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Lume mimetiza universo
poético do cotidiano rural

Grupo teatral pesquisa gestual
e fala de habitantes radicados no interior do País

ANTONIO ROBERTO FAVA

Encenação de Parada de Rua, na cidade italiana de Bolonha, em 2001: apresentação em países da Europa, nos EUA e em mais de 50 cidades brasileiras A expressão do rosto, as falas e o gestual dos habitantes de cidadezinhas do interior serviram como material de pesquisa para que os integrantes do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais da Unicamp (Lume) mostrassem uma série de cinco espetáculos. Responsáveis pelo projeto temático Mímesis Corpórea – A poesia do cotidiano, os atores/pesquisadores estão coletando material adicional que vai, num futuro bem próximo, transformar-se na montagem de um espetáculo novo.

Com financiamento da Fapesp, o Lume já produziu, entre outros, Um dia..., Café com Queijo e Parada de Rua. Para se avaliar a importância dessas apresentações, algumas delas, como Parada de Rua, passaram por mais de 50 cidades brasileiras, Itália, Noruega, França, Estados Unidos, Bolívia e Dinamarca.

O ator Renato Ferracini durante laboratório: material recolhido já rendeu cinco espetáculosO ator Renato Ferracini explica que, para viabilizar o projeto Mímesis Corpórea – A poesia do Cotidiano, os atores, divididos em grupos, viajaram para as regiões mais longínquas do Brasil. E ali conviveram com os moradores do lugar com a intenção de estudar as maneiras e posturas corporais, os gestos, as expressões e as falas deles.

"Descobrimos coisas fantásticas. De posse do material acumulado, nos propusemos a trabalhar a energia das pessoas e suas posturas mecânicas. Não se trata de copiar, mas de assimilar, por ser algo muito próprio dos moradores", explica Ferracini. Os atores puderam observar, por exemplo, maneiras muito próprias do indivíduo, como posturas corporais e gestos diferentes. "E são essas diferenças das pessoas comuns que utilizamos na montagem de um novo espetáculo".

Para a professora Suzy Sperber, coordenadora do projeto, essa pesquisa do Lume sobre o corpo, a poesia do cotidiano, tem muito a ver com a valorização do ser humano comum. "Aquele que não tem voz, cujo corpo e fisicidade conseguem transmitir o valor que está nessa pessoa, que normalmente sequer é olhada. Este é o valor e a importância da poesia do cotidiano", diz ela. E arremata: "É valorização de todo um universo que, na verdade, quase sempre costuma ser relegado".

TRECHOS

"Escuta aqui, ocêis num se interessa por oração de pará sangue não? Pois para na hora. Ó porqué qu´eu mandei pará esse daqui (mostrando a mão enfaixada), o sangue tava espirrando com daqui até ali, pois eu botei o dedo em cima e falei as palavra: pare, chegô, parô. Pois parô na hora, num ficô nem cicatriz nem nada, pode dá uma olhadinha aqui".

Seu Renato Torto,
Jaraguá - Goiás


"Pra esfregá e tumá banho lá no porto. A folha de alho, sete, e a folha de mucuracá e folha de araticumum, sete, todos sete. A gente esfrega, larra bem, esfrega, leva pro poto, toma banho, joga onde tá pro danado do boto. Mandava rezá, rezá em mim, pra podê mi guardá. Quando cai alguma coisa fica assim. Cai abacate em cima da casa ficô assim. Oh meu Deus, que qu´eu faço, sozinha e Deus. Lá eu vi o menino atrás da minha porta assim, se escondeu, eu vi. Eu vi maninha. Eu digo acuda, porque eu não fico em casa. Por que qu´eu choro? Eu choro fico triste, eu fico. Assim eu choro. Aí me chama Maria Chorona. Lá vai Maria Chorona".

Dona Maroquinha,
Novo Airão - Amazonas


"O mundo vai acabá e nóis ainda temo que vivê muita coisa, nóis inda num viu nada. Graças a Deusi, nóis inda num viu nada. Porque no fim do mundo vai vim o Cristo e o Anti-Cristo. O Cristo veio curano aquelas doença infadível, aquelas doenças braba. E o Anti-Cristo veio fazê ruindade. O Anti-Cristo é o Saci-Pererê. Ele faz as mardade, faz o moço largá da moça, a moça toma um veneno se o moço num qué casa cu´ela. Tudo o Saci-Pererê. Tem que pedi a Deus pr´eli nunca atentá".

Dona Maria ,
Jaraguá - Goiás


Falas, pausas e silêncios

Mímesis Corpórea é uma linha de pesquisa que busca a observação, a imitação, a codificação e a teatralização de ações físicas e vocais encontradas no cotidiano, nas lendas e nos costumes do povo rústico do interior do Brasil. Um dos focos de interesse do pessoal do Lume são as histórias que o povo de cidades interioranas de estados mais distantes tem o costume de contar.

"Estamos interessados no vocabulário que esses povos usam, a maneira de falar. Isso porque as palavras que empregam são diferentes das que estamos acostumados, e a maneira de construção dessas histórias é muito peculiar", diz Ana Cristina Colla, atriz e pesquisadora do Lume. Outro aspecto importante é a ação vocal das pessoas. Avaliam-se não apenas o timbre de voz, as questões de sotaque, o linguajar próprio do lugar, mas também o que é característico de cada pessoa: o ritmo da fala, as pausas e os silêncios.

"Quando voltamos dessas viagens é que vamos avaliar as ações pesquisadas em salas de trabalho para tentarmos atingir um timbre da voz de determinadas pessoas, e imprimir o ritmo que lhe é característico. Isso com o propósito de reproduzir, numa cena de espetáculo, os elementos adquiridos com a pesquisa", conta Ana Cristina.

As pessoas com as quais os pesquisadores conviveram revelaram detalhes de suas vidas. Histórias bizarras, sofrimentos e reclamações do dia-a-dia e da família. "Elas eram observadas em seu local de convívio, muitas vezes sem o menor constrangimento ou fatores que pudessem interferir em seu comportamento natural. Também observávamos pessoas nas ruas, pontos de ônibus, bares, que pudessem nos sugerir novos elementos de análise", explica.

A pesquisadora conta que quase sempre procurava registrar o momento por meio de fotografias. Dependendo da situação, as conversas eram gravadas. Também há anotações de acordo com a ordem cronológica das ações, "ajudando, assim, a recompor os fatos, o que não significa, necessariamente, que quando da utilização do material essa lógica deva ser respeitada", afirma Ana Cristina. Era comum toda a família se preparar para o momento das fotografias, penteando os cabelos, trocando as roupas das crianças e fazendo poses.

Quando se imprimem as posturas físicas, máscaras faciais, entre outros elementos, elas tornam-se passíveis de ser reproduzidas por outro ator que queira utilizar esse material, cabendo a ele cuidar do "recheio", isto é, o que dá vida à determinada foto. Numa viagem ao Amazonas, por exemplo, pesquisadores do Lume coletaram, cada um em sua região de pesquisa, cestos e redes de materiais diversos, roupas e adereços utilizados em festas locais, instrumentos musicais, bancos de diversos tamanhos, além de boa quantidade de artesanato indígena.