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Jornal da Unicamp -- Março de 2001

Páginas 4 a 7

SEXUALIDADE

Globalização e imaginário sexual (ou ‘Denise está chamando’)

O mundo informatizado afeta radicalmente as relações entre mulheres
e homens e as práticas sexuais cotidianas


Margareth Rago*

No oitavo mês da gravidez, Denise se apresenta por telefone ao futuro pai de seu filho e informa ter sido fecundada com seu sêmen por inseminação artificial. Radiante de felicidade, o pai coloca-se à disposição da mãe para conhecerem-se pessoalmente e ajudá-la no que for preciso. Segura e tranqüila, ela afirma nada desejar, nem mesmo encontrá-lo, apenas ser acompanhada pelo telefone celular, no momento crucial do parto.

Este é um dos momentos mais cômicos do filme "Denise está chamando", do diretor Hal Salwen, recentemente exibido nas telas dos cinemas. Entramos num mundo totalmente informatizado, onde as pessoas, sentadas a maior parte do tempo diante de computadores, refugiam-se em si mesmas, fugindo ao máximo dos possíveis encontros sociais. Apenas se comunicam pelo telefone, conectadas via internet em redes que, no entanto, crescem continuamente.

O filme discute, em forma de comédia, uma questão absolutamente assustadora em tempos de globalização, de internacionalização da economia, de quebra das fronteiras geográficas, nacionais, étnicas e sexuais, de interação midiática: para onde caminhamos em termos de comunicação e de sociabilidade? Para um total isolamento e atomização, para o recolhimento seguro na esfera da vida privada e da intimidade, protegidos pelas máquinas e pelo telefone? Ou estamos vivendo uma intensificação das relações interpessoais e uma quebra das barreiras sociais, individuais e sexuais? As relações pessoais, corpo a corpo, serão mediadas perversamente pelas novas tecnologias, levando-nos a uma terrível solidão e falta de contato físico e sexual? O contato entre duas pessoas será substituído pelo sexo virtual, como alardeiam alguns contemporâneos? Ou, ao contrário, estamos em vias de constituir uma só aldeia global, onde os corpos estarão mais livremente em contato, desembaraçados de antigas mitologias, fantasias e ignorância em relação ao outro?

Essas questões são de difícil resposta e, na tentativa de avançar a discussão, sugiro duas problematizações maiores: a primeira remete às transformações, profundas ou superficiais, verificadas nas relações de gênero; a segunda diz respeito às mudanças em nosso imaginário sexual propriamente dito, nas imagens, concepções, valores, referências sobre a sexualidade que informam os comportamentos e as práticas sexuais cotidianas. A globalização, entendida em suas dimensões sociais, econômicas, culturais e tecnológicas – e destacando-se o inegável predomínio dos meios tecnológicos e da mídia como forma de comunicação mundial – tem afetado radicalmente não apenas as relações entre mulheres e homens, sobretudo a partir dos espaços conquistados pelas primeiras, mas o próprio imaginário sexual.

Creio mesmo que um novo imaginário social esteja se formando, no qual as imagens, a cultura visual e videocrática certamente substituem a cultura das palavras e a importância da memória, em que o momento presente é arrancado do passado e da história, descontextualizado e autonomizado. Constitui-se uma nova maneira de pensar, entre outras coisas, a dimensão da subjetividade e da sexualidade, cujos signos podemos de algum modo identificar.

De um lado, é visível que depois da "revolução sexual" dos anos 60, houve um repensar dos códigos sexuais e dos padrões de feminilidade e de masculinidade que vigoraram por muitas décadas. Desconstruiu-se a antiga dicotomia homem-cultura/esfera pública, oposto à mulher-natureza/esfera privada. Os modelos femininos e masculinos de sexualidade, principalmente divulgados pelo cinema e televisão, que orientaram a constituição de si de várias gerações, tornaram-se, em grande parte, objeto de risadas e brincadeiras na atualidade. Humphrey Bogart e Ingrid Bergman, Audrey Hepburn e Gregory Peck, Clark Gable e Marilyn Monroe, John Herbert e Eva Vilma (para evocar um modelo brasileiro), que emocionaram as platéias com comoventes interpretações, são vistos como respeitáveis casais do passado, com os quais as novas gerações têm muito pouco a ver.


