Jornal da Unicamp 187 - 26 de agosto a 1 de setembro de 2002
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Eneuton PessoaMitos e verdades
do emprego público

Pesquisa contesta estigma de inoperância do setor público no Brasil e revela que países desenvolvidos empregam bem mais  

LUIZ SUGIMOTO

Empregado público é aquele que pendura o paletó na cadeira pela manhã, fingindo-se presente na repartição, voltando para apanhá-lo somente no fim do expediente. No Brasil é arraigada a imagem de um funcionalismo preguiçoso e incompetente, e acima de tudo inchado, mesmo depois dos anos 30, quando se esboçaram as primeiras tentativas de racionalização da máquina administrativa. É uma idéia sem muito embasamento empírico e que serviu para fazer do emprego público, nos anos 90, alvo de políticas restritivas como suspensão de concursos de admissão, programas de demissão voluntária, contratações precárias e, claro, ofereceu importante argumento para as privatizações.

O estigma que envolve o servidor público brasileiro é injusto, conforme a tese de doutoramento de Eneuton Dornellas Pessoa de Carvalho Filho (foto acima), intitulada Evolução do Emprego Público no Brasil nos Anos 90, defendida junto ao Instituto de Economia da Unicamp, sob orientação do professor Paulo Eduardo de Andrade Baltar. Trata-se da primeira pesquisa de fôlego em que se procura sistematizar e interpretar as informações em torno do assunto. Segundo o pesquisador, os estudos sobre administração pública sempre deram ênfase ao que seriam aspectos clientelistas da admissão de pessoal, sem vincular o crescimento do quadro de servidores ao da demanda da população por prestação de serviços.

Eneuton Pessoa começa oferecendo um painel sobre a evolução do emprego público nos países avançados, notadamente no período pós-Segunda Guerra, quando a necessidade de suprir carências em áreas sociais como saúde e educação transformaram os servidores numa parcela importante da força de trabalho. O professor atesta que mesmo nesses países, apesar das medidas de ajuste e redução do emprego público nas duas últimas décadas, os quadros mantiveram-se estáveis ou cresceram.

A evolução do emprego público no Brasil, dos anos 30 até a década de 80, considerando a expansão da máquina e dos serviços, está no segundo capítulo da tese. O autor comenta a baixa oferta de serviços nas esferas estadual e municipal, com concentração do emprego na União. Sobre os anos 80, ele aborda a crise fiscal e financeira do Estado com o propósito de reconstituir o clima intelectual e político que levou a propostas de reorganização do Estado e de redução da máquina pública. Nessa época ocorreu também a mudança quase universal de mentalidade dos governos e seus responsáveis econômicos, o chamado "Consenso de Washington", que deu o parâmetro das reformas a serem efetivadas.

Tantas informações, sustentadas por estatísticas de variadas fontes (veja tabelas), servem para contextualizar a proposta da tese de doutoramento, apresentada no último capítulo, que é a de investigar a evolução do emprego do setor público nos anos 90. Em suas conclusões, o pesquisador afirma que no Brasil, em comparação aos dados internacionais, não há pessoal em excesso no setor público; que a maioria dos funcionários exerce atividades-fim, como na saúde e na educação – ainda mais depois de acentuada a descentralização dos serviços, primeiro para os estados e agora para os municípios; que estão diminuindo as funções burocrático-administrativas (freqüentemente associadas ao inchaço do funcionalismo e ao empreguismo de Estado); e que o Nordeste, ao contrário do que se pensa, não é a região de maior empreguismo no País.

Eneuton Pessoa é professor adjunto do Departamento de Economia da Universidade Federal do Maranhão e vem dando seguimento a suas pesquisas no setor público, agora com o objetivo de identificar se está se configurando um novo perfil do Estado brasileiro em suas diferentes esferas de atuação. Ele concedeu a seguinte entrevista ao Jornal da Unicamp:

Jornal da Unicamp - O estigma que persegue o servidor público não se deveria aos cargos administrativos, numa injustiça a funcionários de atividades-fim como da educação e saúde, que vivem reclamando da falta de pessoal?

Eneuton Pessoa - Sem dúvida, e é exatamente isso que tentamos mostrar na pesquisa. Abrimos a PNAD (Pesquisa Nacional de Amostragem Domiciliar) ao nível das ocupações no setor público e, a partir de uma classificação sobre o que seriam atividades-fim, meio e meio-fim, identificamos que o emprego público cresceu, pelo menos nos anos 90, nas atividades-fim, em decorrência da descentralização de programas sociais em nível municipal, como de educação e saúde básicas.

