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Diagnóstico inadequado e indisponibilidade de remédio levam a casos irreversíveis de anemia megaloblástica

Falta de vitamina B-12 está provocando doenças graves na população de idosos

A hematologista Sara Saad, coordenadora associada do Hemocentro da Unicamp:“Médicos e autoridades sanitárias estão subestimando a gravidade do problema” (Foto: Antoninho Perri)Diagnósticos incorretos e a falta de vitamina B-12 em postos da rede pública de saúde estão contribuindo para o surgimento no Brasil de novos e irreversíveis casos de anemia megaloblástica e neuropatias relacionadas à gastrite. A advertência é da hematologista Sara Teresinha Olalla Saad, coordenadora associada do Hemocentro da Unicamp. Segundo ela, médicos e autoridades sanitárias estão subestimando a gravidade e as conseqüências do problema.

Especialista do Hemocentro defende uma campanha de conscientização

A deficiência de vitamina B-12 tem prevalência crescente na faixa etária de 25 a 60 anos, e acomete cerca de 10% da população acima de 65 anos. Mas estudos norte-americanos demonstram que pelos menos 1% da população de idosos desenvolve conseqüências graves da doença, como distúrbios neurológicos e psiquiátricos e anemia megaloblástica (referência ao megaloblasto, glóbulo vermelho que se encontra na medula óssea). A vitamina B-12 é absorvida pelo trato gastrointestinal a partir de alimentos como leite, carnes e ovos.

A causa da deficiência de vitamina B-12 é uma gastrite desencadeada por diferentes mecanismos. Um é de origem imunológica: o doente destrói suas próprias células do estômago, fenômeno muito comum em mulheres acima de 25 anos e também em idosos, associado a doenças da tireóide e ao vitiligo. Outro, responsável pela maioria de úlceras e gastrites em homens e mulheres de qualquer faixa etária, é a bactéria Helicobacter pylori (H. pylori). A H. pylori pode ser diagnosticada por endoscopia e tratada com antibiótico. Sem essa providência, a gastrite torna-se uma lesão que, no prazo de cinco a dez anos, pode comprometer a eficiência da absorção de vitamina B-12.

“Uma hipótese para a alta incidência em idosos é que a deficiência não apareceu aos 65 anos, mas evoluiu ao longo dos últimos dez anos em que a gastrite não foi tratada”, pondera Sara Saad. “A reserva de vitamina B-12 no organismo é grande, mas quando cessa sua capacidade de absorção todo estoque é consumido sem que ocorra a reposição, podendo levar ao desenvolvimento da anemia”.

Desmielinização – Além da anemia, a deficiência da vitamina também causa a destruição de células neuronais, processo denominado desmielinização e que provoca neuropatias, como são chamadas as doenças do sistema nervoso, acarretando distúrbios comportamentais. Os sintomas mais freqüentes são: formigamento em ambas as pernas, queimação na sola dos pés, distúrbios da marcha e do equilíbrio (andar cambaleando com as pernas bem abertas para equilibrar-se). Em casos mais extremos ocorre também incontinência urinária por falta de controle do esfíncter.

“Quando esses distúrbios ocorrem no idoso, pensa-se logo que ele está ficando esclerosado por causa da velhice e fica tudo por isso mesmo”, observa Sara Saad, salientando que podem ocorrer ainda situações que simulam quadros psicóticos.

De acordo com a coordenadora associada do Hemocentro, o paciente tem freqüentemente perda do apetite e emagrecimento. Como nem sempre a anemia está associada a esses outros sintomas da deficiência, não há alteração no hemograma capaz de apontar o problema. Há casos até de se associar erroneamente esse quadro clínico a cânceres, sem que o problema real seja de fato atacado.

“Os médicos ficam investigando durante muito tempo e perde-se a oportunidade de cuidar adequadamente do doente. É comum pacientes com anemia grave receberem transfusão porque apenas desconfia-se de câncer. Ocorrem também associações equivocadas a doenças de medula óssea, tipo aplasia, e a outras alterações hematológicas. Mas essa não é uma doença para o hematologista, é para o clínico geral saber diagnosticar e tratar”, afirma a especialista.

Irreversível – Se a deficiência de vitamina B-12 é diagnosticada precocemente, a pessoa não desenvolve as complicações. Mas, infelizmente, lamenta Sara, não é o que vem ocorrendo. Como unidade de referência, o Hemocentro da Unicamp recebe em média dez pacientes por mês em estado gravíssimo, magérrimos, com níveis baixíssimos de hemoglobina, com graves distúrbios neurológicos, incapacitados de andar e controlar esfíncteres, porque há cinco anos estão com o quadro clínico ainda em investigação, sem o diagnóstico correto.

“A desmielinização provoca uma situação irreversível, ou seja, com tratamento o paciente pode melhorar um pouco, mas não recobra todas as funções, já que alterações neurológicas deixam quase sempre seqüelas”, salienta a hematologista. “Para ser reversível tem que tratar no começo. Mas na nossa casuística, quase todos são irreversíveis, porque chegam em estado muito grave”. Sara Saad conclui, então, que os médicos da rede básica de saúde não estão sendo capazes de diagnosticar precocemente a doença. “Existe uma falha grande desse diagnóstico e não é só na região, é no país inteiro”, observa. Ela completa: “Estamos vivenciando um problema de saúde pública que tende a se agravar, porque a nossa população está envelhecendo e, até agora, o conceito de saúde publica no Brasil foi o de cuidar da criança e do jovem”.

