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Páginas 10, 11 e 12

Reportagem

O Globo Repórter sobre a vala de Perus

As investigações para um livro sobre a violência da PM contra civis levam jornalista à descoberta das ossadas

CACO BARCELLOS*

Este é um relato de como realizei a reportagem do Globo Repórter sobre a vala de Perus. Na verdade, ele começou por acaso. Em 1990, eu estava trabalhando na investigação do livro Rota 66 com um grupo de estudantes de jornalismo. Fazíamos uma apuração extensa nos arquivos do Instituto Médico Legal e a partir desta documentação conseguimos reunir informações que me permitiram chegar a um número próximo de 60 mil identificações ou possibilidades de identificações de vítimas da polícia. Essa documentação do IML permanecia abandonada em uma espécie de museu e dizia respeito à violência praticada contra civis por parte da polícia, sobretudo da Polícia Militar. Como conseqüência dessa investigação nós obtivemos um perfil das pessoas que eram perseguidas pela polícia militar e procurávamos no IML as informações que se aproximavam desse perfil. Por isso, abrimos o leque de procura e estávamos tentando chegar à prova de que as identificações alcançadas eram de vítimas da Polícia Militar.

A investigação no IML era uma etapa dessa pesquisa sobre violência policial que eu havia iniciado em dezembro de 1975. Eu pesquisei todas as edições do jornal Notícias Populares (NP) entre abril de 1970, quando foi criada a Polícia Militar, e final de 1975. Meu objetivo era examinar todos os casos registrados como tiroteio desde a criação da PM. Era ainda a metade da década de 70 e não consegui o acesso às notas oficiais sobre esses tiroteios do passado, divulgados à imprensa pelo Serviço de Relações Públicas da PM. Dessa forma, escolhi o NP, pois como a maioria dos jornais da época, nele geralmente publicava-se a versão oficial sobre as mortes violentas de São Paulo. Essas matérias eram elaboradas a partir dessas notas divulgadas pela PM ou através dos Boletins de Ocorrência.

O caso da Rota 66 é a notícia número 255 da fonte NP da minha pesquisa. Para mim, essa notícia teve uma grande importância, pois foi o primeiro caso em que uma equipe das Rondas Ostensivas Tobias Aguiar (Rota) matou pessoas pertencentes à minoria rica do país. Anotar os dados da morte de três rapazes do Fusca azul significou que eu havia completado a leitura sobre tiroteios ocorridos em cinco anos de história da PM de São Paulo. A leitura das primeiras 1.725 edições do NP resultaram na descoberta de 274 pessoas mortas em supostos tiroteios pela cidade entre 1970 e 1975. Este número significa mais do que o dobro das vítimas do temível Esquadrão da Morte de São Paulo formado por policiais civis e atuante no começo da década de 70. O saldo da matança da PM, somente até 1975, é maior que o número de mortos e desaparecidos políticos durante todo o período de 21 anos de ditadura militar, segundo os dados que eu tinha quando editei o livro Rota 66, em agosto de 1992.

Naquele momento, a informação fornecida pelos familiares de mortos e desaparecidos políticos que me foi transmitida por Suzana Keniger Lisbôa – uma militante do período da ditadura, cujo companheiro havia "desaparecido" em 1972 e que, desde então, lutava para esclarecer as circunstâncias de sua morte e dos companheiros vítimas da repressão política – era de que 269 militantes, sendo 144 oficialmente mortos e 125 "desaparecidos", haviam sido mortos pela ação conjunta das Forças Armadas, polícia civil e federal e a comunidade de informações. Suzana me ajudou a descobrir através do Banco de Dados, formado durante os anos de minha pesquisa, a ligação entre os documentos do IML, e aquelas ossadas encontradas na vala comum do cemitério de Perus.

A pesquisa limitava-se a duas fontes, até aquele momento: os parentes das vítimas entrevistadas no pátio do IML por Sidney M., um rapaz que conheci no pátio do IML à procura de seus pais desaparecidos, e os arquivos do jornal NP. Para ampliar esta pesquisa precisávamos continuar após 1975. Sidney concordou em continuá-la e para isso criamos uma ficha-padrão para tornar mais prática a anotação dos dados principais de cada caso. Passamos a copiar todas as informações relativas à vítima: nome, idade, cor de pele, endereço, profissão, local e motivo de morte. Copiávamos também os dados dos matadores, além dos nomes da delegacia da área de tiroteio e do delegado que escreveu o Boletim de Ocorrência.

