Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 234 - de 20 a 26 de outubro de 2003
Leia nessa edição
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Diário de Lisboa
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Tese: plano estratégico
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Vida sobre tela
 

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Vida sobre tela

ANTONIO ROBERTO FAVA

Flávio Thadeu aos 13 anos e, acima, ao lado de suas obras expostas na Casa do Lago: primeiro quadro aos 6 anos de idade

Quando se viu pela primeira vez diante de um desenho que acabara de fazer, Flávio Thadeu não imaginava que anos mais tarde inspiraria um evento dentro de uma universidade: o Arte, Educação e Filosofia: Flávio, Para além de uma exposição, que a Unicamp realizou na semana passada com a participação de nomes destacados da instituição, entre eles o filósofo Fausto Castilho, professor emérito da Unicamp. O evento teve o propósito de apresentar a vida e a obra do jovem pintor Flávio Thadeu, hoje com 16 anos, morador do Recanto da Fortuna, próximo ao Jardim São Marcos, região quase sempre associada à violência e à pobreza.

O evento contou com uma exposição de 30 quadros (óleo sobre tela) de Flávio, no Espaço Cultural Casa do Lago, no campus da Universidade, em Barão Geraldo, e com a participação de pesquisadores e estudiosos da Universidade.
Tímido, sorriso fácil no rosto, brincos na orelha esquerda, Flávio revelou que estava até apreciando a efervescência do acontecimento, cujo foco é a arte que desenvolve. Uma arte que começou a ser cultivada há dez anos, quando desenhou um quadrinho pla primeira vez, pelo simples fato de gostar de desenhar. A obra pioneira se perdeu no tempo.

“Agora, com a ajuda do Rogério (de Mello Basali, filósofo), é que começo a acreditar que talvez eu tenha algum talento para poder continuar nessa estrada e chegar a vender o que eu fazia”, diz o garoto, cuja produção artística soma hoje mais de 100 obras. Admirador de Monet, Picasso, Portinari, Da Vinci, Van Gogh e Michelangelo, Flávio diz que não trabalha todos os dias.

E há bons motivos para isso: estuda à noite, faz o 2º ano do ensino médio, e à tarde vai para o Direito de Ser, em Barão Geraldo. “Tenho muito pouco tempo para me dedicar mais à pintura, ter novas idéias e produzir obras diferentes”, explica.

Idéias – O artista acredita em inspiração. Mas quando surge a idéia, dependendo do quadro que pretende pintar, pode levar de dois a três dias para concluir. “Se eu pegar firme mesmo, posso terminá-lo em um dia. Claro que há obras em que às vezes demoro um pouco mais. Não importa o tempo, mas sim o quadro em si. As idéias brotam das formas mais curiosas possíveis e, às vezes, nos momentos mais diferentes, como andando na rua, estudando ou trabalhando”, conta.

De repente vê ou imagina uma árvore, uma hipotética cena de uma praia, de um mar distante (coisas que pessoalmente ainda não conhece). Ficam na cabeça até o momento em que vai para casa, mune-se de tubos de tinta, pincéis e uma tela e parte para a elaboração de mais uma obra. Flávio prefere trabalhar ao cair da tarde e à noite.

“São os momentos em que posso ficar sozinho, pois muita gente fica transitando em casa durante o dia”, diz. Quando está trabalhando, transporta-se para uma outra dimensão, vai para um lugar bem longe. Às terças-feiras, Flávio Thadeu auxilia nas oficinas do Direito de Ser, uma ONG que dá assistência às crianças e adolescentes, com idade entre 7 e 14 anos, da região do Jardim São Marcos. Diz que ainda tem muito a aprender, e “ensinar, ou passar um pouco do que a gente sabe pode ser um ótimo exercício para o nosso aprimoramento”, acentua.

Iniciou nas artes pintando paisagens e alguns animais, como cavalos. Com o passar do tempo, foi tomando gosto por outros temas e estilos, como a natureza morta, sua paixão atual e para a qual centraliza todas as suas energias. Ele acredita que ao mesmo tempo em que está ensinando, aproveita para aprender um pouco mais. Nas aulas, vai explicando as técnicas e nuances básicas para se obter determinados efeitos numa tela, o uso de equipamentos e outros materiais. Faz questão de explicar que medidas o artista deve tomar quando erra ao pintar uma determinada tela: “Num óleo sobre tela é até possível corrigir, o que já se torna impossível quando se trata de uma obra em acrílico”.

