Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 234 - de 20 a 26 de outubro de 2003
Leia nessa edição
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Diário de Lisboa
Cartas na mesa
Tese: plano estratégico
Saúde: acidentes de trânsito
Átomos em desordem
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(in) segurança alimentar
Atibaia: volume de água
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Do ‘anfiteatro sobre o Tejo’

EDGAR DEDECCA

Há duas semanas o historiador Edgar Salvadori de Decca, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, embarcou para Lisboa na condição de primeiro professor ocupante da Cátedra Brasil-Portugal em Ciências Sociais, que recém se instalou no contexto de um convênio de cooperação entre a Unicamp e o Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE). Antes de seu embarque, o Jornal da Unicamp fez um desafio a De Decca: registrar seu cotidiano em um diário de talhe clássico, um exercício de reflexão e observação do intelectual brasileiro em terras lusas. De Decca aceitou, viajou e, nem bem desfez as malas, já enviou seu primeiro texto. Que terá seqüência nas próximas edições.

A Torre de Belém, em Lisboa, construída entre 1515 e 1521

A cidade é assim conhecida, pelas sete colinas. Lisboa mais se parece com um anfiteatro sobre o Tejo. Talvez, para nós brasileiros o espetáculo se completa no jogo insinuante da história, ao relembrarmos a partida dos portugueses rumo ao Atlântico. Deste anfiteatro da história, me descubro na memória de um outro, já há tanto tempo por aqui. A sensação de estarmos em um anfiteatro presenciando a reapresentação do passado junto à Torre de Belém é ao mesmo tempo inquietante e nostálgica.
Li, meses atrás, um autor português que viveu a maior parte de sua vida no exílio e que nos fala deste lugar de memória que é Portugal. Aqui, ao que parece, o tempo se recusa a passar. Terra da memória, Portugal, segundo Eduardo Lourenço, é também o território da saudade. Nem da nostalgia, nem da melancolia. Ela, a saudade, habita o mesmo espaço, mas não se confunde com aquelas outras modalidades de sentimento com relação ao tempo. A saudade, este sentimento de amor excessivo que se apossa de todo o tempo do passado, sem permitir esgotá-lo, parece assumir uma dimensão onírica, de sonho. Ainda voltaremos a este tema em outra ocasião, mas é esta saudade, que se senta ao nosso lado, diante deste anfiteatro da história, que é a cidade de Lisboa.

Diante dos relatos de viagem dos negociantes venezianos que vieram espionar Lisboa, a partir dos idos de 1492, nos perguntamos quais as lendas contidas nestas margens do Tejo, que projetaram os portugueses como um povo destinado a realizar uma missão ao mesmo tempo redentora e civilizatória. Diante desta indagação, Sergio Buarque de Holanda iniciou a sua trajetória historiográfica, em 1936, com o livro Raízes do Brasil, acabando por concluir este percurso intelectual em 1957, quando no intervalo de dois meses defendeu duas teses complementares sobre a sociedade e a cultura portuguesas na época dos descobrimentos. Uma delas, a ainda inédita A Formação da Sociedade Portuguesa na Época dos Descobrimentos, defendida na Escola Livre de Sociologia e Política, e a outra, defendida na Universidade de São Paulo, tornou-se, quem sabe, a sua obra de maior densidade historiográfica, Visão do Paraíso.

