Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 233 - de 13 a 19 de outubro de 2003
Leia nessa edição
Capa
Educação: futuro sustentável
Desenvolvimento da Unicamp
Vestibular: recorde de inscritos
Farmácias de manipulação
Pesquisa: risco de hipertensão
Incontinência urinária
Pesquisa: subproduto da cana
Quilombos: ensinar e aprender
Plástico biodegradável
Livros sobre leitura
Trabalhos com o Nobel
Unicamp na Imprensa
Painel da semana
Oportunidades
Teses da semana
Entrevista: Contardo Calligaris
Fotografia: clicar e teclar
 

6

A Unicamp vai aos quilombos do Ribeira. Para ensinar e aprender
Universidade desenvolve, ao lado de outras instituições, dois projetos em cinco
comunidades rurais às margens do Ribeira

ÁLVARO KASSAB

Crianças na igreja da comunidade de André Lopes

Desenformado com zelo, o cuscuz feito com arroz macerado e amendoim torrado foi colocado sobre a mesa da cozinha da escola municipal do bairro rural de André Lopes, no município paulista de Eldorado. A poucos metros dali, numa sala de aula improvisada como dormitório, uma mensagem de boas-vindas escrita a giz rasgava assimétrica toda a extensão da lousa. Em comum, nos dois ambientes, havia mais que desenhos na parede e a caligrafia esmerada em cartazes a revelar a faixa etária dos alunos – havia a alegria em receber o “povo do Unicamp” que chegara na madrugada alta de 27 de setembro, um sábado. (À noite, um forró pé-de-serra completaria o programa de recepção).

Tão logo o dia amanheceu sob uma névoa que cobria os morros, grupos de crianças atravessaram a estrada Eldorado-Iporanga para chegar à escola onde estavam hospedados os visitantes. A algazarra às vezes abafava o canto sortido da passarinhada e o som dos cursos d’água que desembocam no rio Ribeira, situado a menos de meio quilômetro dali, e pouca coisa mais caudaloso do que de costume por conta da chuva da noite anterior. A excitação dava a medida do que representa hoje, para os moradores de cinco comunidades remanescentes de quilombos do Vale do Ribeira, os dois projetos desenvolvidos pela Unicamp na região. São elas, as crianças, uma das pontas que compõem o arco de ações que abrangem desde projetos de gestão agroindustrial, passam por cursos de capacitação de lideranças e se estendem até atividades de resgate cultural.

Mensagem de boas-vindas na sala de aula da escola de André Lopes, onde pernoitou a equipe da Unicamp

As comunidades quilombolas de Ivaporunduva, Sapatu, André Lopes, São Pedro e Galvão têm, na mesma proporção, uma história rica em tradições seculares e em desmandos perpetrados por alheios. Sua população, composta de descendentes de escravos que chegaram no Ribeira no século 18 para garimpar ouro, vive da agricultura familiar. Nesse universo, a presença da Unicamp é vista com carinho pelos moradores, normalmente escaldados com promessas que logo caem no vazio.

O professor Celso Lopes, da Faculdade de Engenharia de Alimentos (FEA), sabe o quanto é frágil a linha que separa o terreno das boas intenções de uma intervenção que coloque tudo a perder. Um dilema, explica, enfrentado por todo agente que pretenda atuar em comunidades tradicionais, fechadas ou isoladas. “Em que medida é possível conseguir essa inserção sem transformar valores secularmente arraigados?”, indaga. Embora seja prematuro afirmar, a resposta pode estar nos dois projetos coordenados por Lopes. As iniciativas foram tão bem-recebidas que ganha força a possibilidade de a Unicamp passar a fazer um trabalho permanente na região. “A presença da Universidade abre margem para projetos análogos, abre outras perspectivas.”

Crianças em André Lopes: brincadeiras resgatadas

Não se trata de uma previsão diletante. Lopes, um especialista em sistemas integrados de produção, sabe bem onde pisa. Sua tese de doutorado, finalizada em 1999, fundamentou-se no seu envolvimento com uma comunidade florestal composta por extratores de palmito na reserva ecológica Juréia Itatins. Lá, coordenou a implantação de um sistema produtivo sustentável que levasse em conta critérios ecológicos, sociais e econômicos. Durante dois anos foram acompanhados os índices de manejo de rendimento de palmito nativo.