Garoto como qualquer outro de sua idade, Flávio gosta de futebol, desenhos animados na TV, ouve rap (tem preferência pelo grupo Racionais – “cujas letras expressam o que rola pelo mundo da periferia das cidades, do qual eu também faço parte”) –, samba e rock. “Mas quando estou pintando, prefiro mesmo o silêncio”, conclui. Aprecia as obras de Jorge Amado. Gosta de mitologia grega, hábito que adquiriu por meio do filósofo Rogério Basali. Só não lê mais obras do gênero por absoluta falta de tempo.

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O coração do pai

O pai de Flávio, Adauto Gonçalves, 64 anos, metalúrgico aposentado (antes foi fresador e operador de máquinas), natural de Aparecida do Norte, tem mais um filho, Jadilson, três anos mais velho. Conta que queria que o filho artista estudasse direito, para seguir os caminhos de uma tia que mora em São Paulo e também de uma família humilde. Até que Flávio chegou a pensar no caso. Mas a arte, com a qual se identificou ainda muito cedo, falou mais alto.

“Flávio é um bom garoto, aplicado e obediente. Em seu coração não há um pingo de revolta, apesar das dificuldades que a vida nos reservou tempos atrás”, conta Adauto. Diz que “graças a Deus” a vida da família melhorou bastante de dois anos pra cá. A família deixou a favela e hoje mora numa confortável casa de cinco cômodos, no Recanto da Fortuna, na região do São Marcos.

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A mão do filósofo

Vale lembrar que há dois anos, Flávio foi um dos entrevistados de um programa sobre crianças superdotadas exibido pelo Globo Repórter, da Rede Globo de Televisão. Antes, porém, havia sido citado em uma reportagem do jornal Folha de São Paulo, com o título O país desperdiça seus gênios. Foi por essa ocasião que Rogério Basali, na época mestrando em Filosofia da Unicamp, começou a interessar-se pela vida de Flávio Thadeu, então com 13 anos de idade. “Fiquei tão impressionado com a história de vida dele que decidi procurá-lo”, conta hoje. Basali é ligado à Unicamp por meio do Programa Comunidade Solidária, em conjunto com o IPES (Instituto de Pesquisas Especiais para a Sociedade) e prefeitura de Campinas. Trata-se de um programa de políticas públicas financiado pela Fapesp, totalmente desenvolvido na região dos Amarais, onde Rogério ministra aulas de Desenvolvimento Pessoal, Ética e Comunicação. Hoje faz licenciatura na Unicamp.

Ele diz que quando se interessou pela história de Flávio teve antes que passar por uma entrevista com os coordenadores do Direito de Ser e só depois é que pôde conversar com ele. Naquela época, Flávio morava num barraco de favela e dentro havia algumas telas que o artista estava começando a pintar. Pouco tempo depois, o garoto perdeu a mãe, doente havia algum tempo, e Rogério começou então a estimulá-lo a pintar com mais assiduidade. Talvez pudesse até algum dinheiro. “Procurei ajudá-lo a adquirir material, por meio de doações, para que de fato se desenvolvesse, pois pude perceber que ele era dotado de um raro talento para a pintura”, conta o filósofo.

E os encontros na casa de Rogério passaram a ser mais freqüentes, onde Flávio teve os primeiros contatos com obras sobre mitologia grega e história da arte, a partir de histórias e narrações, quando ambos, “mestre” e “discípulo”, refletiam sobre o que liam. O primeiro tema que despertou interesse no jovem artista foi a figura emblemática de Hércules, herói conhecido pela força, assim como pelas suas muitas e lendárias façanhas. Descobriu depois que a mitologia grega era muito mais que isso, a ponto de narrar trechos da Teogonia, obra clássica do poeta Hesíodo, que o impressionara.

Rogério lembra que a casa onde Flávio morava não tinha janelas. No entanto, percebeu que muitas de suas obras lembravam exatamente janelas, as paisagens vistas através delas. “Como um garoto que nunca foi a uma praia consegue retratá-las com tamanha originalidade e precisão?”, pergunta o filósofo, que acredita estar Flávio num processo de constante aprimoramento. Como todo artista que se preza.


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