Depois de examinarmos mais de 8 mil edições do NP era necessário arquivar as informações em computador. Já tínhamos um resumo das notícias sobre mais de 3.200 tiroteios envolvendo pessoas suspeitas e policiais militares. De todos os tiroteios noticiados pelo NP apenas 28 acabaram com feridos entre as vítimas. Nenhum civil sobreviveu na impressionante maioria de 3.188 tiroteios. O saldo das vítimas dos tiroteios envolvendo PMs tem a proporção assustadora de 265 mortos para cada ferido.

Meu contato com a violência política, nessa pesquisa, iniciou-se a partir da leitura sobre a morte do guerrilheiro José Idézio Brianezi, o primeiro a ser registrado no nosso arquivo informatizado. Na noite de 13 de abril de 1970, cinco dias após a criação da Polícia Militar, os sargentos Absalom e Nascimento, recrutados à Operação Bandeirantes, a OBAN, fizeram parte da equipe de buscas C-4, encarregados da prisão de um homem suspeito de ser guerrilheiro. A ordem do SI, Setor de Informações, indicava que o esconderijo era uma pensão para rapazes no bairro do Aeroporto. Os policiais militares e colaboradores da OBAN formavam a força auxiliar de repressão política, em apoio aos tiras civis do DEOPS e agentes do Exército. Minutos após a chegada de Brianezi ao seu quarto na pensão houve um rápido tiroteio. Os sargentos Absalom e Nascimento ficaram feridos e o suspeito morto com seis ferimentos no corpo. Seus documentos o identificaram: paranaense de Londrina, 24 anos, comerciário. Uma observação mais detalhada do Banco de Dados mostra que os matadores da PM herdaram os métodos do passado. Vencida a guerrilha passaram a usar os mesmos métodos contra os suspeitos da prática de crimes comuns.

Os supostos tiroteios, se examinados através das versões oficiais da PM, têm uma grande semelhança com os tiroteios do passado em que as vítimas eram os guerrilheiros. A narrativa do histórico dos fatos tem geralmente a mesma seqüência. O PM desconfia de alguém na escuridão. O suspeito foge disparando a arma. O policial revida e atinge o suspeito. Socorrido, o ferido morre a caminho do hospital. A condição de vítima ou de agressão geralmente são invertidas, como aconteceu no caso Rota 66. O morto sempre é o culpado pela morte dele. Minha investigação mostra que os PMs são alunos que aprenderam o pior de seus professores do passado. Os arquivos da Justiça e da própria polícia provavam que as versões oficiais sobre os tiroteios em muitos casos não eram verdadeiras. Visavam justificar os assassinatos como ações de legítima defesa durante o cumprimento do dever. Foi durante o trabalho no caso Rota 66, ocorrido na madrugada do dia 23 de abril de 1975, que eu descobri: mesmo que os mortos façam parte da elite econômica, a investigação sobre os assassinatos praticados por PMs é sempre um grande desafio.

Em novembro de 1979, em uma decisão histórica, o Supremo Tribunal Federal anulou todo o processo da Justiça Civil sobre o caso Rota 66. Atendendo a um recurso do advogado dos réus, os desembargadores da primeira turma do STF cancelaram o júri por considerar o Fórum Civil incompetente para o julgamento. Também concederam um habeas-corpus aos cinco PMs, que continuaram exercendo o trabalho regular no patrulhamento da cidade. Os desembargadores transferiram toda a responsabilidade pela apuração do crime ao Tribunal de Justiça Militar, amparados pelo decreto do STF que dava o privilégio aos policiais militares de serem julgados pelos próprios policiais militares. Consideraram o crime de natureza militar, embora as três vítimas fossem civis. Se basearam na condição profissional dos matadores: PMs que dispararam armas privativas das Forças Armadas durante o serviço de policiamento urbano – atividade definida como militar em uma emenda constitucional criada pela ditadura. Aconteceu aquilo que as autoridades da Justiça Civil mais temiam: a transferência do julgamento à Justiça Militar representou, na opinião dos juristas, a impunidade aos matadores da Rota 66. No dia 24 de junho de 1981, seis anos depois do assassinato, diante de um Conselho de Justiça Militar, formado por um juiz civil, dois majores e dois tenentes da PM, os matadores foram julgados inocentes.