Gabriela, que não mais seduz

A ‘boazuda’ que simboliza a sexualidade tropical brasileira
é velha demais para nossos jovens

Fala-se agora no corpo performático, artificial, maquínico, nas subjetividades mutantes, nas territorialidades errantes, nas desterritorializações, ao mesmo tempo em que as antigas referências do normal e do desvio são colocadas em xeque, desconstruídas na pós-modernidade. Sobretudo, fala-se na possibilidade de inventar novos territórios desejantes, novos corpos, novas subjetividades, novos modos de existência e, em especial, pensa-se nas novas formas de relação entre os gêneros.

Mulheres e homens ensaiam outras possibilidades de ficarem amorosamente, para além das formas tradicionais de relacionamento, como o namoro, o noivado, o casamento e/ou o adultério. Certamente isto não significa uma erradicação total dos antigos códigos da sexualidade, já que, ao mesmo tempo, coexistem ou mesmo agravam-se antigos problemas de dominação, de violência e desencontro que caracterizaram as relações entre os sexos.

De qualquer maneira, é de se perguntar para onde caminhamos, nesse inicio de século, em se considerando as relações amorosas e sexuais? Para uma maior aproximação dos gêneros, à medida que antigas barreiras deixam de existir, que se elimina o peso da interferência familiar na escolha do cônjuge, que as formas de relacionamento afetivo e sexual se tornam mais flexíveis e negociáveis, que as questões são debatidas abertamente? Ou o individualismo crescente nos leva, cada vez mais, a buscar refúgio seguro em nosso próprio ego, destruindo as possibilidades de encontro, inclusive na esfera sexual?

Note-se que apesar de toda a engenharia tecnológica que facilita a comunicação e a interação social entre os indivíduos, grupos e povos, apesar de todo o desenvolvimento da psicologia e da psicanálise, que nos mune com incríveis arsenais de entendimento e cura das crises existenciais e conjugais, apesar de todas as discussões que temos tido em relação à necessidade de abertura para a diferença e para as diversidades culturais, apesar de tudo e infelizmente, não temos vivido num mundo mais amoroso e solidário, nem mais aconchegante. Chama a atenção, aliás, o crescimento da intolerância em vários níveis, do racismo à defesa de instâncias pessoais.

Relativizo, no entanto, esta visão um tanto catastrófica, indicando que, ao mesmo tempo, constata-se uma profunda mudança no imaginário sexual, nas formas de manifestação do desejo que caracterizaram o comportamento das gerações mais velhas. Exemplificando: roupas, ligas, cintas, objetos sexuais, vídeos pornôs, as parafernálias dos sex-shops, criadas na grande maioria no século passado, tornaram-se peças envelhecidas de museu, ou são ainda capazes de mobilizar sexualmente as novas gerações, convidando os interessados a entrarem nas supernovas lojas do Ponto G, ou no mais recente Planet Sex?

A mulata gostosa e sensual, a "boazuda" da cultura sexual brasileira, obsessivamente invocada por Gilberto Freyre e cantada por Jorge Amado, ainda seduz os jovens brasileiros, de classe média, baixa ou alta? Embora ainda se exporte a mistificação da sexualidade tropical brasileira, observamos, ao menos internamente, o esgotamento da sedução de Gabriela.1 Envelheceram tanto a mulher super-sensual estilo Amélia, quanto o conhecido "galinha" ou "garanhão", famosos personagens de Dona Flor e Seus Dois Maridos. O vermelho ainda é a cor erótica por excelência, ou se tornou cafona diante das novas tonalidades hiper-sofisticadas das roupas íntimas?

