Jornal da Unicamp 187 - 26 de agosto a 1 de setembro de 2002
Jornais anteriores
Unicamp Hoje
PDF
Acrobat Reader
Unicamp
12
Capa
Emprego público
Colesterol
Atletas
Macarrão
Música
Recursos Hídricos
Ditadura
Nepo
Na Imprensa
Nelson Pereira
Equipamentos
Prêmio
Vida Acadêmica
Fop
Surdez
Nelson Rodrigues
Nelson Rodrigues
Ame-o ou deixe-o

MANUEL ALVES FILHO

O jornalista, escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues completaria 90 anos em 23 de agosto. Morto em 21 de dezembro de 1980, ele deixou uma vasta obra, que até hoje suscita controvérsia. Quando ele é o assunto, não há meio termo: há os que o amam e os que o odeiam. O Jornal da Unicamp ouviu dois especialistas para saber que contribuições o autor deixou nas áreas da literatura e da dramaturgia. Ambos afirmaram que Nelson Rodrigues fez escola nas duas atividades. Mas, como já foi dito, é impossível encontrar total convergência em torno dessa personagem de destaque da vida cultural brasileira. Assim, quando perguntados se o aniversariante póstumo tem recebido o devido reconhecimento por parte da crítica, os entrevistados adotaram posições diferentes. Seja lá onde estiver, o ex-torcedor do Fluminense deve ter ficado empertigado.

Berta Waldman, professora do Departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp, considera que, embora haja críticos que tenham trabalhado em torno do teatro de Nelson Rodrigues, por exemplo, ainda falta uma avaliação da obra dele como um todo, "para o bem ou para o mal". Já Marcelo Peccioli Paulini, que realizou seu mestrado na Unicamp tendo como tema "Alguns aspectos da dramaturgia de Nelson Rodrigues", está convencido de que o autor tem tido o reconhecimento que merece. "Nelson alcançou o maior dos reconhecimentos de um artista, que é o fato de ter criado um espaço no imaginário popular", diz.

Um dos aspectos analisados em profundidade pela professora Berta Waldman é a chamada produção feminina de Nelson Rodrigues. Ele escreveu vários romances folhetinescos com pseudônimos femininos. O mais famoso deles é Suzana Flag. Nessas obras, o autor não deixa de prestar certo tributo à mulher, pois divide com ela o poder de reproduzir sentidos. "Mas ele destina a ela um território irresponsável, isto é, o registro "baixo", popular, que não deveria contaminar as águas de sua produção mais cuidada e experimental, que é o teatro, este sim assinado com seu próprio nome", afirma a especialista.

Se com a dramaturgia Nelson Rodrigues convive com a pesquisa inovadora, no romance, conforme Berta Waldman, ele fixa de modo mais nítido as formas do passado: o folhetim e o melodrama. Estes, caracterizados pela encenação da desmesura, do excesso. "Apesar do mau gosto a ele inerente, trata-se de um gênero profícuo, capaz de proliferar suas formas até os dias de hoje. Vide as telenovelas, por exemplo", afirma a professora. Nos romances rodrigueanos, acrescenta a pesquisadora, as reviravoltas da ação são tais e tantas que se é levado a julgá-las como irracionais, embora lógicas. "Tais reviravoltas encontram respaldo funcional na aproximação da "estética do espanto" – a expressão é de Peter Brooks – própria ao melodrama, que propicia inversões inesperadas e mirabolantes no nível do enredo".

Esse segmento da obra de Nelson Rodrigues, na avaliação da professora do IEL, não se estanca nele próprio. Suas características, diz, avançam para o teatro, de modo mais disciplinado, e para a crônica, "onde a imediatez que visa ao real acaba colocando alguns obstáculos ao devaneio excessivo". Ou seja, há pontos de confluência na produção rodrigueana como um todo. "O que varia é o modo de formalizar os ingredientes, o grau de contenção da desmesura", explica Berta Waldman. Ela esclarece, ainda, que Nelson Rodrigues iniciou sua carreira de romancista quando já havia escrito as peças Mulher sem Pecado (1941) e Vestido de Noiva (1943).

Os romances aparecem para resolver um problema de sobrevivência financeira. Depois, foram transformados em verdadeiros best sellers, que tiveram sucessivas reedições e adaptações para o rádio ou o cinema. "Eles nasceram para responder a um apelo mercadológico, e aí está o seu limite. Mas nem por isso o autor deixa de pôr a nu as mazelas da sociedade brasileira ao abordar criticamente um sistema de relação, cujos valores de base estão abalados". Por tudo isso – e certamente por outros aspectos não abordados – é que Nelson Rodrigues é um autor que suscita paixões. "Há os que gostam de seus textos e os que odeiam. A crítica acompanha esse movimento de adesão e recusa. Mas o mínimo que se pode ponderar é que o autor criou escola no Brasil. Escritores tão diferentes como Dalton Trevisan e o dramaturgo Plínio Marcos podem ser lidos e pensados a partir do referencial rodrigueano", destaca Berta Waldman.

Obsessão – A questão do excesso, no entender de Marcelo Peccioli Paulini, é um dos pilares do estilo de Nelson Rodrigues. A produção rodrigueana, diz, é reconhecidamente um nicho de obsessões, e não há obsessão sem excesso. "Para mim, o exagero melodramático, mesmo não sendo criação de Nelson, é uma das grandes qualidades de sua obra". Em sua dissertação de mestrado, Paulini privilegiou o estudo da relação entre o amor e a morte, aspecto que permeia as peças do dramaturgo. Em Nelson, reforça o pesquisador, ninguém ama impunemente. Daí a profusão de temas tão recorrentes quanto as doenças, desde a lepra, o câncer e a cegueira, até itens mais triviais como espinhas, vermes e varizes. "Ou seja, é como se o corpo, por ser o lugar do sexo e do prazer, devesse amargar uma culpa por isso, sendo também o lugar da morte".

A historicidade de Nelson Rodrigues, segundo Paulini, é visível nas "tragédias cariocas", por meio das quais o dramaturgo melhor explorou o humor, transformando as vidas miúdas dos personagens suburbanos em comédias trágicas, por onde circula uma seleção de derrotas. Por estarem à margem da sociedade, esses personagens são descomprometidos com as leis que a regem, transgredindo assim todos os limites racionais e sociais. "É interessante notar que esse descalabro assola não apenas o mundo baixo dos subúrbios, mas também as famílias tradicionais que perderam os eixos e passaram a ter seu universo sustentado por aparências", afirma. Ainda conforme Paulini, a contribuição de Nelson Rodrigues para a dramaturgia brasileira é "única e incomparável". "Ele abriu caminhos para muitos dramaturgos, mas continua à espera de um sucessor que faça jus ao seu legado".