Leia nesta edição
Capa
Monteiro Lobato
Cartas
Educação física cidadã
Educação acolhedora
Engenharia Elétrica
Mandarim 16 e 17
Mulher na propaganda
Grandes varejistas
Congelamento do pão francês
Esgoto do Atibaia
História de Paulínia
Painel da semana
Teses
Livro da semana
Unicamp na mídia
Portal da Unicamp
História das Guerras
Auto-retrato
 

4

Estudo prático de pós-doutoramento recupera a cultural
patrimonial dos alunos de escola municipal

Em busca de uma educação
acolhedora
para crianças de
comunidades populares

LUIZ SUGIMOTO

Fotos: Antoninho Perri/DivulgaçãoMarcos Garcia Neira vem militando há 20 anos na educação pública, como professor e agora como pesquisador. Depois da formação obtida na USP – pedagogo, mestre e doutor em educação –, Neira procurou a supervisão do professor Jorge Sergio Pérez Gallardo, no Grupo de Pesquisas em Educação Física Escolar da FEF/Unicamp, para realizar seu projeto de pós-doutoramento. Trata-se de um estudo prático que visou trabalhar com a cultura patrimonial de um grupo de crianças de uma escola pública em Osasco (SP), a maioria descendente de imigrantes do Norte e Nordeste.

Educador aprofunda enfoque nos jogos de brincadeira

“Meu objetivo é encontrar possíveis caminhos para construir uma experiência educacional acolhedora para todos os alunos, por várias razões. Uma delas é que a escola tem acolhido nos últimos anos um público com o qual não está preparada para trabalhar. Sendo herdeira e porta-voz das construções da cultura dominante, a escola contemporânea se vê em dificuldades de proporcionar condições para ampliar os saberes culturais daqueles que nela chegam”, justifica.

Na opinião de Marcos Neira, ao longo do século 20, a escola estruturou sua ação a partir das referências culturais dos privilegiados e isso se fez através do currículo. “Sabemos que o currículo forma identidades. Por isso, ao prestigiar determinados saberes e negar outros, a escola contempla uns e discrimina a outros. Esse fenômeno é constatado em todos os componentes curriculares e especialmente na educação física, pois ao prestigiar uma cultura corporal euro-americana, esta disciplina nega a cultura corporal das comunidades nortistas e nordestinas, por exemplo, bem como as urbanas, rurais, dos happers, skatistas, dos que brincam na rua”, observa.

O professor explica que o multiculturalismo crítico na educação física convida os educadores a pensar o currículo a partir dos alunos que chegam à escola, conferindo-lhes a voz necessária para reafirmar suas identidades. No período de agosto de 2004 a dezembro de 2005, Marcos Neira trabalhou com um grupo de alunos de primeiro ciclo do ensino fundamental de uma Escola Municipal de um bairro periférico da cidade situado às margens da rodovia Raposo Tavares. São crianças que vivem numa comunidade desprovida de condições mínimas, como trabalho, saúde, transporte, lazer, alimentação adequada e saneamento.

Questão inicial – “Quais são os jogos, brincadeiras, esportes e danças que eu e minha família conhecemos e como podem ser realizados na escola?”. Estava feita a pergunta a partir da qual Marcos Neira investigaria a possibilidade de uma intervenção curricular multiculturalista da educação física. O mapeamento dos espaços de lazer da comunidade mostrou o que poderia ser trazido para dentro da escola: os saberes adquiridos nas canchas de malha e bocha, três praças com tabuleiros de damas e dominó, a quadra da escola apenas para o futebol, e as ruas para jogos de queimada, peladas, chuta a lata, melê, linha, polícia e ladrão, bolinha de gude, pega-pega, taco, pipa, pião, dama e alerta. Não havia espaços para dança ou ginástica.

