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Jornal da Unicamp - Dezembro de 2000

Páginas 12 e 13

REFLEXÃO

O que estamos fazendo de nós mesmos?

Colóquio reúne pesquisadores de todo o país para pensar, à luz de Foucault e Deleuze, as mudanças nas formas de dominação na sociedade

A indagação que dá título a esta matéria foi o ponto de partida para a reflexão – com base nas idéias dos pensadores franceses pós-modernos Michel Foucault e Gilles Deleuze – dos problemas contemporâneos presentes no mundo globalizado. A questão traz implícita, ainda, a discussão sobre formas de resistência à nova ordem mun-dial imposta pelo capitalismo renovado que, tendo a mídia como forte aliada, aproveita em seu benefício até mesmo das formas de luta que se propõem a confrontá-lo. A necessidade de reflexão sobre a nova sociedade que está se formando, e que vem se anunciando desde os anos 70 - e ganhou impulso sobretudo após a falência dos sistemas socialistas de gover-no -, motivou a realização do Colóquio Foucault-Deleuze – O que estamos fazendo de nós mesmos?, que reuniu no auditório do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, de 22 a 24 de novembro, pesquisadores da obra dos dois filósofos que atuam em diversas áreas do conhecimento e 300 espectadores de várias regiões do país.

A proposta do colóquio foi, a partir das perspectivas de Foucault e Deleuze sobre sociedade disciplinar e sociedade de controle, pensar a realidade contemporânea de um mundo dominado pelo poder da mídia ampliado com a nova ordem imposta pelo capitalismo renovado, onde as pessoas são cada vez mais levadas ao consumo e onde as dificuldades de se impor ao capitalismo - que parece não ter oposição e se coloca de maneira autoritária como a única alternativa de sistema econômico e de vida - são inúmeras. Sem polarização ideológica tudo, incluindo as formas de luta, é aproveitado em seu próprio benefício pela nova ordem mundial. Foucault e Deleuze, explica Margareth Rago, do Departamento de História do IFCH e organizadora do encontro, se preocuparam em pensar a atualidade, as mudanças nas formas de viver e no modo de viver a política. São pensadores que buscam as possibilidades de constituição de novas formas de sociabilidade e de subjetividade em um presente que se marca pela passagem de uma sociedade disciplinar para a de controle .

Vigilância - As transformações experimentadas nas últimas décadas têm atingido as instituições, entre elas aquela de relevância extrema na formação de uma sociedade: a escola. Por conta disto, adverte Alfredo Veiga-Neto, educador e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, é necessária a reflexão sobre o papel da escola nas mudanças que ocorrem no mundo. No Brasil, por exemplo, o modo disciplinador que preponderou especialmente durante o regime militar vem sendo substituído por um novo modelo que, aparentemente liberal, reforça o controle sobre as crianças. "Vivemos a época da abertura da vigilância onde as escolas, por exemplo, deixam de ocupar prédios murados e ao mesmo tempo se transformam em locais onde todos observam todos. E até que ponto é positivo deixar a condição de enclausurado e passar para a de acossado?", questiona Veiga-Neto. Para exemplificar o conceito cita uma escola de Porto Alegre onde as salas são envidraçadas e todos podem observar os demais companheiros de outras salas e também ser observados por eles ininterruptamente.

Outro aspecto que merece reflexão, segundo o educador, é a alteração imposta pelo capitalismo renovado, capaz de transformar a escola de centro de irradiação de conhecimento para locais de formação técnica, onde o objetivo maior a ser atingido é uma boa colocação no competitivo mercado de trabalho. "Na dimensão da economia a ênfase deixa de ser a produção e passa a ser o serviço", ressalta Veiga-Neto. A nova ordem mundial, lembra o educador, estimula também a ida precoce de crianças à escola como forma de a mãe disponibilizar melhor seu tempo. "Assim, o confinamento é mais longo para se moldar o indivíduo", destaca.

Por conta das transformações instauradas na sociedade de controle decorrente do novo capitalismo, surgem novas estratégias de vigilância fortes o suficiente para tornar o indivíduo incapaz de esboçar reações. Um exemplo, lembra Veiga-Neto, é o "Sorria, você está sendo filmado". Neste aspecto, ressalta o educador, a escola tem papel fundamental na proposta de alternativas. "Temos de refletir sobre a possibilidade de mudanças sem demonizar práticas, mas avaliando a utilidade do que elas produzem para o que é bom e para o que é ruim", explica. A indagação para a qual os esforços devem ser voltados, entende Veiga-Neto, é: como operar a escola no sentido de ela poder fornecer espaços para novos acontecimentos?