Anti-Vinicius e anti-Marilyn – É possível dizer que o modelo masculino, desde os anos noventa, é o homem auto-centrado, de cabelos curtos ou rabo de cavalo, charmoso, "na dele", como diríamos. Um tipo mais para difícil que disponível, firme e decidido, que não escorrega facilmente, não diz besteiras, aliás, fala pouco e pensa para falar e que, principalmente, não "dá baixarias". Esta figura elegante jamais cometeria determinados atos tradicionais na conduta masculina brasileira, como passar a mão no traseiro de uma mulher, ou assobiar quando ela passa: tal comportamento lhe é estranho, além de ridículo. Se alguém deve assobiar agora, será ela, ante o impacto que ele provoca. Na verdade, ele é o anti-Vinicius de Moraes.

Da mesma forma, a mulher atual já não é tão dócil, passiva, insegura e vitimizada. Independente, é agressiva no mercado, inclusive o sexual. Toma iniciativas, conquista, leva para cama, dispensa após o sexo, sabe bem o que quer. Ela é a anti-Marilyn Monroe, que parece ter sobrado para os homossexuais mais tradicionais. Afinal, também aqui uma nova cultura emerge, onde a figura máscula e atlética parece ter vantagens.

Estas mudanças apontam para a saturação e superação dos antigos códigos sexuais e dos tradicionais jogos de sedução, levando a uma situação bastante inusitada, pois desconhecida, de redefinição dos mesmos. O desencontro entre mulheres e homens, constatável e amplamente discutido, traduz um profundo mal-estar na heterossexualidade, a partir da crise das identidades sexuais e da desestabilização das antigas referências morais.

Se sempre houve um profundo abismo entre os sexos, a questão vem sendo cada vez mais debatida publicamente, na busca de novas formas de convívio e de interação social e sexual. Procuram-se novas possibilidades de comunicação afetiva, a partir de um tipo de negociação estabelecida entre parceiros, que se defrontam como iguais em todos os níveis e não mais hierarquicamente localizados, como nas relações sexuais do passado. Mulheres e homens podem agora encontrar-se face a face, sem fundar sua relação em algum tipo de dependência financeira ou psicológica, como antes.

Contudo, os rumos que se delineiam são bastante obscuros e embora se acredite que estejamos caminhando para um mundo mais feminista e libertário, com muito mais alternativas e espaços abertos, é também difícil manter tanto otimismo. Sinais opostos também se evidenciam fortemente, levando-nos a procurar formas de interpretação e entendimento que nos permitam situar e interferir social e individualmente. (M.R.)

1 Para uma excelente discussão sobre a cultura sexual no Brasil, veja-se Richard Parker - Corpos, Prazeres e Paixões. Cultura Sexual no Brasil Contemporâneo. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.


Dia-a-dia sem o erótico

Está havendo menos interesse pelos jogos de sedução ou uma redefinição dos códigos de sexualidade?

Em tempos de globalização, vive-se uma profunda dessexualização da vida cotidiana, ou banalização do sexo. Na verdade, eu poderia avançar: dessexualização ou re-sexualização? Trata-se de uma diminuição no nível da sexualização, dos jogos de sedução, do interesse pelo erótico e pornográfico, ou de uma re-significação das práticas sexuais? Estaria havendo uma redefinição dos códigos da sexualidade e do próprio imaginário sexual, ou uma perda radical do erotismo, do tesão e da sensualidade, por um mundo mais racional, frio, técnico e mecanizado?

Suponhamos que a primeira tendência esteja se constituindo com maior força. Então, devemos considerar primeiramente os lugares onde se podem perceber sinais e evidências da transformação dessexualizante. Os corpos maquínicos se opõem às excitantes curvas corporais femininas, apreciadas no passado: os seios grandes para os americanos, a bunda para os latinos. As cinturas muito finas tornam-se motivo de chacota para as gerações mais jovens, enquanto os novos padrões de beleza passam a valorizar o corpo magro, ágil, retilíneo, moderno e sobretudo jovem, para homens e mulheres. As dietas crescem ao lado das academias de ginástica que prometem emagrecimento e enrijecimento da musculatura, através de exercícios com as máquinas e pesos de musculação. Desde os anos sessenta, a moda torna cada vez mais indistinta a diferenciação dos sexos, a exemplo dos jeans, jaquetas, bermudas, camisões, bijuterias. O corpo belo, produzido, estetizado e bissexualizado está para ser visto, admirado e observado, menos para ser tocado.