À medida que avançávamos na pesquisa, reunimos centenas de denúncias, que apontavam os matadores da PM como integrantes de um esquadrão da morte oficial. Meu próximo passo foi o de tentar esclarecer as circunstâncias em que os civis eram mortos pela PM. A fonte Notícias Populares se possibilitou identificar os matadores, pouco nos ajudou a conhecer as vítimas, devido ao grande número de desconhecidos. Constatamos que no mínimo 1.300 pessoas sem identificação foram mortas pela PM desde a sua criação. Quase metade das vítimas da Polícia Militar em duas décadas, cujas mortes foram divulgadas, estavam estranhamente sem documentos na hora do tiroteio.

Em 1987 começamos a vencer os primeiros obstáculos. Com a ajuda do diretor do Instituto Médico Legal, o médico legista Rubens Brasil Maluf, conquistei aquilo que vinha tentando havia anos: o acesso a uma sala empoeirada de uma espécie de museu abandonado do IML. Alguns armários sem porta mostravam grandes garrafas de vidro com pedaços de corpos mergulhados em formol. Mãos. Pés. Cabelos. Fetos deformados. Olhos. Muitos vidros cheios de olhos flutuantes. Álbuns e mais albuns com fotografias de cadáveres em todos os estágios de putrefação. Livros de capa preta. Velhos instrumentos um dia usados nos exames de necrópsia. Cadeiras quebradas. Pedaços de macas. Máquinas de escrever emperradas. E uma montanha de pastas e papéis velhos cobertos de pó compostos por cerca de 60 mil documentos por ano, amontoados desde 1921, pelo menos.

Meu processo de procura para encontrar as vítimas da PM partiu da listagem da pesquisa no NP. No primeiro dia de parceria com Daniel Annemberg, o estudante de jornalismo que primeiro trabalhou comigo, expliquei que a prioridade da pesquisa era identificar todos os chamados desconhecidos mortos pelos policiais militares. Levamos duas semanas para colocar os documentos nas prateleiras de duas paredes de 3 metros de altura por 7 de largura. No final, ambas as paredes estavam abarrotadas de cima a baixo, de ponta a ponta. Nosso levantamento deve ter ficado incompleto, pois a bagunça era enorme e constatamos a ausência de meses inteiros sem referência, sem documentação alguma. Este problema existiu principalmente referente ao período de 1967 a 1970, pois o material não estava encadernado, o que nesse caso não prejudicou muito nossa pesquisa que concentrou-se nos anos a partir de 1970.

Há 3 tipos de documentos que nos ofereceram informações para chegarmos às vítimas da PM. O primeiro tipo é o telex que o delegado da Polícia Civil envia ao IML solicitando o recolhimento do corpo de uma vítima de violência. Descobrimos que este é um resumo das informações do Boletim de Ocorrência, que já dispúnhamos através da fonte NP, mas muitas vezes o delegado informava que se tratava de um caso de resistência, ou seja, de uma vítima da PM.

O outro tipo de documento é o laudo de exame de cadáver com anotações do médico legista no momento em que a vítima dá entrada no IML. Quando a vítima é portadora de documentos, os dados de identificação também são anotados nesta folha. Na hipótese de a vítima ser desconhecida, ela será identificada por um número até o dia em que alguém fizer seu reconhecimento.

O terceiro tipo de documento é o resultado do exame dactiloscópico, que é obrigatório. Sempre que um corpo entra no IML, o legista tira as impressões digitais e as envia para o confronto com as fichas do Instituto de Identificação. Se a vítima for nascida em São Paulo e registrada nos arquivos da polícia será muito grande a chance de identificação. Neste caso teremos no telex o perfil da vítima: nome, filiação, idade, naturalidade e, às vezes, profissão. Caso o resultado do exame for negativo e nenhum parente reclamar o corpo, a vítima será enterrada como indigente.

Como método usamos o seguinte critério: todo jovem de uma região pobre da cidade, com mais de dois ferimentos à bala, cujo corpo foi recolhido pelo carro do IML em hospital era considerado por nós uma vítima potencial da PM. Criamos um arquivo no computador com os dados de mais de 20 mil óbitos com essas características. Depois fazíamos o cruzamento com os dados da fonte Notícias Populares. Apenas por este método conseguimos descobrir a identidade de exatamente 145 desaparecidos.