A vampirização do axé e a apropriação do capitalismo na cultura

Os tentáculos do capitalismo contemporâneo estão estendidos também sobre a arte e a cultura, no intuito de transformá-las cada vez mais em objetos de consumo. No Brasil, por exemplo, isso pode ser notado na apropriação pela indústria fonográfica do potencial do ritmo baiano – uma das importantes forças da subjetivação do povo da Bahia –, que se tornou "menina dos olhos" do novo capital pela facilidade de extrair dele um de seus mais rentáveis produtos.

Se por um lado esta estratégia tem aspectos positivos, como a ampliação de mercado e de circulação da criação musical baiana, gerando com isso maior oportunidade de trabalho, por outro ela é responsável por devolver ao mercado um ritmo clonado, destituído de solidariedade e com um conjunto limitado de trejeitos estereotipados. Um produto empobrecido, que forma a identidade pret-a-porter do estilo daquele povo. Uma carcaça de um corpo reduzido a clichês de sexualidade que perdeu o erotismo e a potência poética.

É desta forma que Suely Rolnik, professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), analisa a influência do capitalismo contemporâneo na cultura, em especial naquela refletida pela produção musical. A vertente perversa do investimento, ressalta a professora, completa-se com o consumo da identidade pret-a-porter pelo próprio baiano de quem a seiva para a produção do clone foi extraída. "Ele passa a ser em muitos casos a imitação servil de seu próprio clone", considera.

O axé-music, destaca Suely, nada mais é do que a vampirização do axé – palavra yorubá que designa a energia sagrada dos orixás, a potência vital de todos os seres e de todas as coisas, a força criadora – para se transformar em um clone estéril de um estilo fabricado e comercializado. "A clonagem passa a ser o procedimento básico do capitalismo contemporâneo, cuja vida em sua potência de irradiação se constitui alvo de investimento privilegiado pela nova ordem. Assim, além dos horizontes visíveis, o capital descobre no invisível uma mina inexplorada para sua expansão", diz.

Na avaliação de Suely, o novo capitalismo carrega ambigüidades. Por um lado, para atingir seu alvo – investir em novas formas de criação e de vida – lhe será necessário o investimento em pesquisas para criação cultural e científica, o que aumenta as chances de expansão da vida. Mas esse prolongamento, ressalta, não é a meta do modelo contemporâneo, interessado na fabricação e comercialização de clones dos produtos derivados desta criação.

Resistência - A nova ordem, acrescenta, convoca a criação das subjetivações similares para serem reproduzidas de forma separada de sua relação com a vida e, desse modo, destituídas de seu sentido cartográfico. "Não é só da vida biológica – cujas pesquisas genéticas alimentam a indústria biotecnológica – que o capital irá extrair fórmulas para clonar. Elas serão extraídas também da vida cultural e subjetiva", acredita.

A resistência às regras impostas pelo capitalismo renovado, reflete a professora, tende a não mais se situar como oposição à realidade vigente. "Não estamos mais no tempo em que a realidade era diabolizada em favor de uma alternativa paralela", considera. Na avaliação da professora, o alvo do capitalismo agora é o princípio que norteia o estilo da criação, já que ela se tornou principal matéria-prima do modo de produção atual.

A humanidade vem sendo sucateada

A sociedade contemporânea está sentindo os efeitos negativos de um modelo capitalista sustentado pela mídia – que produz "verdades" e estimula o não-pensar –, no qual o capital produtivo muitas vezes é preterido em benefício do especulativo, a megaindústria dita regras de comportamento, as manifestações artísticas e culturais são reduzidas a clones e o fundamentalismo religioso cresce em proporções assustadoras.

A realidade, entende Luiz Orlandi, do Centro de Estudos em Filosofia Moderna e Contemporânea do IFCH, força a uma nova indagação: "o que estamos ajudando a fazer de nós mesmos?". A humanidade, destaca Orlandi, vem sendo sucateada pela nova ordem mundial. "E esse sucateamento se constitui num dos paradoxos da sociedade contemporânea", aponta.

Seguindo as idéias foucaultianas e deleuzianas – que propõem novas formas de viver o tempo e a possibilidade de pensar a partir da perspectiva da descontinuidade – um caminho para mudar esta realidade passa por uma guerra que cada um terá de travar em seu interior, previne Orlandi. "Uma luta em busca de uma vida levada com movimentos suaves e de coexistência entre os seres, de modo a ter um maior cuidado em relação ao que nos captura na sociedade de controle e ao que há de negativo nela", considera o professor.

O colóquio na Unicamp, cujo sucesso Orlandi atribui ao grande poder de iniciativa da historiadora Margareth Rago, do Departamento de História do IFCH, além de muito estimulante, mostrou que a temática corresponde a uma necessidade atual de criação de conceitos novos que ajudem "não só a pensar de maneira diferente, como a perceber e sentir distintamente as coisas". Prova deste interesse, segundo o cientista, foi a presença de pesquisadores de diversas áreas das ciências humanas e da filosofia, interessados na reflexão sobre a nova sociedade que vem se formando, pela sociedade de controle capaz de capturar os indivíduos e neutralizar a criatividade.

