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Artigo

Aos envolvidos neste doloso processo

HERMANO TAVARES*
e Roberto Romano**

Este artigo é escrito num instante em que a Unicamp encerra uma etapa de sua vida ética. Como universidade que é, reproduz em seu interior diversas e contraditórias formas de pensamento. Uma comunhão que se afirma como plural e que nos ensina a conviver com múltiplos pontos de vista. Conditio sine qua non desta tolerância institucional é a exigência de que nenhum programa científico, culto religioso e discurso político se apresente como o único, em detrimento dos outros. A tensão benéfica que segue o debate sobre os valores impulsiona a universidade na busca do verdadeiro, do bem comum, dos serviços dirigidos à vida civil e ao Estado democrático de direito.

Essas considerações são necessárias no momento em que a Unicamp presta contas do desafio que aceitou ao se propor analisar as "ossadas de Perus". Serviço prestado à sociedade, em que ela arriscou, junto à opinião pública e às autoridades, o seu prestígio de grande centro de pesquisa e de ensino. Movida pela pressão do pensamento político e jurídico indignado com os frutos de uma ditadura que tentou abafar toda liberdade e todo pluralismo na vida civil e na política brasileira, ela aceitou realizar esse exame, tendo em vista identificar as pessoas que foram vítimas, além da violência política, de clara violência social (tratava-se, contra todos os preceitos morais, de mortos enterrados de modo anônimo, sem direito aos ritos mínimos que asseguram a humanidade deles mesmos e de seus parentes).

Para dimensionar a complexidade do problema, foram analisadas e catalogadas cerca de 1.100 ossadas, inicialmente sem qualquer identificação, advindas principalmente da vala comum de Perus, mas também de outros cemitérios, onde se suspeitava tivessem ocorrido crimes semelhantes. O trabalho iniciou-se em dezembro de 1990 e transcorreu, apesar dos choques naturais de atitudes acima definidos, em bom ritmo e com eficiência. Ao final das investigações, sete mortos políticos tinham sido identificados, dando às famílias meios para exigir medidas jurídicas do Estado brasileiro em favor de sua memória. A faina dos técnicos, entretanto, não pode tudo providenciar. Poder-se-ia pensar em reavaliar todo o trabalho, mas, além das dificuldades de ordem tecnológica e humana para conti-nuação das análises, na Unicamp surgiram problemas derivados, novamente, do politeísmo dos valores mencionados no início deste texto. Os vários interesses envolvidos no processo entraram em choque, tanto extra quanto interna corporis. Os conflitos, naturais em toda sociedade eticamente constituída de modo plural, se manifestaram, agravando-se cada vez mais. Nesse contexto, a Unicamp considerou que tinha esgotado suas possibilidades e, em abril de 1997, produziu-se um laudo final. Com isso, após um relatório circunstanciado, onde foram expostos os motivos desta atitude, a Universidade passou a ser apenas a guardiã física das ossadas de Perus, enquanto aguardava a sua remoção para o local onde seriam continuadas as análises, por outros cientistas não ligados imediatamente a ela.

A partir de então, mudanças institucionais foram realizadas na Universidade, ao redor desse problema. Em 1999, o Departamento de Medicina Legal foi fechado pelo Conselho Universitário, após longas deliberações. Em janeiro de 2000 foi criada uma Comissão de Perícias, a qual, temporariamente, responderia pela elaboração de normas gerais para aqueles serviços, e pelo relacionamento da Universidade com a vida social e com o Estado, sobretudo no seu aspecto jurídico. Neste momento, a Unicamp intensificou os esforços junto às autoridades responsáveis, no sentido de se efetivar o esperado translado das ossadas para outras instituições. Durante os últimos anos tem-se insistido junto aos gabinetes do governo, e a todos os setores que têm a guarda do Estado de Direito, no Estado e no País. Após muitos esforços, foi atingido o alvo: há três meses, no dia 7 de dezembro de 2000, as oito ossadas sobre as quais recai uma possibilidade de pertencerem a mortos políticos foram encaminhadas ao IML (aonde o Dr. Daniel Muñoz, legista da USP, vai assumir os trabalhos de investigações adicionais). As demais aguardam instruções do mesmo IML para seu transporte e guarda, devendo depois receber sepultamento condigno em local apropriado no Cemitério do Araçá.

Devido ao mencionado pluralismo ético, político, ideológico, doutrinário, que caracterizou as visões e que orientou a prática dos envolvidos nesse processo, surgiram e se salientaram muitas acusações contra a Unicamp. Todas elas foram analisadas pelas Autoridades acadêmicas. As que possuíam a chancela positiva da verdade, foram aceitas, modificando a comunhão acadêmica o seu procedimento, tentando agir de modo eficaz, seguindo-se aberta e transparente admissão dos equívocos cometidos. Mesmo as acusações que não se basearam em fatos, foram analisadas e pesquisadas, dando origem a um dossiê exaustivo entregue a todos os envolvidos no caso, desde as famílias dos mortos políticos, até os membros do Legislativo, do Executivo, do Judiciário. O dossiê referido encontra-se ao dispor de toda a cidadania, das autoridades e da opinião pública, mormente da imprensa nacional e estrangeira.

Por fim, uma questão de princípio que gostaríamos de ver reforçada. Após o translado total das ossadas, a Universidade Estadual de Campinas continua, por decisão ética e legal, aberta a toda e qualquer visita de membros da sociedade civil ou do Estado. Pronta a investigar e rever seus equívocos, a Unicamp não aceitou, não aceita e não aceitará, sem exames rigorosos e justos, acusações que busquem desqualificar sua competência científica e sua integridade ética e moral diante do público. Entre os erros, previsíveis em instituições humanas, e os acertos (reconhecidos pelas mais elevadas autoridades éticas e religiosas do país) a Unicamp exige o respeito à sua pluralidade interna e aos bons serviços, em todas as áreas de conhecimento e de ação moral, prestados à comunidade civil pelos seus inúmeros pesquisadores e docentes. Ela colabora, também, através de seu ensino e de suas atitudes, para que a sociedade e o Estado brasileiro caminhem para os mais altos ideais de convívio democrático, jogando para as trevas de um pretérito nefasto os procedimentos que deram origem ao Estado ditatorial, onde apenas os valores de alguns eram impostos e a intolerância conduziu à morte pública ou anônima dos que ousaram pensar de modo diverso, por terem seguido a natureza mesma do fato ético, ou seja, o pluralismo. A todos os envolvidos neste doloroso processo, a Unicamp afirma, com dignidade e em alta voz, que estará sempre disposta a colaborar na luta pelos direitos humanos e pela democracia no Brasil.

* Hermano Tavares é reitor da Unicamp
** Roberto Romano é professor de Ética e coordenador da Comissão de Perícias


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