Mas não se tratava apenas de oferecer lazer. O trabalho foi acompanhado de muita reflexão em torno das atividades propostas, a partir da visão pós-crítica da educação transposta para o currículo de educação física escolar, sustentada por uma pesquisa bibliográfica em que se procurou rever a literatura sobre a teorização curricular mais ampla confrontada com as propostas curriculares comumente utilizadas nas escolas. “Também fizemos observações do entorno da escola, reuniões informais com os outros educadores e com a professora regente de classe, além da elaboração do currículo e da intervenção pedagógica ao longo do ano letivo”, informa. Marcos Neira ainda se muniu de entrevistas com alunos, filmagens das aulas, registros em diário de campo e avaliação dos materiais produzidos pelas crianças.

Cultura corporal – Citando a literatura referencial da área, o pedagogo lembra que o movimento humano é uma forma de expressão e constituinte da própria cultura e que, nessa visão, constitui-se em patrimônio de um grupo social, traduzindo suas formas de ver e entender o mundo. Nesse sentido, cita o educador Paulo Freire, que defendia uma prática educativa libertadora, que visasse ouvir a voz e, portanto, a cultura das comunidades populares.

“Quando problematizamos uma luta, por exemplo, abordamos uma prática motora que envolve desequilíbrio, imobilização, contusão, mas também, exploramos movimentos sociais de oposição e disputas presentes em manifestações que fazem parte do universo cultural. Isto significa que a criação das lutas e suas transformações ao longo do tempo, estão fortemente vinculadas às condições sócio-históricas de resistência de determinados grupos (como a capoeira, por exemplo). Nesse sentido, à escola cabe o estudo do cabo de guerra, kung fu, judô, mãe de rua e outras”, ilustra Marcos Neira.

O educador acrescenta que a ginástica, embora atualmente associada ao condicionamento físico, apresenta intersecções com a arte e com mobilizações sociais européias no decorrer dos séculos 18 e 19. Assim, o saltar, girar e dar cambalhotas, por exemplo, podem fazer parte de coreografias elaboradas pelos alunos e que expressem suas idéias e sentimentos sobre os temas sociais mais relevantes. Danças folclóricas, por sua vez, devem ser valorizadas como patrimônio de cada grupo e não inseridas na escola à mercê de modismos, como geralmente ocorre.

O professor Marcos Garcia Neira: há 20 anos militando na educação pública“O que queremos nesta concepção de currículo é valorizar a dimensão expressiva dos movimentos, aqui entendidos como linguagem, e isso só poderá ocorrer no interior das manifestações da cultura corporal”, insiste Neira. O professor observa ainda que quando se aborda diferentes manifestações corporais, deve-se lidar com questões de gênero, classe e etnia, cabendo ao professor a condução de uma intensa discussão. “Os alunos trazem temas polêmicos como a apologia às drogas, uma dança sensual, a pipa com cerol etc. Com esta abordagem temas como ética, sexualidade, mercado de trabalho e diversidade cultural permearão as aulas de educação física, remetendo a um posicionamento crítico e reflexivo dos alunos”, pondera.

Teorias curriculares da educação física

O professor Marcos Garcia Neira explica que é no alvorecer do século XX que o currículo desponta como objeto específico de estudo e pesquisa, nos Estados Unidos. Em conexão com o processo de industrialização e os movimentos migratórios, que intensificaram a massificação da escolarização, houve um impulso para racionalizar o processo de construção, desenvolvimento e testagem dos currículos. O currículo, nesse contexto, era visto como um processo de racionalização de resultados educacionais, cuidadosa e rigorosamente especificados e medidos.

O modelo institucional dessa concepção de currículo é a fábrica, com inspiração em Taylor. Os conhecimentos devem ser processados como um produto fabril: especificação precisa de objetivos, procedimentos e métodos para obtenção de resultados que possam ser precisamente mensurados. A escola deve funcionar como uma empresa, com base nas habilidades necessárias ao aluno para exercer com eficiência as ocupações profissionais na vida adulta. De lá para cá, assim evoluiu a teorização sobre o currículo em Educação Física:

Currículo ginástico

A educação física, até os anos 1920, voltava sua preocupação para a ortopedia como arte da correção das deformações que assombravam setores privilegiados da sociedade. A concepção dominante no início foi calcada no higienismo, abrangendo hábitos de higiene e saúde, valorizando o desenvolvimento físico e moral a partir do exercício. Surgem os métodos ginásticos e as propostas para valorizar a imagem da ginástica na escola. Visava-se à formação de uma geração capaz de suportar o trabalho extenuante, sendo importante selecionar os indivíduos “perfeitos” fisicamente e excluir os incapacitados.