A transparência total das práticas sociais e sexuais exigidas no mundo atual esvaziaram, ao mesmo tempo, o sentido dessas próprias práticas. Assim, mesmo que a bunda se torne um elemento muito rentável, pelo sucesso que alcança no imaginário masculino brasileiro, já não pertence à "boazuda" do passado, mas a uma loira jovem e magra, que está mais para professora de aeróbica do que para sedutora; o strip-tease perdeu seu mistério e encanto; o bordel deixou de ser o principal lugar dos encontros clandestinos e dos "amores ilícitos", das perversões sexuais e orgias como era desde os anos 20; as práticas sexuais baseadas no jogo do esconde-esconde, que enlouqueciam os coronéis latifundiários no Brasil dos anos 30 e 50 foram mundialmente criticadas pelos mais jovens, sobretudo nos anos 60, tanto com o movimento hippie – que apostou na transparência e no natural como símbolos de autenticidade – , quanto com a própria Revolução Sexual.

Camisinhas intactas – Em artigo recente publicado numa revista de grande circulação, o autor discute a profunda dessexualização da vida contemporânea. Afirma que o sexo interativo não-virtual, ou seja, a antiga relação sexual, está-se tornando uma "curiosidade do passado", que entusiasma a muito poucas categorias sociais como parte do proletariado, os índios e alguns jovens, que também o abandonam rapidamente por um par de patins in-line. O não-sexo seria, então, o comportamento moderno por excelência nos dias atuais, em que surgem os Clubes de Castidade, a exemplo dos da Espanha. Em suas palavras: "O machão contemporâneo se gaba das mil mulheres maravilhosas que heroicamente não levou ao leito e de sua fabulosa coleção de camisinhas estrangeiras, todas elas intactas dentro dos invólucros." Ao mesmo tempo, uma pesquisa recente nos Estados Unidos afirma que a família ideal é hoje formada por um solitário, um animal de estimação e um computador multimídia, plugado na Internet.

Em artigo publicado no jornal Folha de São Paulo, de 20.08.96, Paul Virillo sugere o "perigo da perversão" representada pela diversão tecnofílica – ou como o sexo normal se transforma na zoofilia. A atração pelos computadores substituiria o desejo sexual. Cybersexualidade, diz ele, é o tema de seu próximo livro: a internet e a tecnologia viram substitutos da sexualidade. Este é, aliás, o tema do filme "Denise está chamando". Nele, as relações sociais e não apenas sexuais passam a se dar totalmente mediadas pelos computadores, telefones e demais tecnologias. Todos se comunicam, interagem, formam redes de apoio, socorro, amizade, amor e até de sexo... oral, sem contato físico além da voz que viaja, tímida ou convidativa, pelos fios. Todos marcam encontros continuamente, mas não comparecem na hora marcada. Todos querem e não querem se ver ou conhecer. Todos estão sós diante de seu computador, com o telefone ao lado, superprotegidos pelas máquinas, fragilizados em sua solidão, carentes, infelizes, à exceção de Denise, que carrega o filho na barriga, contraído pela injeção de um sêmen. Ela é, aliás, a única que não está nos interiores, mas circula pelas ruas todo o tempo e é também a única que está todo o tempo acompanhada pelo filho virtual, no ventre. Mesmo assim, telefonando. É também a única que se encontra com o pai de seu filho numa falhada e não realizada festa de fim de ano. Tempo virtual.

