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Jornal da Unicamp -- Março de 2001

Páginas 12 e 13

Três personagens em busca da nova história

Pelo menos 1.500 jovens de todo o País participaram, de 14 a 23 de fevereiro, do "3º Curso sobre Realidade Brasileira para Jovens do Meio Rural", promovido pela Unicamp e pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Participaram como palestrantes, entre outros, Frei Betto, João Pedro Stedile, Clara Charf, José Arbex, Lobão, Gilmar Mauro e Luís Carlos Guedes Pinto, pró-reitor de Desenvolvimento Universitário da Unicamp e organizador do evento pela Universidade. O Jornal da Unicamp entrevistou três jovens que participaram do curso. A seguir, os depoimentos.

Alvaro Kassab

Jaelson Melquíades dos Santos, 23 anos, pode hoje voltar às coisas da infância remota, breve estação nas privações enfrentadas em sua vida. A mesa sertaneja posta nas casas do assentamento Canudos, em Alagoas, tem macaxeira, feijão verde, batata tirada da terra, galinha capoeira e o arroz branco, sem carrego no tempero. A fruta não é a "de pulso", amadurecida no abafo, mas a colhida no pé, no tempo certo, sem mais nem menos. Jaelson conhece o valor da fartura honesta. Só ele sabe o preço de cada sulco aberto em sua cara e da aspereza bruta da palma da mão. O sol a sol no roçado, diz, apronta dessas coisas.

Na verdade, sempre foi assim – e continua sendo -, mas o alagoano Jaelson tem hoje uma causa, não vive mais entorpecido apenas pelos efeitos. Cresceu com outras 14 pessoas num terreno de uma usina de cana, na região de Maceió, onde despencou a parentada na esperança de dias melhores. O trato foi feito no verbo: sua avó cedeu aos usineiros as terras que tinha em Arapiraca – região produtora de fumo do agreste alagoano – com a promessa de plantar o que bem entendesse. De quebra, seu avô e seu pai foram contemplados com o emprego de operário.

A família não passava fome, mas mais tarde ficaria comprovado que a barganha beneficiou apenas um lado. A área era suficiente apenas para o plantio das culturas de subsistência - e nelas, menino ainda, Jaelson foi batizado na lida do roçado. Anos depois, a situação agravou-se com a demissão do pai. Sem saída, a família voltou para o agreste, mais precisamente para o município de Joaquim Gomes. O pai permaneceu desempregado e, para piorar, abandonou a família. Jaelson, então com 12 anos, e mais seus dois irmãos, foram introduzidos "no mundo da repressão, humilhação e exploração". Sem carteira assinada, saíam de casa às 4 da manhã para o corte da cana. Um dia de falta, diz, custava um mês de salário.

As coisas começaram a mudar há 3 anos, quando a militância do MST apareceu em Joaquim Gomes e convidou a família Santos a ingressar no movimento. A resposta foi imediata. Sem perspectiva de levar uma vida melhor, a prole engrossou a ocupação de um latifúndio improdutivo, hoje assentamento que abriga 142 famílias. Vivem do que plantam, o suficiente para comer e "ganhar uns trocados". Como sinal de gratidão pela acolhida, Jaelson milita juntos aos jovens de 32 assentamentos espalhados por Alagoas. Organiza atividades artísticas e prega um "novo modelo de agricultura, de educação e de homem".

Jaelson não quer ter mais do que já possui. Ele se satisfaz com "uma boa veste". E, claro, com um bom prato de feijão verde com galinha capoeira.

O bicharedo e o lançante

Com seis anos de idade, Denise Carla Cornelli acompanhava o pai, Lírio, na subida das trilhas que serpenteavam os morros da zona rural da cidade gaúcha de Júlio de Castilhos. Nem sempre a menina conseguia levar a enxada – a caminhada, iniciada às 4 horas da manhã, alcançava até 10 quilômetros. Lírio, cuja tarefa de arrendatário era roçar o terreno para os agricultores, saía em socorro da filha. No final da tarde, quando o sol se escondia na serra, depois do trato com o bicharedo e do banho tomado, pai e filha se ajeitavam num canto da varanda para comer polenta e entoar cantigas, conforme mandava a tradição dos imigrantes italianos, legada pelos pais de Lírio e da mulher, a professora aposentada Terezinha.

Denise viu, até os 10 anos, o pai arrancar os tocos, limpar a área e entregar a safra preparada por ele aos donos da terra desbravada, que ficavam com o lucro das lavouras de milho, soja e feijão. Na outra ponta, estavam os latifúndios improdutivos ocupados por pastagens de fachada, cujos proprietários sequer conheciam. Lírio logo percebeu que seu negócio não tinha futuro. Filiou-se ao sindicato local dos agricultores, que tinha o apoio da Pastoral da Terra, participando ativamente de um movimento então embrionário, que resultou, em 1980, na primeira ocupação da história do MST, o acampamento na Fazenda Anone, no município gaúcho de Sarandi, para onde foi com a família.

Os primeiros tempos do acampamento foram de padecimento. Denise abriu mão de tudo - inclusive dos estudos- para ajudar no orçamento doméstico. Foi trabalhar como babá num vilarejo a dois quilômetros do acampamento, "aprendendo a ser mãe aos 10 anos de idade". Com dois meses de emprego, passou também a lavar, cozinhar e cuidar da casa. Sem registro, sua jornada chegava a 15 horas por dia, e o pouco que ganhava era destinado à família.