Currículo esportivo

Por volta dos anos 30, começou a inserção dos jogos no currículo, dado que a época requeria homens de iniciativa, vivos e criteriosos. A prática de esportes ensinaria o homem a viver da melhor maneira possível e seus hábitos contribuiriam para o aumento de sua eficácia. O fenômeno se distingue das antigas formas de exercitação, prevalecendo a especialização, competição, cientifização, rendimento, quantificação, recordes e racionalização do treinamento. No Brasil coube à ditadura militar fazer a apologia da educação física em nome da modernização, do controle social e da formação moral.

Currículo globalizante

Nos últimos anos da década de 70, por influência do discurso educacional globalizante, surgiu o método psicocinético, também chamado de educação psicomotora ou psicomotricidade. No currículo, a preocupação com o desenvolvimento da criança, com o ato de aprender, com os processos cognitivos, afetivos e psicomotores, buscando garantir a formação integral do aluno. Essa concepção concebia a educação física como disciplina que extrapolava os limites biológicos de rendimento corporal e incluía conhecimentos de origem psicológica.

Currículo motor

Ainda na década de 1980 consolidou-se um novo modelo curricular tecnocrático, uma tentativa de caracterizar a progressão normal do crescimento físico e do desenvolvimento fisiológico, motor, cognitivo e afetivo-social a partir de teorias que caracterizavam as fases do desenvolvimento humano. O currículo propunha a organização dos conteúdos de ensino que considerassem as características do comportamento motor dos alunos, visando a conquista de habilidades motoras do nível mais alto, especializado. Foi estabelecida uma classificação hierárquica dos movimentos dos seres humanos, desde a fase pré-natal até o surgimento dos movimentos culturalmente determinados.

Currículo saudável

Mais recentemente surgiu uma nova proposta para a educação física, baseada na educação para a saúde. Tendo como paradigma o apelo neoliberal de uma vida saudável através de iniciativas individuais, os objetivos são: informar, mudar atitudes e promover a prática sistemática de exercícios físicos com a finalidade de favorecer um estilo de vida ativo. As estratégias sugeridas para as aulas propõem a alternância entre o ensino de conceitos oriundos da fisiologia, anatomia, medidas de avaliação, treinamento desportivo e nutrição, alternadas com vivências práticas de situações onde as capacidades físicas que compõem a aptidão física sejam experimentadas pelos alunos.

Currículo sócio-cultural

A partir dos anos 80, estudiosos da educação física recolocam o componente na escola a partir de referenciais das ciências humanas: sociologia, antropologia, história, política e semiótica. Nesta visão, os professores devem proporcionar o estudo das manifestações da cultura corporal – jogo, esporte, dança, ginástica e lutas – visando promover junto aos alunos um posicionamento crítico tanto no que se refere ao entendimento dos contextos de produção e significado de cada um desses produtos culturais, quanto às possibilidades de modificação desses elementos pelos próprios alunos, o que reflete a dinâmica de transformação dos produtos culturais. Como exemplo, pode-se problematizar o esporte, a dança e a luta na escola, compreendê-los como manifestações de grupos específicos que permanecem abertos às modificações que outros grupos (no caso os alunos) possam fazer para deles desfrutar plenamente. Basta verificarmos a trajetória histórica de grande parte dos produtos culturais: as formas de transporte, de comunicação, as religiões, as relações trabalhistas, as relações familiares etc.

SALA DE IMPRENSA - © 1994-2005 Universidade Estadual de Campinas / Assessoria de Imprensa
E-mail: imprensa@unicamp.br - Cidade Universitária "Zeferino Vaz" Barão Geraldo - Campinas - SP