Mil proteções – Aqui poderíamos pensar numa das teses de Richard Sennett, apresentadas em "O Declínio do Homem Público".1 Procurando entender a profunda descrença do homem contemporâneo no mundo público e o enorme investimento no privado e na subjetividade, o sociólogo observa que a maior transparência na arquitetura contemporânea ("arquitetura da visibilidade") não levou a uma eliminação das barreiras sociais, mas, ao contrário, reforçou as distâncias psíquicas entre os indivíduos. Se a esfera pública é vista como ameaçadora e devoradora, é preciso que as pessoas se protejam de mil maneiras, especialmente refugiando-se num espaço interno, psicológico, afetivo, que cada vez mais se amplia, com o desejo de privacidade e de intimidade. Neste novo mundo em que se evita o choque e em que se tenta neutralizar o inesperado o mais rapidamente possível, a sexualidade deixa de ser pensada em termos relacionais (a partir do modelo da penetração), para ser vivida enquanto problema íntimo (enquanto prazer solitário), ou relação consigo mesmo, como mostra Foucault, em "Sexualidade e Solidão".2 (M.R.)
¹Richard Sennett -O Declínio do Homem Público. SP:Companhia das Letras,1989.
²M. Foucault e R. Sennett - "Sexualidade y Soledad", in Thomas Abraham - Foucault y la Etica. Buenos Aires:Editorial Biblos,1988.

Super-Homem e Tarzã dos Macacos

Em relação ao corpo masculino, vale notar que o Super-Homem dos quadrinhos, criado em 1933 por Jerry Siegel e apresentado na revista Action Comics em 1938, foi destronado pela Revolução Sexual dos anos 60. Tarzã, construído pelo escritor Edgar Rice Burroughs, apareceu pela primeira vez em 1912, nas páginas da revista All-Story Magazine; o conto "Tarzã dos Macacos" saiu em livro pela primeira vez em 1914 e foi o maior best-seller do ano; sua primeira versão para o cinema foi produzida em 1918. Vivia-se, então, um momento de grande preocupação com a formação dos jovens e com a virilização da raça. Diante das mudanças provocadas pela entrada das mulheres no mercado de trabalho e pelas inovações tecnológicas que tornavam o trabalho mais leve, as elites governantes, assustadas com um possível amolecimento da juventude, passaram a defender o revigoramento físico dos futuros cidadãos da pátria.

Portanto, estes heróis foram produzidos num momento de profunda apreensão causada pela modernização e industrialização das décadas iniciais do século. A desestabilização das antigas referências sexuais deixou a sociedade em pânico. Medo da "anarquia sexual", como quer Elaine Showalter, com a ampliação dos espaços do desejo (cabarés, bordéis, cafés-concertos); medo do feminismo (as mulheres deixariam de ser mulheres?, as famílias se desagregariam com o trabalho feminino fora do lar?); medo do homossexualismo (estariam os homens se afeminando?, perderiam a virilidade?); medo da proximidade dos corpos, com os bailes e novas danças, com os esportes, a natação e os maiôs e as ameaças de explosão de desconhecidas "perversões sexuais", como passavam a ser catalogadas as práticas sexuais ilícitas, desde o último quarto do século anterior.1

Otto Wininger, autor de "Sexo e Caráter" (1903) "faz alarde das leis do patriarcado no momento em que crê ver impor-se um novo matriarcado triunfante. Celebra as magnificências e pompas do masculino para melhor poder acusar a decadência da virilidade moderna."2 Bachofen, Wagner, Nietzsche lamentam o crepúsculo do patriarcado. Para Nietzsche, "a feminização dos homens e a virilização das mulheres tornam a humanidade culturalmente estéril e inapta a engendrar personalidades superiores."

Nesse contexto, os homens cultos foram favoráveis, desde as primeiras décadas do século 20, ao enrijecimento disciplinar na educação física e moral da juventude, à introdução dos esportes militarizantes, do escotismo, de um tipo de educação, enfim, que formasse jovens fortes, corajosos, sadios e produtivos para a pátria. A eugenia veio reforçar essas teses, indicando os casamentos sangüíneos capazes de criarem a raça pura, da mesma forma que indicava os que deveriam ser evitados por reproduzirem seres deficientes ou degenerados.

Aranha devoradora – Muitos desses fantasmas ainda permanecem firmes entre nós. Penso no famoso medo provocado pelas "novas mulheres" sobre os homens, antes e depois. Segundo pesquisa realizada pela revista Desfile, de novembro de 1997, intitulada "Homens – Por que eles têm medo de mulher?", todos os entrevistados, de várias idades e profissões, afirmam que a inteligência e a independência femininas são traços muito assustadores.

