu braço, para ver se a cor saía! As pessoas passavam a mão no meu cabelo! Nunca tinham visto um negro antes.” - ele me contava.

Chegou até a figurar em vários filmes na Checoslováquia. Sua estampa era cobiçada pelos cineastas também no Brasil, onde queriam que ele interpretasse Zumbi
dos Palmares.

Uma vez foi um grupo de brasileiros a uma festa de comemoração do aniversário da independência do Quênia. Osvaldão fez o maior sucesso! Um dos integrantes do grupo de repente virou-se para os demais e disse:

- “Vou-me embora, gente! As checas que estão nessa festa estão a fim de preto, não a fim de branco! Aqui o preconceito existe, sim. É francamente favorável aos negros!” - completou. E saiu.

Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldão: “desaparecido” em Xambioá, em 1974

Em outra ocasião estávamos percorrendo o Campus da Escola de Engenharia da Universidade de Praga e Osvaldão cruzou com alguns amigos africanos, que conversaram com ele em francês por alguns minutos. Quando se afastaram, pôs-se pensativo e comentou:

- “É, Sandrinha. Preciso mesmo voltar pro Brasil! Onde já se viu preto falando francês? Tô ficando besta, sô!” - e soltou aquela gargalhada.

Já estava preparando sua volta. Tinha uma namorada loiríssima, quase da sua altura. Quando chegou a época de voltar pro Brasil, a checa queria acompanhá-lo. Mas ele ponderava, decidido:

- “Você acha que eu vou poder passear com uma lourona dessas na calçada de Copacabana? Vou ser linchado !!!”

Pouco tempo depois regressou à terra natal, deixando a loira em Praga, inconsolável.
Nunca mais o vi. Um dia eu também voltei ao Brasil. Alguns anos mais tarde fiquei sabendo que Osvaldão era um dos líderes mais destacados da guerrilha do Araguaia. Levou consigo para Ximbioá Gilberto Olímpio, com quem havia estudado em Praga.

Gilberto não chegou a terminar o curso de Engenharia, preferindo seguir as pegadas de seu amigo. Osvaldão foi um dos últimos a “desaparecer” no Araguaia, em 1974.
Hoje, 21 anos depois, procuro ansiosa seu nome entre os desaparecidos.

Percorrendo a lista por ordem alfabética, passo primeiro pelo nome de Gilberto Olímpio Maria, estudante, PC do B - Araguaia, 1973. E mais adiante, para meu espanto, leio: Osvaldo Orlando da Costa, lutador de boxe, PC do B - Araguaia, 1974.
Meu susto foi por não ver “engenheiro”, no lugar da profissão, ao lado de seu nome.

Sandra Negraes Brisolla, professora aposentada e voluntária do Depto. de Política Científica e Tecnológica da Unicamp, morou dois anos na Checoslováquia, entre 1962 e 1964

Mas não sei por quê me espantei! Afinal, “lutador de boxe” combina melhor com seu porte e sua cor! E foi então que concordei com ele! Pois é, Osvaldão! Você estava coberto de razão! Não dava pra trazer uma loira de quase dois metros de altura com você em 1963! Você teria sido linchado! Onze anos antes de ser desaparecido!

Dizia-se na época que perto de Xambioá havia uma reserva de mineral radioativo, que era alvo de contrabando por helicópteros norte-americanos que pousavam no campo, seus tripulantes desciam com roupas especiais e abriam a porta para que os moradores locais carregassem o minério, sem proteção nenhuma, a troco de algum dinheiro. Não sei se era lenda!

Hoje estão revirando o terreno de Xambioá em busca dos restos de Osvaldão e seus companheiros, 30 anos depois do massacre de que foram vítima.
Homens como Osvaldão, sacrificados na luta contra a ditadura, teriam feito muita diferença na construção de um Brasil melhor, depois da democratização! Osvaldão não era o ser insensível que se acredita encarnar nos guerrilheiros por força das condições adversas. Transpirava solidariedade e o que o movia não era nenhum complexo ou frustração, a não ser com as condições inumanas em que vivem seus concidadãos. Foi por isso que se transformou em lenda! Osvaldão antes disso já era um caso de sucesso!

Encontrar neste momento seus restos mortais, assim como o de seus companheiros, e prestar-lhe uma homenagem, não vai reparar o mal causado por seu assassinato, mas vai manter viva sua memória, para que outros se mirem em seu exemplo, tirando dele a lição de que mais importante que ter sucesso na vida é dar a ela algum sentido! Um sentido que resgate a dignidade do homem brasileiro!

 

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