P - Poderia fazer uma comparação entre o emprego público no Brasil e em outros países?

R - O Brasil apresenta a segunda menor proporção de emprego público no emprego total (11,3%), perdendo apenas para o Japão (7%); e a quinta menor proporção em relação à população (5,1%), atrás de Grécia (4,7%), México (4,3%), Turquia (3,9%) e Japão (3,6%). Por esses dois critérios – proporção do emprego público no emprego total e na população –, as experiências internacionais denotam a dimensão reduzida do emprego público no Brasil. Cabe ressaltar que isto ocorre apesar da tradição liberal de Estado de alguns países, como Estados Unidos e Inglaterra, para citar apenas dois exemplos, e da evidência de que até meados da década de 90 vários países da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) desenvolveram políticas restritivas para o emprego público.

P - A partir de quando essas políticas foram aplicadas aqui?

R - O Brasil se singulariza, dentre os países latino-americanos, por ser um dos últimos a implementar as políticas de ajuste e reestruturação do setor público. Só a partir de 1991/92 é que se iniciou mais efetivamente o processo de privatizações, e no período do Plano Real se ampliou o leque das mudanças institucionais, dentre elas as medidas tomadas no âmbito da administração pública. As medidas restritivas sobre o emprego público foram mais incidentes na esfera federal. Apenas na segunda metade da década, no contexto do processo de renegociação das dívidas estaduais, os estados passaram a implementar essas medidas. Tratando-se dos municípios, esse movimento foi ainda menor.

P – E quais foram essas medidas?

R – Na esfera federal, desde 1989, no Governo Collor, começaram as demissões de funcionários públicos não-estáveis, a limitação de novas contratações, os "estímulos" à aposentadoria, a terceirização de serviços, etc. No Governo FHC, a anunciação do plano de demissão voluntária e a continuidade das políticas restritivas, como o congelamento de vagas, deram continuidade ao processo. Mas foi o Programa Nacional de Desestatização que, ao longo dos anos, produziu efeitos mais permanentes. Antes de privatizadas, geralmente as empresas adotam medidas visando a redução de pessoal. Até 1997, no âmbito federal, 57 empresas foram privatizadas e 147.619 pessoas transferidas para o setor privado. Na esfera estadual, o processo de ajuste é mais recente. Foi a partir de 1994/95 que começaram os acordos de negociação das dívidas estaduais e adiantamentos de recursos federais, incluindo a venda de bancos, estatais, participações acionárias e o compromisso de cortar gastos. No biênio 1996/1998, segundo dados do BNDES, foram privatizados 24 empresas e bancos estaduais e vendida a participação acionária em outras 13. Os municípios vêm passando ao largo das políticas mais efetivas de corte de pessoal.

P – Quais são os números da evolução do emprego público na década de 90?

R – Em 1992 tínhamos cerca de 7,5 milhões de empregados públicos. Em 1999, o número cresceu para pouco mais de 7,9 milhões. Um aumento absoluto de 400 mil novos empregos e uma variação aproximada de 5,6% em sete anos; é um ritmo lento de aumento médio do emprego. Apenas na esfera municipal o emprego cresceu de forma contínua. O emprego estadual cresceu na primeira metade dos anos 90 e caiu na segunda. Na União, o emprego reduziu-se ao longo da década. A União e os estados contribuíram para reduzir e os municípios para aumentar o emprego público. Em 1999 o emprego municipal já representava 42% do emprego público, seguido das esferas estadual (40%) e federal (18%).

P - O crescimento da administração indireta não seria uma manobra que faz das autarquias novos cabides de emprego? O senhor fala que a dificuldade de se realizar um sistema de mérito (concursos) vem desde os anos 30. Como assim?