Esse cartel foi imprescindível para que Lopes assumisse a coordenação de um dos projetos da Unicamp no Ribeira, em fase de implantação em Ivaporunduva. O bairro abriga cerca de 80 famílias e foi o ponto de partida da maioria dos ancestrais dos moradores dos demais quilombos da região. O projeto consiste na implantação de uma agroindústria para o processamento da banana, base da economia local, e o envolvimento da comunidade em todas as etapas da cadeia produtiva.

Trata-se de uma parceria entre a Unicamp, através do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Alimentação (Nepa), Instituto Socioambiental (ISA) e Associação Quilombo de Ivaporunduva. A Universidade entra com sete pesquisadores (veja quadro) e mais o aporte de R$ 80 mil do CNPq, que em julho de 2001, logo depois de iniciado o projeto, lançou um edital para a viabilização de um programa de agricultura familiar que buscasse métodos de gestão de qualidade de produção certificada para pequenos agricultores.

Bruna Vasconcelos e Flávio Boni, alunos da Unicamp, durante trabalho com crianças no Sapatu

O pesquisador faz um corte rápido e volta no tempo. Revela que se mostrou cético quanto à viabilidade do projeto ao ser procurado pela primeira vez pelos membros do ISA, cuja proposta restringia-se à implantação da fábrica. Lopes não acreditava em soluções vindas de cima para baixo, saídas do gabinete. Mudou de idéia depois do comprometimento dos parceiros em envolver os moradores no programa. O edital do CNPq dissipou as dúvidas. “Descortinei aí a possibilidade de avançar na linha de pesquisa”, revela Lopes, que em seguida engajou outros colegas da Unicamp no projeto.

Em miúdos - O objetivo da equipe, conforme consta no documento formulado pelos pesquisadores, “é aplicar e avaliar, com a comunidade, metodologia para concepção, formulação, projeto e avaliação de sistemas para produção agroindustrial, constituído por práticas, métodos e instrumentos de gestão da qualidade e da produção apropriados a comunidades de pequenos produtores da agricultura familiar, visando à geração de renda, ao aumento da qualidade de vida, à preservação e conservação ambiental e à obtenção de produtos com certificação social e orgânica. Simultaneamente, serão desenvolvidas as competências necessárias para os produtores e elaborados os estudos e os projetos executivos para que os mesmos implantem uma agroindústria para banana e outras frutas”.

O professor troca em miúdos. “É a população definindo como as coisas devem ser. Diria que trabalhamos como se fôssemos uma incubadora in sito”. Lopes não é dado a arroubos, mas não vacila em afirmar que desconhece, no país, um projeto dessa envergadura que tenha como sustentação tal abordagem e no qual a interação entre o proponente e a comunidade funcione como pré-requisito. Este relacionamento, frisa Lopes, leva em conta as peculiaridades, os valores subjetivos e a tradição oral da comunidade, o que não significa que o rigor científico seja deixado de lado.
Depois de algum tempo parado por falta de recursos, o projeto foi retomado graças a uma contrapartida financeira obtida na Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários (Preac) e no ISA. A parte estrutural do prédio já está finalizada, e os equipamentos, avaliados em R$ 45 mil, estão sendo comprados. A previsão é de que a fábrica esteja totalmente instalada entre final de novembro e começo de dezembro.

Ponte em Ivaporunduva: natureza exuberante e agricultura de subsistência

A planta de processamento vai permitir a confecção de qualquer produto derivado da banana, entre eles a banana passa, a banana frita (tipo chips), a bala de banana (com e sem açúcar) e o doce de banana mole, o produto mais tradicional das comunidades remanescentes de quilombos e ainda feito em tacho, embalado em palha de milho e conservado em jiraus – prateleiras de bambus dispostas em cima do fogão a lenha.

“A forma de conservação está diretamente ligada ao cotidiano das comunidades. Às vezes, o doce é conservado por seis, sete meses. Esse produto, se colocado numa prateleira de supermercado, não dura mais do que cinco dias; a lógica da cadeia de produção e consumo é outra. É isso que estamos trabalhando”, diagnostica Lopes. Os pesquisadores da Unicamp vão acompanhar todo as etapas do projeto, até que os moradores assumam de vez seu próprio negócio.

Lopes observa que os programas da Unicamp vêm se caracterizando pelo respeito à diversidade, por uma atuação mais crítica e pela prática sistemática de romper de vez com o caráter paternalista que ainda predomina nas ações sociais que envolvem comunidades. “A nossa relação é de parceria. Aquilo que é dado e não conquistado, não é valorizado”.