A maior parte das descobertas veio do laudo de exame de cadáver e do resultado dos exames das impressões digitais. Foram mais de quatrocentos. Os casos mais complicados exigiam investigações fora do IML. Para isso utilizamos o nome e endereço do responsável pela retirada do corpo para enterro que vinham escritos à mão no laudo de exame cadavérico. Depois de um ano de pesquisas diárias havíamos conseguido identificar 833 pessoas de um total de 1.300 desconhecidos que tiveram suas mortes divulgadas pela imprensa.

Sidney passou a nos ajudar, pois já havia concluído o levantamento sobre o passado dos arquivos do NP. Então, passamos a usar os mesmos métodos para contabilizar também as vítimas mortas com identificação, cujos corpos passaram pelo Instituto Médico Legal, desde o primeiro dia de ação da Polícia Militar. Alguns estudantes de Jornalismo, contratados eventualmente, colaboraram nessas investigações. Trabalhamos durante 2 anos até abarcarmos o período que compreende abril de 1970 até junho de 1992, quando estava escrevendo o livro.

Nosso trabalho no IML abrangeu os tiroteios ocorridos no município de São Paulo. Deixamos de identificar muitos casos devido às dificuldades, sobretudo os da década de 70. A maior parte das pessoas que procurávamos tinha mudado de endereço. Acreditamos ter identificado 60% do total de vítimas dos tiroteios que envolvem a PM. Nosso Banco de Dados reunia, em abril de 1992, a identificação e um rápido perfil de 4.179 mortos. Infelizmente, a Polícia Militar se nega a divulgar os dados dos confrontos da década de 70.

Ao longo desses 22 anos, o número de crianças mortas pela PM de São Paulo se aproxima ao das execuções de opositores do regime militar, contabilizadas em duas décadas de repressão. Nosso Banco de Dados registra o transporte em viaturas da PM de 223 corpos de menores sem identificação aos hospitais. Depois de transferidos ao IML, 41 desses menores foram procurados por parentes. Foi o próprio Estado que providenciou o enterro deles como indigentes.

Nós constatamos que o carro de transportes de cadáver do IML, o rabecão, tinha sempre um mesmo destino quando ia recolher um morto pela Rota: o hospital. Anotamos que os rabecões recolheram pelo menos 3.546 corpos de vítimas da PM pela rede hospitalar do município. Sem ter razões para desconfiar da eficiência dos médicos, optei por continuar investigando as circunstâncias em que os suspeitos são atacados pelos policiais. Usamos um caminho que partiu da identificação das vítimas dos quinze PMs envolvidos diretamente no caso Rota 66, cujos nomes conhecíamos pelo levantamento do jornal Notícias Populares. Além das informações das fontes de pesquisa, tivemos nesta investigação uma grande ajuda de amigos e parentes das vítimas, sobretudo das viúvas e dos filhos órfãos. Não são todos os PMs que se identificam depois de matar civis durante o patrulhamento, e alguns o fazem fora do seu horário de policiamento regular da cidade. Por isso, com a ajuda das pessoas mais interessadas na justiça, criamos um arquivo especial no computador para documentar exclusivamente os casos dos matadores que mais se destacaram na PM.

O trabalho de identificação dos matadores e de suas vítimas nos deu condições para romper um outro obstáculo às investigações. Durante anos eu tentei obter informações sobre o andamento dos processos na Auditoria Militar de São Paulo, mas a consulta dos autos era impossível porque alegavam dificuldades de localização dos processos, devido ao fato de eu não fornecer a identificação dos envolvidos nos crimes. Apesar das muitas dificuldades para obter autorização para consultar esses autos, que é um direito público, eu obtive autorização para realizar as pesquisas na nova fonte. Eu as fiz em duas fases: na primeira, em 1987, foram quatro meses de leituras diárias de processos arquivados ou em andamento. Alguns juízes, como o da 2ª Auditoria, me facilitaram o trabalho concedendo a permissão para consultar e copiar dezenas de processos. Os outros juízes autorizaram somente a consulta no próprio cartório, sem a reprodução de nenhum documento. Essa limitação me obrigou a escrever à mão o resumo da leitura de mais de quatrocentos processos, num total de dez meses de trabalho na Justiça Militar.