Denise suportou essa rotina três anos e meio. Depois de "chorar muito no sótão da casa, onde dormia", viu que não havia mais sentido na vida que levava. Um episódio ocorrido num domingo de folga precipitou a decisão. Seu testemunho diz tudo.

"Me lembro que fiquei muito feliz quando meu pai entrou no movimento. Pensei: esse tal de movimento vai dar a terra para o meu pai, ele vai ter um pedaço de chão. Aquilo me marcou muito, foi uma época de muita violência, a gente apanhava da polícia e do exército. Como posso me esquecer dos helicópteros, dos cachorros, dos cavalos, das bombas nos acampamentos? Meu pai sofreu e eu senti isso, principalmente depois de um conflito que presenciei. Aconteceu numa caminhada: os militantes decidiram promover um protesto, uma marcha de muitos quilômetros. Eu estava vindo de onde trabalhava, para visitar meu pai, era um domingo. Aí, eu e meu tio vimos, lá longe, aquele povo marchando. De repente, avistamos num lançante, dos dois lados da ladeira, um monte de cabecinhas verdes. Era o exército... E aí eu disse para o meu tio que aquilo ia dar conflito. Meu tio quis ir embora e eu fiquei. Sabia que meu pai estava lá, não podia ir embora. Quando a marcha chegou, foi aquela pancadaria. Os policiais e os soldados "jogavam" o povo lá de cima. Isso me marcou muito, eu era uma criança. Não vi meu pai, mas sabia que ele estava lá, isso a gente não esquece jamais".

Lírio estava lá. Meses depois, Denise viu, num telejornal, o pai desmaiar na frente das câmeras depois de um confronto com a polícia. Foi a senha para que passasse a militar na lavoura coletiva do acampamento durante um ano e meio. Depois de quase 5 anos na Fazenda Anone, onde estavam 2.500 famílias, os Cornelli foram para o assentamento Nova Ramada, onde permanecem até hoje. Lírio viveu apenas quatro anos na terra conquistada, mas antes de morrer vitimado por um câncer, saiu do coma, pegou a cuia de chimarrão e disse aos três filhos que sua maior alegria era saber que eles continuariam sua luta.

Filha do meio, Denise, hoje com 27 anos, milita no setor de formação de novos quadros, em assentamentos espalhados por todo o Rio Grande do Sul. O irmão mais velho é professor no Nova Ramada, profissão que a mãe Terezinha teve que abandonar ao ficar cega depois de sofrer um derrame no parto do filho caçula. Com parte da visão recuperada, ela vive da piscicultura e da "vaca de leite".

Alfabetizada pela mãe aos 6 anos – já dominava nessa idade o italiano -, Denise conseguiu deixar para trás a maior de suas frustrações: ter interrompido os estudos. Concluiu o segundo grau e pretende cursar História e Pedagogia, para ensinar aos jovens que experiências de vida como a dela "são fruto de um processo secular de dominação". Para ela, o outro lado da história precisa ser contado. Nem que seja numa varanda, com a cuia de chimarrão na mão.

A congada e o leite queimado

Alface já nasceu/a chuva quebrou o galho/alface já nasceu/ a chuva quebrou o galho/ rebola chuchu, rebola chuchu/ rebola senão eu caio. A cantiga de roda sai vigorosa na voz de Marcela de Souza Silva, 18 anos, militante do MST desde o dia 13 de maio do ano passado. Mineira de Aimorés, leste de Minas Gerais, Marcela cresceu ouvindo a batida da congada e de outros ritmos nascidos no continente de seus avós. Brincou no terreiro em noite de lua, tomou leite queimado, enrolou pamonha no beirão do fogão à lenha, comeu batata doce assada. Marcela diz que perdeu tudo isso, mas que guarda uma coisa: a capacidade de não aceitar a exploração.

Filha única, morou durante toda a infância em um sítio onde seu pai trabalhava como vaqueiro. Começou a desconfiar que algo estava errado a partir dos 12 anos de idade, quando constatou que a lida da família não resultava em benefício, que o pai não saía do lugar. Foi nessa época, também, que as diferenças sociais começaram a aflorar.

Na escola, passou a entrar em conflito com os professores por não aceitar a versão que eles conferiam à história do país. Em 1999, por exemplo, negou-se a fazer um trabalho de escola sobre os 500 anos do Descobrimento ao discordar do tratamento dispensado à abordagem. A insatisfação culminou com seu ingresso no movimento, apesar de num primeiro momento ter resistido ao convite feito pelos pais, já militantes. Mudou de idéia depois de visitar o acampamento no munícipio de Serra (ES), região de Vitória, onde moram cerca de 200 famílias.

Está sob a lona há oito meses, e de lá, onde trabalha no setor de formação, não pretende sair tão cedo. Tem a tarefa de orientar militantes recém-chegados ao movimento e de trabalhar com os sem-terrinha, os filhos de assentados e acampados. Prestes a concluir o segundo grau, Marcela pretende estudar Filosofia e dedicar-se ao resgate das raízes culturais brasileiras que, segundo ela, estão sendo "esquecidas pela mídia, que manipula a verdade e promove a imagem de um país que não existe, além de perseguir o MST". Tarefa fácil para quem cresceu no meio das comadres. E da exploração.


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