R - A reforma administrativa do Governo FHC partiu de um diagnóstico incorreto da administração pública no País. Nesse diagnóstico é como se a administração pública burocrática, nos moldes weberianos, tivesse sido implantada nos anos 30, sendo nos anos 90 necessário "avançar" para uma reforma gerencial (a administração pública deveria funcionar nos moldes da administração privada: flexibilização das relações de trabalho, etc.). Ora, na tese mostramos que sempre foi problemática a vigência de um dos elementos-chave da administração burocrática, o concurso público. Era comum na administração indireta a contratação de empregados não concursados, os extra-numerários, e que depois acabam efetivados. E foi a forma de contratação que mais cresceu em termos relativos nos anos 90. A partir da Constituição de 88 os temporários não puderam mais se efetivar, mas podem funcionar como forma clientelista de contratação. Porém, não se pode dizer a priori que tais contratações sejam mero cabide de emprego. Nos anos 90, no mundo e no Brasil, a tendência do setor público foi incrementar esses vínculos de emprego, por serem menos custosos para o governo. Assim, é preciso não apenas considerar a forma de entrada no serviço público, mas também o que os empregados públicos fazem. A lição dos anos 90 foi que cortes indiscriminados de pessoal muitas vezes afetaram a prestação de serviços públicos essenciais.

P - A municipalização de serviços não estaria apenas transferindo para as prefeituras, da união e do estado, o ônus do empreguismo?

R – É preciso antes esclarecer o que se entende por "empreguismo". O termo é usado sempre de forma pouco rigorosa. Nos municípios, o emprego cresceu nos anos 80 e 90 como reflexo da descentralização dos programas sociais, sobretudo saúde e educação básicas. Houve, também, a estruturação da máquina pública, levando-se em conta que dos 5.500 municípios hoje existentes, 1.300 foram criados depois de 1989. Por outro lado, mostramos na tese quão incipiente era a máquina municipal até meados dos anos 70. A distribuição do emprego público por esfera de governo é uma mostra disso. Aliás, a descentralização dos serviços públicos é um processo de âmbito mundial. Há cada vez mais o entendimento de que eles são prestados de forma mais adequada pela esfera mais próxima do beneficiado. Em suma, o emprego público municipal cresceu nos anos 90 em contrapartida à expansão de serviços básicos. Pode haver, de certo, casos de admissão como cabide de emprego, mas isso não se constituiu o grosso das contratações. As ocupações que mais cresceram nos municípios foram as de professor primário, auxiliar de enfermagem, etc. Além disso, a Constituição de 88 vedou a possibilidade de tornar estável o pessoal contratado sem concurso.

P – Seu estudo desmistifica a idéia de que o Nordeste seria o maior berço do empreguismo.

R – As primeiras referências à expansão regionalmente diferenciada do emprego no setor público datam dos anos 60. Na ocasião, as análises sobre as mudanças na estrutura ocupacional do País, com a queda dos ocupados agrícolas e conseqüente aumento dos não-agrícolas, deram ensejo a visões que atribuíam ao crescimento do emprego público nas regiões menos industrializadas, a mesma natureza do crescimento do comércio ambulante. Ademais, o emprego público nas regiões pobres seria proporcionalmente maior, pois a falta de dinamismo econômico faria do setor público a fonte principal de empregos. Também essas regiões seriam mais tocadas por relações de clientelismo e nepotismo no trato da coisa pública. Nessa visão, o Nordeste seria o caso paradigmático desse tipo de crescimento do emprego no Estado. No entanto, as informações empíricas trataram de invalidar esse tipo de análise. A relação emprego público/população residente por regiões, em 1995, denota não haver proporcionalmente mais emprego público no Nordeste que nas demais regiões – pelo contrário, apresenta a menor proporção de empregados públicos na população residente.

P - Trabalhadores que estão fora da máquina pública sonham mais que nunca em entrar nela, em função da estabilidade diante de tanto desemprego. Como vê o futuro dessa máquina com a desestatização?

R - O Brasil é um país carente de serviços básicos, com uma distribuição de renda muito desigual. Ora, a população mais pobre só pode contar com os serviços públicos e sempre vai demandar serviços de saúde, educação, creche, etc. São as áreas trabalho-intensivas e são principalmente nelas que o emprego público cresce. Há nitidamente a carência de pessoal nas atividades-fim. Por outro lado, existe o compromisso com o orçamento equilibrado. A Lei da Responsabilidade Fiscal é um reflexo disso. No resto do mundo, os governos vêm "solucionando" isso da seguinte forma: se de um lado há a intensificação da demanda por serviços, e do outro o compromisso com o orçamento equilibrado, busca-se uma ampliação de serviços com o mesmo número de trabalhadores, ou então se contratando de forma precária. Em todo o mundo, e no Brasil, cresceram as contratações precárias, de pessoal sem estabilidade. Enfim, o setor público não é mais, necessariamente, sinônimo de emprego estável.