Wilon Mazalla Neto fala a jovens quilombolas em André Lopes

A máxima aplica-se ao projeto “Fortalecimento de Associações de Remanescentes de Quilombos do Vale do Ribeira”, fruto de parceria firmada entre a Unicamp, através da Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários (Preac), e o Universidade Solidária (Unisol), com apoio do CNPq.

Celso Lopes, que também coordena este projeto iniciado em junho, entende ser necessário fazer o devido recorte para mostrar a independência das duas ações – a desenvolvida em Ivaporunduva e a do Programa Quilombos, que inclui este bairro e outros quatro, todos banhados pelo Ribeira. “O Unisol é uma ONG, cujo objetivo é colocar o universitário em contato com uma realidade diferente, ampliar seu horizonte e comprometê-lo socialmente como futuro profissional”, explica. Porém, continua o professor, o projeto tem características próprias, sendo formulado integralmente na e pela Unicamp, com a participação das lideranças comunitárias locais.

“Os coordenadores propuseram que juntássemos as cinco comunidades com o objetivo de integrá-las e capacitá-las, para que no futuro gerissem projetos. Decidimos então construir este projeto em campo”. O programa, que se estende até o final de novembro, envolve 11 alunos da Unicamp e a professora Miriam Dupas Hubinger, da Faculdade de Engenharia de Alimentos (FEA), que divide a coordenação com Lopes. “Os líderes das comunidades encaminharam duas vertentes de trabalho. Uma que prevê uma oficina de elaboração de projetos. A outra é uma oficina para encontrar meios de aumentar a participação dos jovens no resgate cultural”, conta o pesquisador.

O aposentado Aristides Furquim: vivendo do artesanato

Na oficina de elaboração de projetos, telefonia foi o tema escolhido. No último dia 27, foi fechada a configuração do elenco de necessidades para área. Já a oficina de resgate cultural desencadeou a proposta da realização de encontros entre as cinco comunidades, nos quais fosse realizada uma série de atividades que despertassem a reflexão e conduzissem ao aprofundamento do tema. “Saímos do senso comum e partimos para a intencionalidade de identificação de análises de dados para fazer um diagnóstico mais preciso”, afirma Lopes.

Foram organizadas, neste âmbito, atividades de resgate das tradições locais nas áreas do folclore, da culinária, das danças típicas, dos brinquedos, das lendas e das práticas de cura, com a catalogação por exemplo de ervas encontradas na mata. Todo esse material está sendo documentado em fotos e vídeos que serão exibidos numa exposição prevista para o evento final do projeto.

No quilombo – O agricultor José Rodrigues, líder comunitário de Ivaporunduva, considera fundamentais as ações da Unicamp nas comunidades remanescentes de quilombo principalmente “ao ensinar aquilo que o povo não sabe”. No caso da planta industrial de processamento da banana, o agricultor entende que a iniciativa agrega valor ao produto, disparado a maior fonte de renda da população local. “Todo mundo aqui tem seu bananalzinho.” Não é exagero. Calcula-se que estejam plantados, nos 2,7 mil hectares do quilombo, cerca de 400 mil pés.

José Rodrigues, da Associação Quilombo de Ivaporunduva: resistência

Os moradores vendem em média 600 caixas de 20 quilos por semana. O lucro é rateado entre as 80 famílias, em sistema que tem bases cooperativistas. Um caminhão com capacidade de carregar 8 toneladas adquirido pela comunidade faz a distribuição do produto na Ceasa, em São Paulo. “A gente vende duas ‘carradinhas’ por semana, coisa de R$ 3 mil”. Feitas as contas, vê-se que o dinheiro dá para o gasto.

A produção é controlada. Vinte e sete agricultores acabam de obter o certificado do Instituto Biodinâmico de Botucatu (IB), que atesta a origem orgânica da banana. De acordo com o instituto, “os produtores atenderam integralmente às normas e ao padrões de produção agrícola exigidos para a certificação”. “Aqui não entra veneno”, avisa José Rodrigues, cujos planos incluem a confecção de doce à base de banana orgânica.