Penúltima fonte de pesquisa de minha investigação, meu levantamento nos cartórios da Justiça Militar mostraram que o procedimento burocrático oficial na apuração dos crimes dos PMs é precário e tendencioso. Possibilitou também a descoberta de outro fato muito grave: a prova de que os matadores muitas vezes são incentivados pelo comando a matar criminosos.

Depois de ter identificado mais de 4 mil mortos por meio das fontes Notícias Populares, Instituto Médico Legal e família de vítimas, decidimos submeter nome por nome de nossa pesquisa aos arquivos da Polícia e da Justiça Civil, onde ficam registradas as informações sobre os criminosos processados no município. Meu objetivo nesta última ampliação do Banco de Dados era tentar descobrir se as autoridades da área de segurança falam a verdade quando defendem a ação dos matadores oficiais. Desde a criação da Polícia Militar, em 1970, até 1992, comandantes da PM, secretários de Estado e governadores garantiam que os tiroteios são legítimos e que os mortos são bandidos, criminosos dos mais violentos, assassinos, estupradores. O resultado de minha pesquisa na Justiça Civil mostra que a verdade está muito longe dos gabinetes das autoridades. O resultado de minha investigação, que abrange o período de 22 anos de ação dos matadores, mostra que a maior parte dos civis mortos pela PM de São Paulo é constituída pelo cidadão comum que nunca praticou um crime: o inocente. Continua na página 14

A denúncia sobre a venda de caixões e o informante

Eu estava nesse processo da pesquisa e, por conseqüência, visitava com freqüência o cemitério de Perus. Certo dia, estava fazendo um levantamento para outra reportagem a pedido da TV Globo sobre venda de caixões, cujas irregularidades da denúncia não consegui comprovar. Eu cruzei com o administrador do cemitério que me convidou para me afastar e ir ao fundo do prédio da administração. Fomos até as covas porque ele queria me contar uma história que pretendia contar já há bastante tempo. Ele contou-me que havia sido testemunha da abertura de uma grande vala nos anos 70, onde teria sido colocada uma quantidade muito grande de ossadas. Ele calculava alguma coisa por volta de 1.500 ossadas. Isso teria sido feito por parte dos homens da repressão política daqueles anos e ele guardava aquele segredo há muito tempo. Ele contou isso com algum detalhe. Ele me disse também, que havia falado sobre isso para vários diretores do Serviço Funerário, ele estranhava nunca terem tomado nenhum tipo de providência. Havia um projeto de inauguração de ossários em vários cemitérios e essa poderia ser uma oportunidade de regularizar aquela situação, pois esta o angustiava muito.

Eu voltei para minha casa. No dia seguinte, eu pedi algum tempo para a minha chefia de reportagem para averiguar aquela situação. Eu trabalhava com um chefe de reportagem maravilhoso naquela época, chamado Narciso Kalili, que infelizmente já morreu. Ele me disse: vai atrás porque isso é algo que realmente tem que ser checado. E eu voltei a falar com o administrador na segunda-feira, ele negou tudo o que havia me dito. Eu insisti com ele e não houve jeito. Eu voltei no final de semana seguinte e ele voltou a falar daquela história. Dessa vez procurei obter mais detalhes e ele me deu uma referência que poderia me levar a alguma comprovação. Ele contou-me que, certo dia, em 1979, foi visitado por Gilberto Molina, engenheiro do Rio de Janeiro e irmão de Flávio Carvalho Molina, assassinado por motivos políticos em 1971. Gilberto pediu algo que comprovasse a existência, naquele lugar, de algumas ossadas enterradas. Com a ajuda de operadores e uma retroescavadeira abriu-se o local e uma hora depois encontraram os primeiros sacos com as ossadas. Continuaram escavando e encontraram 3 ou 4 sacos, Gilberto Molina começou a passar mal porque tinha esperança de que aqueles sacos tivessem uma identificação de papelão, mas creio que com o passar dos anos estas desapareceram, provavelmente devido ao efeito da umidade. Gilberto Molina achou que seria impossível chegar a uma identificação. Ele passou mal, ficou emocionado, pediu ao Toninho – o Antônio Eustáquio, adminstrador do cemitério que me contou esta história – para fechar a vala. No dia 27 de julho de 1990, eu soube que havia a vala comum no cemitério Dom Bosco, em Perus. Comecei, então, uma longa investigação para checar esta história.