Se esses medos também têm sua história, se não nascem hoje como podemos lembrar a partir dos mitos da sereia, da "vagina dentada", da aranha devoradora, da mulher fatal, de Salomé, atualmente vêm à tona de outras maneiras, mas com muito vigor, afetando inevitavelmente as relações sexuais. "Os homens estão com medo", dizem as mulheres, num mundo em que a presença feminina se torna cada vez mais forte e insistente.


O novo significado do sexo

Pensando em direção oposta, imaginemos que está se intensificando a busca pelo prazer sexual

Agora, proponho pensar em direção oposta, focalizando o tema da re-sexualização do social. Digamos que uma re-significação do sexo está em curso. Digamos que não está havendo uma perda do interesse pelo sexo, mas uma mudança na maneira pela qual ele é representado e experimentado e, ao contrário, assiste-se a uma intensificação da busca pelo prazer sexual, pelo sensual e pelo erótico.

Uma nova economia desejante se configura, segundo a qual o sexo deixa de ser representado como energia negativa e vulcânica, que transbordaria apesar das repressões da cultura e assumiria formas de "psycopathia sexualis", como afirmavam Richard von Krafft-Ebing, Cesare Lombroso e Freud. Passa a ser pensado enquanto energia positiva que deve ser gasta e não acumulada, diante do medo do desperdício como no passado, deve ser utilizada para revitalizar, para "energizar", como se lê nas páginas da revista Nova. Aqui predomina a concepção de que a energia sexual não se gasta, nem é canalizada para a produção, como acreditavam os marxistas, mas que é positiva, deve circular e fluir para tornar o indivíduo saudável e equilibrado.

Digamos que à ideologia do trabalho sucede a valorização do prazer e do ócio. O tema da estetização da existência vem abrir alternativas importantes para se pensar novas formas de construção de si e da relação com o outro, numa nova relação com o tempo livre: a idéia de uma nova temporalidade está em jogo. Também o tempo não deve ser vivido como algo que se perde, mas num ritmo natural, obedecendo-se ao tempo interno de cada um e de cada coisa: anti-taylorismo.

Quanto ao prazer, afirma-se cada vez mais freqüentemente a importância de gostar do que se faz, de trabalhar, estudar, viver com prazer, com tesão; reclama-se a importância da elevação da auto-estima, de se amar, de gostar do próprio corpo. Até mesmo a igreja defende o auto-erotismo hoje. Isto é uma forma de sexualizar a vida cotidiana em múltiplas esferas. Aqui, então, estaria ocorrendo não um movimento de dessexualização, mas, ao contrário, uma redefinição do campo sexual, não mais confinado ao espaço das relações sexuais específicas. Nem o orgasmo hoje é pensado apenas como um momento circunstanciado em que uma parte do corpo vibra. O orientalismo vem levantar o tema dos múltiplos orgasmos nas muitas partes do corpo feminino e masculino. Homens e mulheres passam a experimentar outras zonas erógenas. Os parceiros sexuais podem ser ou não do mesmo sexo. Propõe-se a substituição do conceito de homossexualidade por homoerotismo.1

Parece, então, que assistimos a uma grande transformação no imaginário sexual, marcado sobretudo pelo desconfinamento do sexo. Esta tese, segundo a qual as práticas cotidianas individuais e coletivas estariam sendo fortemente investidas pelo desejo e pela sexualidade, encontra-se em grande parte com a da "despervertização do sexo" de Anthony Guiddens. Para este autor, em oposição ao tema do enclausuramento do desejo através da "implantação das perversões sexuais", que Foucault localiza na sociedade disciplinar, estaríamos vivendo uma certa aceitação das práticas sexuais outrora ditas ilícitas, como normais.2 Por exemplo, já não nos choca assistir à performance de Madonna, que ao cantar simula uma relação sexual com o microfone.