O respeito à natureza é atávico em Ivaporunduva. Só se chega ao lugarejo de balsa ou numa canoa que atravessa num vaivém incessante os aproximadamente 100 metros que separam as duas margens do Ribeira. “Nossos ‘antigos’ nos ensinaram a preservar”, relata Rodrigues. A mata nativa permanece praticamente intacta, a agricultura é de subsistência e a pesca, feita em canoas “cavadas” em madeiras “caídas”, obedece à ritualística secular. Rodrigues sabe que a organização é a única forma de resistir às incursões predatórias. Está na história.

De acordo com dados do ISA, Ivaporunduva integra uma região “que concentra o maior número de comunidades remanescentes do Estado de São Paulo”. Este quadro, ainda segundo o ISA, é decorrente, sobretudo, da mineração do ouro que predominou na região em meados do século 18. Segundo levantamentos do instituto, com a abolição da escravatura, os escravos permaneceram na área como lavradores.

Marcelo Mazolla fala aos líderes comunitários: telefonia em questão

Rodrigues fia-se na tradição oral para narrar a história do lugar. Conta que uma fazendeira conhecida como Maria Joana ficou doente e voltou para Portugal, deixando para trás os escravos. Parte deles permaneceu em Ivaporunduva e a outra embrenhou-se “pelos fundões”, espalhando-se depois por outras comunidades. O quilombo abriga duas relíquias arquitetônicas da época. Uma igreja construída no século 18, a de Nossa Senhora do Rosário, e um cemitério cercado por um muro de taipa e encravado no meio da mata.

A área a que se refere o estudo do ISA é parte de um ecossistema riquíssimo, Patrimônio Natural da Humanidade desde 1999. De acordo com documento formulado pelos pesquisadores da Unicamp, o Vale do Ribeira concentra a maior área contínua de Mata Atlântica do país. Abriga 2,1 milhões de hectares de florestas, 150 mil de restingas e 17 mil de manguezais, o mais conservado banco genético das regiões Nordeste, Sudeste e Sul e a mais importante reserva de água doce dos estados de São Paulo e do Paraná. Em contrapartida, os indicadores sociais colocam a região como a mais pobre do Estado.

O Ribeira, único rio “vivo” paulista, vem sendo ameaçado com freqüência nos últimos anos. O Ibama indeferiu, no último dia 25, o pedido de licenciamento ambiental feito pela Companhia Brasileira de Alumínio (CBA), do Grupo Votorantim, para o funcionamento da Usina Hidrelétrica Tijuco Alto.

Vista de Ivaporunduva, comunidade às margens do Ribeira, onde a Unicamp desenvolve projeto de gestão agroindustrial

Segundo Rodrigues, que integra o MOAB (Movimento dos Ameaçados por Barragens), a construção de uma barragem no Ribeira causaria prejuízos irreparáveis ao meio ambiente e à população ribeirinha. “Num boqueirão como o nosso, a água cobriria de morro a morro e devastaria nossa agricultura, toda ela desenvolvida às margens de afluentes do Ribeira”. Dados do ISA corroboram a tese. Estudos preliminares indicam que “a Hidrelétrica de Tijuco Alto inundaria uma área de 11 mil hectares composta de maciços de matas nativas, cavernas, além de alterar significativamente o regime hídrico, o que afetaria todo o complexo estuarino do Lagamar”.

As barragens são apenas um capítulo da saga fundiária protagonizada pelos quilombolas. Em poucos minutos de conversa, José Rodrigues enfileira outros exemplos. O problema foi em parte minimizado com a concessão do título definitivo de terra em algumas comunidades, incluída aí a de Ivaporunduva. Nem todos, porém, tiveram a mesma sorte.

O aposentado Aristides Furquim, por exemplo, morador do bairro de André Lopes, não sabe se vai viver o suficiente para ter direito à terra que um dia foi de seus tataravós. Furquim mora numa casa de pau-a-pique a não mais que um quilômetro da Caverna do Diabo. Sobrevive do artesanato feito à base de palha de banana, outra fonte de renda na região. “Para variar”, faz também cestos de frutas e bodoques, arma rudimentar de seus ancestrais. É outro quilombola que vê na Unicamp uma parceira. Não por acaso, sua mulher, dona Santina, foi vista ensaiando uns passos de fandango numa oficina de resgate cultural no bairro do Sapatu.

 

SALA DE IMPRENSA - © 1994-2003 Universidade Estadual de Campinas / Assessoria de Imprensa
E-mail: imprensa@unicamp.br - Cidade Universitária "Zeferino Vaz" Barão Geraldo - Campinas - SP