Campanha – A hematologista da Unicamp defende uma campanha nacional para conscientização populacional sobre a gravidade da anemia megaloblástica, semelhante ao que ocorreu com a anemia ferropriva (redução de glóbulos vermelhos por falta de ferro) na década de 1960 no Brasil. Naquela ocasião, lembra Sara Saad, criou-se a consciência na população para a importância do ferro na prevenção da doença. “Agora é preciso que o mesmo ocorra com a vitamina B-12 por causa dos riscos da redução dessa vitamina no organismo. É preciso uma mobilização para que o país produza e disponibilize na farmácia básica um medicamento tão barato para o tratamento”, reivindica.

Tratamento é de baixo custo mas medicamento some das prateleiras

O tratamento da anemia megaloblástica é de baixo custo e ocorre pela aplicação de vitamina B-12 no paciente. A injeção de 1 miligrama do medicamento custa R$ 3,50. Uma dose semanal durante três meses (totalizando R$ 42) e, depois, uma dose mensal para manutenção pelo resto da vida, já que a gastrite é perene, são suficientes para afastar conseqüências mais graves em casos diagnosticados precocemente.

A hematologista Sara Saad sugere que, no idoso, se faça um teste terapêutico com a administração da vitamina caso se perceba distúrbios da memória, irritabilidade anormal, formigamento nas pernas ou mãos, queimação nas solas dos pés, por exemplo. De acordo com ela, o remédio tem a vantagem de não produzir efeitos colaterais em alguém que não tenha a deficiência e pode colaborar para impedir a progressão de algum eventual problema.

“Aplica-se a injeção, às vezes até mais de uma dose, e faz-se o acompanhamento semanal do paciente para saber de sua reação. Geralmente ele relata um bem-estar que não consegue explicar o que é. Mas é porque melhorou da neuropatia, que deixa a pessoa muito cansada, com muita fraqueza muscular, muito inapetente”, conta a pesquisadora.

A dosagem de B-12 no sangue é um exame laboratorial também barato e acessível (não chega a R$ 5,00) e permite ao interessado saber como está o nível da vitamina no organismo antes da eventual aplicação do medicamento.

Produto some – Além da alta prevalência, da má conscientização da classe médica para a gravidade do problema e do despreparo para um correto diagnóstico, há um quarto agravante: a falta de medicação B-12 nas farmácias brasileiras desde novembro do ano passado. Uma amostra da situação é o que ocorre na região de Campinas, conforme constatação do serviço social do Hemocentro: o produto sumiu nas cidades vizinhas e só é encontrado em duas farmácias de Campinas, ainda assim em apresentações de 15 miligramas – o que implica em custo três vezes maior, já que essa quantidade é muito superior ao que pede o tratamento, que pede doses de apenas 1 miligrama.

“Além de não conseguirmos tratar os novos casos, muitos pacientes que já tiveram alta estão voltando ao ambulatório do Hemocentro por causa da falta do medicamento”, afirma Sara Saad. A vitamina B-12 é um remédio muito barato e, conforme observa a hematologista, para obter ganho de escala os laboratórios passaram a fabricar apenas apresentações com uma quantidade exageradamente alta da droga.

“Isso encarece desnecessariamente o tratamento, torna a aplicação da atual dosagem da injeção mais dolorida e não permite aproveitamento de toda a quantidade”, afirma. Ela acrescenta que há apresentações associadas com corticóides, substância absolutamente desnecessária para tratar deficiência de B-12. O remédio também é vendido em cápsulas, mas a absorção oral requer doses maiores e não é tão eficiente quanto a proporcionada por via intramuscular.

Denúncia – A coordenadora associada do Hemocentro conta ter denunciado a situação tanto à Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (braço do Ministério da Saúde responsável pelas políticas de produção e distribuição de medicamentos para a população por meio dos postos de saúde) quanto à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Os dois órgãos ficaram de encaminhar soluções. O problema também chegou ao conhecimento do Colégio Brasileiro de Hematologia e da Sociedade Brasileira de Hematologia.

 

Postos cometem equívoco grave na prescrição

Sara Saad alerta para um equívoco gravíssimo que vem ocorrendo na prescrição de ácido fólico para pacientes medicados em postos de saúde. Indicada para tratamentos de desnutrição, alcoolismo e para mulheres em processos gestacionais contínuos, essa substância faz parte da fórmula de medicamentos vitamínicos disponíveis em grande quantidade na rede pública e receitados indiscriminadamente para todo tipo de anemia. Só que o ácido fólico piora as neuropatias de quem tem deficiência de B-12, já que essa vitamina é extraída do sistema nervoso durante o metabolismo do ácido no organismo.
“Além da piora das neuropatias, há o risco até de desencadear doenças do sistema nervoso a partir da ingestão do ácido fólico”, alerta a especialista. Outro erro dos médicos, segundo ela, é prescrever complexo vitamínico B para tratar deficiência de B-12. O medicamento, embora contenha outras vitaminas B, possui quantidade insuficiente para quem necessita repor B-12.

“Ocorre então que o paciente idoso anêmico é tratado inicialmente, e erroneamente, com ferro. Como não há melhora, mandam tomar ácido fólico. O doente volta ainda com o problema e prescrevem complexo B. Ou seja, não se está tratando deficiência de B-12 e até piorando a neuropatia”, salienta Sara.

Ela observa que isso acaba por mascarar todo o diagnóstico, quando não chegam ao extremo de realizar transfusão de sangue. “Aí torna-se impossível analisar corretamente os dados do hemograma. Por isso existem pacientes que ficam até cinco anos sendo tratados incorretamente de uma doença crônica e quando se descobre a verdadeira causa do problema já é tarde para recuperá-los”.



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