Eu fui atrás do engenheiro no Rio de Janeiro em agosto, e ele me confirmou a história que o Toninha havia me contado antes. Os detalhes eram idênticos. Não havia nenhuma ligação pessoal entre um e outro, então eu tive a certeza da existência da vala. Eu comuniquei à minha chefia, ao Narciso Kalili, e com essa certeza ele me disse: vai em frente e vamos ver no que vai dar. Depois de aproximadamente um mês eu tinha certeza absoluta de que a informação que Toninho havia dado era 100% verdadeira. Consegui isso também através da pesquisa sobre a Polícia Militar. Eu já tinha um universo de 60 mil documentos no Instituto Médico Legal e havia, por outro lado, a certeza da existência de uma vala com aproximadamente 1.500 ossadas.

A primeira coisa que eu procurei checar foi se a vala era clandestina realmente. O administrador do cemitério chegou a comunicar às pessoas do Serviço Funerário de que havia me contado sobre a vala clandestina. Pediram a ele para desconversar essa história. Dessa forma, eu passei a me preocupar com a manutenção dele no emprego e a trabalhar de forma mais discreta. Eu procurei na Prefeitura o Departamento onde estão todas as plantas dos cemitérios. Tive acesso a todas elas e descobri que onde Toninho me disse haver uma vala, na planta havia um projeto de capela e que a área destinada ao ossário ficava a mais de 400 metros dali. Eu me preocupei, inclusive, em medir – lá no cemitério – a distância dessa vala até a entrada e constatei que a área prevista para o ossário estava distante uns 400 metros dali. Procurei saber, também, se havia um registro oficial da vala, e realmente não havia. A partir desse momento, achei que a matéria era importante, pois no mínimo, havia naquele cemitério uma irregularidade grave, já que possuía uma vala clandestina.

O passo seguinte foi tentar saber quem é que estava enterrado naquela vala e, então, usei o Banco de Dados. Havia alguns vestígios das ossadas nos livros da administração do cemitério de Perus. Com a ajuda da Suzana Lisbôa, encontramos uma documentação bastante específica dentro do Instituto Médico Legal, em alguns laudos de exame necroscópico de vítimas da polícia política havia a letra "T" em vermelho, "T" de terrorista, esta era uma indicação dos policiais daquele período de que se tratava de um preso político. No entanto, a partir do final de 1973, não mais encontrei a letra "T" em vermelho. De qualquer forma, isso nos facilitou a procura, cruzamos as informações do Banco de Dados a partir de 1971, data de fundação do cemitério de Perus, até 1976, momento em que retiraram os corpos das quadras 1 e 2 da Gleba 1 e as colocaram na vala, após terem permanecido cerca de seis meses em uma sala da administração, com as listas de mortos e desaparecidos políticos e seus codinomes, o que nos permitiu chegar a um grau de certeza de que pelo menos 6 dos militantes, considerados "mortos oficiais" certamente estavam enterrados naquela vala.

Este resultado foi possível checando os livros de registro de entrada do cemitério. Maurício Maia, na época produtor do Fantástico, realizou esta pesquisa, bem como a busca das fotos desses militantes no IML. E infelizmente, devido às dificuldades de acesso à documentação, conseguimos encontrar apenas duas fotos desses militantes. Separamos todas as pessoas mortas pela polícia naquele período e chegamos a um número de 128 pessoas. Dos 128, os dados mostravam que 28 mortos haviam sido levados para o cemitério Dom Bosco, em Perus, e outros foram levados para o cemitério de Campo Grande, Cachoeirinha e demais cemitérios. Percebemos que havia absoluta coincidência entre as informações do IML e as do livro de registro de entrada do cemitério Dom Bosco. Eu procurava saber sempre a data de saída do corpo do Instituto Médico Legal. Nas fichas há a data de saída, nome do legista e com essas informações fomos consultar o livro do cemitério e lá constavam as mesmas datas de entrada. Tentamos reproduzir qual era o caminho que faziam os órgãos de repressão da época, como levavam os corpos das pessoas mortas etc. Eles saíam do IML e iam diretamente para o cemitério, era comum, rotineiro. Como os horários são muito próximos, podemos supor que eles não passavam em outro lugar.

A partir desses dados, chegamos aos seguintes nomes: Dimas Antônio Casemiro, Dênis Casemiro e Grenaldo Jesus da Silva, enterrados com seus nomes verdadeiros; Frederico Eduardo Mayr, enterrado como Eugênio Magalhães Sardinha: Flávio Carvalho Molina, enterrado como Álvaro Lopes Peralta: Francisco José de Oliveira, enterrado como Dario Marcondes.