Há alguma coisa de inacabado em sua tese de mestrado que fascina o leitor. Talvez seja o olhar incerto e investigativo, tal como aqueles olhares de mercadores venezianos e genoveses que pelo estuário do Tejo navegaram. Esta tonalidade pouco afirmativa e mais flutuante do texto de Sergio Buarque parece indiciar aquela impertinência do olhar estrangeiro sobre a Lisboa dos descobrimentos. Olhares maravilhados com o seu cosmopolitismo, como o daquele viajante jesuíta Giovanni Botero, segundo o qual “Lisbona, che pure è la magior cittá d´Europa, accentuandone Parigi e Constantinopoli”. Acentua-se em todos os relatos de viajantes o caráter extrovertido de Lisboa, cidade cheia de vida, que contrasta com a desolada paisagem do interior do país. Um outro viajante italiano, Filippo Sasseti, por volta de 1578, também se surpreende com a agitação constante da cidade: “aportam aqui barcos em profusão infinita, saídos da Dinamarca, do Báltico, da Holanda e da Flandres inteira, de Inglaterra e toda a costa da Bretanha e França, trazendo de tudo, mesmo ovos e galinhas, sem falar nas somas de dinheiro, e levando de volta especiarias…”, mas também percebe o contraste de Lisboa com os interiores do país: “A bondade do porto a tudo daria remédio se fôra natural, e não o é, a esterilidade do país, pois vêm dos mares gélidos as vitualhas que o sustentam…De que serve, pois, querer forçar a todo o custo a própria terra? Porquê tamanha lida, se as coisas hão de chegar a seu tempo ao porto do mais belo rio da Europa inteira, no meu entender?”.
Destas e de outras indagações se ocuparam os viajantes estrangeiros e assim também podemos compreender a tese inédita de Sergio Buarque de Holanda, hoje sob guarda do Siarq (Arquivo Central) da Unicamp. Com um elemento adicional: a viagem de Sergio ao passado pretendeu encontrar aquele Portugal que nos deu a nossa forma cultural e os nossos traços psicossociais. Ao final de sua tese, o autor se indaga sobre este Portugal enigmático e movediço e espera descobrir, nesta atitude especular, a imagem de nós mesmos, no momento de nossa formação, para além dos mares atlânticos.

A procura da imagem de nós mesmos é inevitável, quando percorremos pela primeira vez as ruas de Lisboa. Em cada rosto que passa pelas ruas vamos atrás de nossas semelhanças e, hoje, mais do que em outros tempos, nos encontramos a cada esquina.

Este tema merece uma atenção especial, pois é muito grande a quantidade de brasileiros que hoje se emprega no setor de serviços da cidade. O efeito bumerangue que Portugal havia experimentado com as suas antigas colônias africanas, parece aplicar-se hoje aos ex-colonos brasileiros. A situação nem sempre é confortável e percebemos em todos os lugares a preocupação com os negros africanos e com os brasileiros imigrantes. Ainda voltarei a este tema numa próxima oportunidade, por ser de grande interesse político e acadêmico. Apenas posso antecipar o contexto social da imigração em uma experiência vivida pessoalmente.

Depois de ser muito bem recebido pela presidência do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE), dando início à Cátedra Brasil-Portugal em Ciências Sociais, pelo convênio de cooperação com a Unicamp, precisei tomar providências para a abertura de uma conta bancária. Para isso, tive que me dirigir à Loja do Cidadão (o Poupa-Tempo português) para fazer o meu número de contribuinte e deparei, apesar do título que ostenta, com o mau trato aos cidadãos, principalmente se este for imigrante. A funcionária pública, além de me tratar com desdém, me censurava por eu não ter me informado, junto a outros imigrantes brasileiros, dos trâmites burocráticos. Após quase uma hora de desconfianças, informei-lhe que eu não era um trabalhador imigrante, mas um professor convidado do IXQTÊ (é assim que eles pronunciam ISCTE). Imediatamente, tudo se modificou e a funcionária passou a me tratar com cordialidade (olha aqui aonde estão as raízes do Brasil, meu caro Sergio Buarque), oferecendo-me seu telefone para que eu me comunicasse com o Instituto.

Esta ambígua relação, que oscila entre a hospitalidade e a hostilidade, tem sido freqüente na minha primeira semana em Lisboa e essas modalidades de sentimento variam na proporção direta da inserção social de cada um, isto é, como convidado ou imigrante. Diante desta duplicidade de inserção social, lembro-me da condição da cidadania de segunda ordem, onde aquele que está em situação inferior acaba por ouvir sempre a famosa frase: Cidadão, mostre-me a identidade! Mas, deixo para uma outra ocasião a abordagem deste e de outros temas que fazem convergir os interesses do ISCTE e da Unicamp.

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