Assim, distanciando-se das teses defendidas pelo filósofo francês, segundo as quais a sociedade disciplinar teria aprisionado as práticas sexuais na figura das "perversões", desde a era vitoriana, o sociólogo inglês afirma que, hoje, emerge a "sexualidade plástica": "a sexualidade tornou-se maleável, sujeita a ser assumida de diversas maneiras, e uma "propriedade" potencial do indivíduo." Uma vez que a reprodução desvinculou-se da atividade sexual, esta se autonomizou, podendo então "tornar-se totalmente uma qualidade dos indivíduos e de suas relações mútuas."

Liberou geral –Aqui e agora, o que se observa, nesta direção, é que o capitalismo liberou geral. O desconfinamento do sexo é visível. Na moda, na roupa, na aparência, nos gestos ou nos comportamentos: o fio dental na praia, a mini-saia, a mini-blusa, roupas bem justas realçando o corpo, a maquilagem – note-se que entre o que antes seria a roupa da prostituta e a da "mulher honesta" já não há hoje diferença alguma. A "cocotinha" é uma jovem classe média, rica ou pobre, vestida de cocotte dos anos vinte, com gestos bastante livres e ousados, mas que nada tem de prostituta a não ser a referência à roupa do passado. Descontextualização total, a referência ao passado é apenas um jogo lúdico. (M.R.)

Jurandir Freire Costa - A Inocência e o Vício. Rio de Janeiro: Relume Dumará,1992.
Antony Guiddens- A Tranformação da Intimidade. São Paulo: Editora da Unesp,1992.

No quarto de casa, como num bordel

Nas práticas especificamente sexuais, dificilmente se poderia dizer quais os limites do que ocorre no quarto do casal. Quais as diferenças hoje entre o quarto do casal na casa ou num bordel? Este, aliás, já virou passado. A inversão das posições na cama, o sexo oral, anal, a masturbação, o homossexualismo, o lesbianismo, e demais práticas que constituíam as "perversões sexuais" do dr. Krafft-Ebing estão principalmente nas páginas das revistas femininas da classe média.

Rimos das idéias do dr. Lombroso, para quem a prostituta é uma "degenerada nata", ou para quem o onanismo provocaria loucura, ou da idéia de que tais práticas sejam consideradas anomalias, demência e doença. Ou, em outras palavras, as feministas que fizeram a Revolução Sexual redescobriram o orgasmo clitório, entre o final da década de 60 e início da de 70. Superaram a problemática da divisão mulher-puta, abriram caminhos nos campos da sexualidade e da política (campos que aliás eram totalmente confundidos), exigiram direitos sexuais.

Duas décadas atrás, "mulher pública" designava a meretriz e não a mulher que participa da esfera pública e da política. Passamos as décadas de 70 e 80 desconstruindo o "dispositivo da sexualidade"; inúmeras teses e pesquisas desvendaram o universo das mitologias misóginas construídas sobre o corpo feminino. No caso do feminismo, a libertação da mulher supôs a desconstrução de todas as antigas crenças sobre seu corpo, sua sexualidade, a maternidade, assim como a descoberta de novas tecnologias produtivas.

Os homossexuais, por sua vez, investiram radicalmente contra o modelo do super-macho, que Rock Hudson encarnara sem dificuldades na tela. Apontaram para outras possibilidades de construção da masculinidade, à mesma medida que questionaram e ridicularizaram o rígido modelo masculino tradicional, convergindo de certo modo com as feministas. Além disso, propuseram novas formas de relacionamento amoroso, revelando o quanto as práticas heterossexuais estavam envelhecidas e desenergizadas.

É difícil concluir, ou, pelo menos, dar alguma resposta definitiva. Para mim, permanece a pergunta: para onde vamos em se tratando dos jogos da sedução? Diante de tantas possibilidades colocadas pela diversidade cultural, diante de tanta crítica e desconstrução dos significados simbólicos investidos nas construções das identidades sexuais e nas formas de relacionamento, continua a dúvida: para onde apontam as novas relações de gênero, hetero ou homossexuais, em tempos de globalização?

Nota: No final do filme, Denise se encontra com o pai de seu nenê, na porta da casa onde deveria se realizar a festa de Ano Novo. Novamente, ninguém mais aparece. Os três vão embora, caminhando lado a lado.


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