Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 233 - de 13 a 19 de outubro de 2003
Leia nessa edição
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Desenvolvimento da Unicamp
Vestibular: recorde de inscritos
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Entrevista: Contardo Calligaris
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Ética e estética do desejo
Psicanalista, que vai participar de encontro no IEL, fala da relação entre a psicanálise e a universidade

O psicanalista Contardo Calligaris: “Uma mudança de perspectiva é o mínimo que se pode esperar de um diálogo psicanalítico”

A organização da subjetividade contemporânea em sua relação com o desejo e o discurso social tem sido tema de discussão em diversas áreas, entre elas a lingüística, a psicanálise, a comunicação e a filosofia . Nos dias 22, 23 e 24 de outubro acontecerá, no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp, a IV Jornada Corpolinguagem, que terá como tema A Est-Ética do Desejo. O Grupo de Pesquisa SEMA-SOMa, vinculado ao IEL e formado por estudantes e pesquisadores que estudam as articulações entre e corpo e a linguagem, tem promovido, desde 2000, encontros anuais com o objetivo de incentivar reflexões sobre o tema. O encontro deste ano busca promover uma discussão sobre a ética e a estética do desejo em sua relação com a organização da sociedade e da subjetividade atuais. Para abrir a jornada foi convidado o psicanalista Contardo Calligaris, autor de diversos artigos e livros publicados no Brasil.

Na entrevista que segue, concedida aos integrantes do SEMA-SOMa, Calligaris discute a relação entre a psicanálise e a universidade e fala da confusão entre critérios éticos e critérios estéticos na sociedade ocidental moderna. Na jornada, diversos pesquisadores debaterão o tema, agrupados em mesas temáticas variadas. Para maiores informações, acessar o site www.unicamp.br/iel/semasoma. As inscrições são gratuitas e devem ser efetivadas com antecedência.


Como você pensa a relação da psicanálise com a universidade?
Calligaris – Um primeiro ponto óbvio é que a universidade não forma psicanalistas, mas isso não quer dizer que não seja possível ensinar psicanálise. É possível ensinar psicanálise, porque existe um corpo teórico do qual é possível falar, falar não só de teoria psicanalítica, mas de clínica psicanalítica. A única coisa é que esse ensino não é suficiente para formar psicanalistas, e de fato não forma nem tem a pretensão de formar. Além disso, não há muito o que dizer sobre a relação entre a psicanálise e a universidade, a não ser que, a partir dos anos 60, os institutos de psicanálise ficaram um pouco preocupados porque acharam que eles podiam perder a sua relevância social. Se eu posso aprender psicanálise na Universidade Estadual de Campinas porque entraria numa sociedade de psicanálise? A primeira razão é que na Universidade Estadual de Campinas, ou em qualquer universidade federal, estadual ou privada, eu não posso me formar como psicanalista, simplesmente porque eu não posso inserir num curso universitário, uma análise pessoal. Apesar disso as associações e institutos psicanalíticos se preocuparam muito com a possibilidade de perder seu lugar social e sua exclusividade e, portanto, foi produzida uma série de considerações - e a teoria muitas vezes, ou quase sempre, responde às necessidades da prática e, às vezes, responde também às necessidades políticas - de que haveria uma diferença radical entre isso que está no discurso universitário e a maneira de ensinar própria aos psicanalistas e que, portanto, mesmo os psicanalistas quando eles ensinassem numa universidade, falariam de um jeito completamente diferente, subjetivamente diferente.

Qual a sua opinião a esse respeito?
Calligaris – Isso é uma idealização tanto da universidade quanto das instituições psicanalíticas, porque se acreditaria que nas universidades se ensina um saber ou pelo menos a retórica de uma mestria, uma espécie de domínio da coisa ou do objeto do qual se trataria na disciplina. Isso é muito parcialmente verdadeiro, porque no ensino universitário também se transmitem incertezas, situações, problemas e questões. E não é verdade que qualquer professor universitário só fale a partir de seu pleno domínio, porque se for um bom professor universitário, sabe que só se consegue ensinar alguma coisa que valha a pena, que valha a pena ser escutada. Não a partir do domínio do que está transmitindo para os alunos, mas a partir justamente das incertezas, das perplexidades, das questões sem resposta.

Nesse sentido, foi veiculada uma oposição entre psicanálise e universidade?
Calligaris – As duas posições foram cristalizadas assim: por um lado, a universidade seria o lugar onde reina um discurso universitário, um discurso que transmite um saber constituído e isso não seria o ideal para a psicanálise; e, por outro lado, nas instituições e nas associações psicanalíticas se transmitiria verdadeiramente o discurso, não universitário, mas psicanalítico, um discurso diferente, cujo ponto de partida não seria o saber. Isso é uma idealização absoluta porque nas instituições psicanalíticas as pessoas que ensinam muito freqüentemente transmitem um saber exatamente como na universidade. Durante 15 ou 20 anos se discutiu, propagou-se, alimentou-se, foi repetida ad nauseam essa teoria que opunha a universidade às instituições e associações psicanalíticas ou, melhor dito, o discurso universitário ao discurso psicanalítico, mas também acho que ninguém acredita mais, acho que ninguém deveria acreditar mais. O que resta dessa história é o óbvio, ou seja, que não se formam psicanalistas nas universidades, o que não quer dizer que não se possa ensinar psicanálise na universidade, como em qualquer outro lugar.