Eu procurei exaustivamente a história da morte de Ailton Mortati, nos dedicamos a isso cerca de 15 dias, mas não conseguimos provar nada. Pesquisei sobre Sônia Maria de Moraes Angel Jones, pois o seu pai – o professor Moraes, já falecido – personagem do Globo Repórter, fez diversas exumações no cemitério de Perus, chegou a levar uma ossada para o Rio de Janeiro, mas depois obteve a prova de que esta era de um homem negro. A conclusão a que cheguei é de que sua ossada não estaria na vala clandestina.

Naquela altura da minha pesquisa no IML, eu apenas tinha obtido as suas fichas. Quando alguém morre de forma violenta ou de causa desconhecida, essa morte é registrada na delegacia mais próxima. Da delegacia é enviado um telex solicitando um carro de cadáver para o IML. Esse telex acompanha o corpo, quando este é levado para o IML. Quando o corpo chega, é acrescido ao telex uma ficha, onde constam as informações do telex e observações dos médicos legistas. As fichas que continham o "T" remetiam aos laudos necroscópicos que também possuíam um "T" em vermelho e tinham sempre o mesmo histórico da morte: tiroteios com ordem de segurança, após ordem de prisão. No entanto, naquele momento eu somente tinha acesso às fichas que me proporcionavam um perfil dos atingidos da violência policial. Observamos, também, um grande número de indigentes ou desconhecidos e, que a partir de 1971, geralmente, eram encaminhados para serem enterrados no cemitério Dom Bosco de Perus.

O passo seguinte foi procurar os parentes desses militantes em três estados brasileiros e seis cidades. Vocês imaginem o que significou a descoberta para esta gente. Eles deram seus depoimentos bastante emocionados, já que realmente havia um grau de certeza muito grande. O Globo Repórter mostra, sobretudo, o drama dos familiares e sua procura pelos mortos e desaparecidos políticos.

Depois de mais de um mês, já com a certeza da existência da vala e de que era clandestina, reunimos todo o material para um Globo Repórter de uma hora de duração. O Globo Repórter ficou pronto ainda em agosto de 1990. Como não havia nenhum prazo de abertura do serviço funerário do município, eu e Suzana Lisbôa procuramos o Diretor e falamos da existência de uma vala clandestina no cemitério Dom Bosco, e que eu estava realizando um Globo Repórter sobre os desaparecidos políticos e por isso queríamos gravar imagens dessa vala. Sabíamos do plano de abri-la para que aquelas ossadas fossem transferidas para um ossário geral. Manifestei o desejo de acompanhar o trabalho de abertura da vala, apesar de confirmar o projeto de criação de diversos ossários nos cemitérios de São Paulo. De qualquer forma, ele foi muito gentil e facilitou o processo de abertura da vala clandestina. A obra do ossário já estava em andamento lá no cemitério Dom Bosco, mas era um ossário entre 20 ou 30 outros espalhados pelos cemitérios da cidade, não era uma obra de destaque para o Serviço Funerário. Antes de falar com o Diretor do Serviço Funerário, eu passava no cemitério de Perus e pensava: o ossário vai ser inaugurado e eu não terminei a minha matéria... Ainda na reunião, o diretor autorizou as gravações durante a abertura da vala, indispensável para acabarmos a produção do Globo Repórter.

A prefeitura divulgou para a imprensa que seria aberta a vala. No dia 4 de setembro de 1990, às 8 horas da manhã, eu estava lá e creio que os jornalistas começaram a chegar ao meio-dia. A imprensa inteira divulgou este acontecimento na época com grande destaque. Eu produzi uma reportagem para o Jornal Nacional, que foi ao ar no mesmo dia. Mas o Globo Repórter só foi ao ar cinco anos depois, em 1995, quando da discussão sobre a Lei dos Desaparecidos.

*Caco Barcellos, que primeiro denunciou a existência das ossadas de Perus, é repórter da Rede Globo de Televisão e Globo News, autor de Rota 66 – A Polícia que mata (Globo, 1992). Este relato faz parte do livro Mortos e Desaparecidos Políticos: Reparação ou Impunidade?, organizado por Janaína Teles (Humanitas/FFCH/USP, 2000).


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