Margareth Rago, por sua vez, afirmou que a proposta de revitalizar as idéias libertárias de Foucault e Deleuze, a partir da discussão sobre a sociedade imposta pelo capitalismo contemporâneo, foi atingida. "O debate, de elevado nível, foi muito produtivo, permitindo a discussão das idéias dos dois pensadores, que buscam abrir novos caminhos para o pensamento e para a ação, libertando-nos de uma pesada tradição cultural fundada na exclusão do "outro" e, portanto, promovedora das desigualdades e dos preconceitos sexistas e raciais", comenta a historiadora.

Também a partir do pensamento de Foucault e Deleuze, o cientista político Sérgio Adorno, do Núcleo de Estudos da Violência da USP, focalizou o tema da dor e do sofrimento do sujeito moderno na busca da verdade sobre si. "O maior sofrimento do sujeito moderno é essa busca da verdade sobre si", argumenta Adorno. À luz das problematizações dos dois pensadores franceses, a professora Salma Muchail analisou durante o colóquio o filme "Meninos não choram".

O totalitarismo fotogênico

O poder da megaindústria da beleza, saúde e nutrição, aliado à força da publicidade fomenta novo tipo de comportamento na sociedade, onde o corpo passa a ser objeto de valorização total, e ao mesmo tempo decadente, num paradoxo curioso. Nesse mercado global as pessoas passaram a consumir, de forma crescente, terapias, remédios e cirurgias destinadas à reabilitação de seus corpos, não apenas para o trabalho, mas para o prazer. Na análise da situação atual com auxílio de trabalhos de Michel Foucault, sobre o "Biopoder", e de Gilles Deleuze, sobre a sociedade de controle, são encontrados subsídios para a compreensão e politização radical das reflexões sobre a passagem da ordem político-jurídica para a técnico-científica ditada pelo capitalismo contemporâneo.

Com base nesta avaliação, a historiadora Denise Santana, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), acredita que uma das indagações importantes na discussão dos problemas contemporâneos é "O que estamos fazendo de nossos corpos?". A nova ordem, entende Denise, criou movimentos sobre os quais se exige reflexão. "A nova ordem prega a liberação quase absoluta dos corpos em relação à fisiologia e às tradições. A ela interessa não apenas corpos sadios para a exploração da mão-de-obra, mas de sua carne, de seus genes, etc", considera.

Para atingir esse objetivo, ressalta a historiadora, são necessários corpos não apenas liberados de princípios morais e religiosos e das fronteiras de gênero e espécie. Mais que isso, de corpos liberados de seu patrimônio genético e dos conhecimentos dos limites fisiológicos humanos. A nova ordem, acrescenta Denise, aposta na transformação de todas as práticas em busca de prazeres infinitos. Propõe que é preciso viver em meio a prazeres constantes. "Se no tempo de nossas avós nos arrependíamos dos prazeres furtivamente experimentados, hoje tende-se a se arrepender dos prazeres não vividos", comenta.

Fronteiras - Em busca de prazeres infinitos a sociedade acaba por alimentar a megaindústria e, em outra ponta, a publicidade, que passa a anun-ciar cosméticos com função terapêutica e alimentos cosméticos. "Fico imaginando o iogurte anti-rugas, que nos deixa sem saber se devemos comê-lo ou passá-lo na pele", brinca Denise. Esses produtos, ressalta, são capazes de apagar as fronteiras entre beleza, saúde e bem-estar, de modo a criar uma total aversão ao mal-estar, levando as pessoas a procurarem apenas lugares saudáveis para freqüentar. Desta forma a nova ordem aspira não apenas a purificação biológica, mas passa a investir mais na eficácia do que na ética.

O fortalecimento do conceito de eficácia e do que ela classifica de totalitarismo fotogênico, facilita as ações da publicidade e provoca o esvaziamento da política e a sublimação da propaganda. "A política passa a ser percebida como lugar do roubo e da sujeira e a publicidade, por sua vez, como lugar de exercício da cidadania e da limpeza. "Não é por acaso que grandes empresas aparecem em seus anúncios intimamente comprometidas com os valores da cidadania, ecologia, promovendo reciclagem do lixo e prometendo cuidar de cada um de nós como os antigos políticos prometiam cuidar dos antigos cidadãos", assinala. Enquanto a política é vista como lugar da mentira, a publicidade é o local da descoberta das verdades.

Atualmente é comum a utilização de temas sociais nas campanhas publicitárias. Grandes redes também decidiram militar pela conservação da natureza, como se os valores da cidadania, democracia e ecologia se tornassem conseqüência do ato de consumo e não do exercício da politização coletiva. As estratégias aplicadas pela nova ordem tornam a comunicação inquestionável. E para resistir a ela, defende Denise, é preciso retomar a ética.


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