Você é articulista na Folha de São Paulo, publicando artigos e formulando questões em torno do laço social. Você pensa seus artigos como uma forma de produzir um outro olhar sobre esses fatos sociais?
Calligaris – Sim, sem dúvida. Espero que seja o que acontece de melhor. Quando você comenta, às vezes não se trata nem de comentar, mas de descobrir ou de recordar um momento da sua vida cotidiana, um momento de nossa vida social e política para que valha a pena comentá-lo. Em princípio é porque se espera que você tenha uma visão um pouquinho diferente da dos outros. Uma visão que talvez desloque algumas evidências recebidas e que permita às pessoas se situarem de uma maneira um pouco diferente. Isso é o que se espera da psicanálise, a psicanálise é uma técnica que pratica constantemente isso. Se o psicanalista serve para alguma coisa é porque ele nos sugere que vale a pena falar para alguém que de vez em quando retorna, nos devolve alguma coisa que nos permita pensar os problemas que temos de uma maneira um pouco diferente, que nos desloque um pouco. Uma mudança de perspectiva é o mínimo que se pode esperar de um diálogo psicanalítico. A psicanálise sem dúvida muda o olhar da gente.

Sua conferência tem como título A Est-Ética do Desejo.
Calligaris – O título contém uma espécie de trocadilho deliberado e acho isso muito pertinente. Um dos temas que desenvolvi num seminário interno nos EUA era a confusão entre critérios éticos e critérios estéticos que orientam as nossas condutas. Eu tentava mostrar, primeiro, que era normal e esperado que numa sociedade organizada pelas aparências - e digo isso num tom, se for possível, constatativo, não necessariamente crítico - não é nada estranho que razões estéticas orientem os nossos comportamentos, as nossas condutas, a ponto de ter um valor propriamente de razões morais. Primeiro não é estranho e segundo, às vezes os critérios estéticos de fato podem ser excelentes critérios morais. Existem critérios estéticos que podem ser valores éticos. Por exemplo, linchar alguém a pedrada não é bonito, antes disso deveria ser errado moralmente, mas numa situação cultural em que não é óbvio que o critério moral tenha um valor coletivo, ele pode ser substituído por um critério estético, que, como todos os critérios estéticos, sobretudo modernos, são movediços. O critério estético é uma coisa que faz e se desfaz o tempo inteiro, mas ele pode ter uma função parecida com a função que antigamente tinham os critérios éticos.

Como você pensa isso em relação ao desejo?
Calligaris – Quando você pensa o desejo humano, tomando o desejo no sentido mais amplo como o que motiva a nossa conduta, você pode imaginar que nosso desejo seja orientado, por exemplo, pelos ideais que nos foram transmitidos, isso seria um tipo ético de orientação. Numa sociedade, numa cultura em que o desejo é cada vez mais orientado pela expectativa da aprovação dos outros - que é exatamente como se define uma sociedade narcisista, porque nós agimos na procura do olhar dos outros - essa expectativa pode também ter exatamente o mesmo efeito de direção de nossa ação que tinham os critérios ideais numa cultura diferente.

E os efeitos disso na sociedade e na subjetividade individual?
Calligaris – A organização narcisista da personalidade, ou seja, o fato de que a subjetividade contemporânea é fortemente dirigida pelo olhar do outros, isso não é uma coisa sobre a qual nós tenhamos a possibilidade de ter uma posição ideológica, porque isso é a realidade subjetiva da sociedade ocidental moderna, não sei se temos o que escolher. Sempre tem como ser do contra, mas não sei se quando tecemos elogios dos ideais não estamos simplesmente adotando uma posição nostálgica. Um dos defeitos da consciência crítica ocidental que nasceu no século XIX é a idéia de pensar que a posição mais atraente é a posição negativa. Em geral, a psicanálise, a partir da experiência clínica, tem uma atitude um pouquinho diferente: a questão do psicanalista em relação ao paciente é ‘o que é possível fazer que valha a pena, que seja interessante, que não seja uma vida chata a partir das cartas que um paciente tem nas mãos, que alguém tem nas mãos, as cartas que lhe foram dadas?’. Pensar sempre em jogar o baralho fora, ou então parar a mão e redistribuir as cartas, é uma posição que pode se tornar bastante estéril até porque, nem sempre, na verdade quase nunca, a gente tem o poder de redistribuir as cartas. O que a gente pode fazer é jogar a melhor partida possível com as cartas que recebeu. Se a subjetividade contemporânea é uma subjetividade narcisista, muito bem, a partir disso como se organiza um mundo possível em que seja interessante viver? Isso me parece muito mais ao nosso alcance e de fato mais interessante do que uma posição negativa. Por isso me interessa pensar quais são os critérios de conduta, qual é a ética possível a partir desses critérios estéticos.

 

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