Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 299 - 29 de agosto a 4 de setembro de 2005
Leia nesta edição
Capa
Artigo
Antimalárico
Polinizadores
Recursos psicodramáticos
O frescor do pescado
A blindagem dos republicanos
Nas bancas
Quando o torcedor perde
Painel da Semana
Oportunidades
Teses
Livro da semana
Unicamp na Mídia
Portal Unicamp
Questões de biotecnologia
Na rota da prostituição infantil
 


12

Na rota da prostituição
infantil (e de Gramado)

Documentário dirigido por aluno e ex-aluna da
Unicamp recebe três prêmios no festival gaúcho

MANUEL ALVES FILHO

Coraci Ruiz, Joseli Rimoli e Julio Matos: contribuindo para as políticas públicas voltadas à proteção de crianças e adolescentes (Foto: Antoninho Perri)O documentário “Rotas Recriadas”, dirigido por Julio Matos e Coraci Ruiz, recebeu três premiações no 33º Festival de Gramado –Cinema Brasileiro e Latino, encerrado no último dia 20 de agosto. A produção foi eleita como “Melhor Vídeo Social”, “Melhor Vídeo Independente Brasileiro escolhido pelo júri” e “Melhor Vídeo Independente Brasileiro escolhido pelo público”. Julio é aluno do curso de Ciências Sociais do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCH) da Unicamp e Coraci graduou-se em Dança também pela Universidade. O filme, que leva o mesmo nome de um projeto voltado ao resgate do direito à infância de crianças e adolescentes submetidos à exploração sexual, conduzido em Campinas em 2004, traz depoimentos de meninos e meninas vítimas desse tipo de violência, bem como de outros personagens envolvidos direta ou indiretamente com o problema. O documentário exibe, ainda, declarações de profissionais que participaram do projeto, como educadores, psicólogos, terapeutas ocupacionais e enfermeiros.

Trilhos em forma de criança (Foto: Divulgação)O projeto “Rotas Recriadas”, financiado pela Petrobras, já havia dado origem à tese de doutorado intitulada “Direto à delicadeza”, defendida pela enfermeira sanitarista Josely Rimoli na Faculdade de Ciências Médicas (FCH) da Unicamp. O assunto foi tratado na edição do Jornal da Unicamp que circulou na semana de 2 e 8 de maio deste ano [leia nesta página]. De acordo com os cineastas, uma das propostas originais do programa era registrar em vídeo as diversas ações desenvolvidas junto às crianças e adolescentes. “A decisão de transformar o material em documentário foi tomada em parte pelo estímulo dado pela Josely e em parte pela própria riqueza e importância dos depoimentos”, explica Julio.

Assim, a partir de pessoas que participavam da rede de proteção criada para atender a essas crianças e adolescentes, formada por várias secretarias municipais e entidades assistenciais, os diretores do documentário chegaram a diversos personagens envolvidos direta ou indiretamente com a exploração sexual infanto-juvenil. Julio e Coraci colheram, por exemplo, depoimentos de meninos e meninas vítimas desse tipo de violência, de um travesti adulto que passou pelo mesmo problema na infância, de um dono de casa de prostituição e de diversos profissionais que integravam o programa “Rotas Recriadas”. “Nossa maior preocupação foi minimizar o caráter institucional do projeto e priorizar a discussão sobre a questão da exploração sexual, por entendermos que isso contribuiria de forma mais efetiva com as políticas públicas voltadas à proteção dessas crianças e adolescentes”, afirma Julio.

Prostitutas nas ruas de Campinas (Foto: Divulgação)Segundo Coraci, os depoimentos dos meninos e meninas vítimas de exploração sexual têm vários pontos em comum. A começar pela trajetória de vida deles. A maioria esmagadora abandonou a escola e vem de famílias desestruturadas. Boa parte sofreu abuso sexual antes de ser empurrada para a prostituição. Nesse aspecto, tanto os cineastas quanto Josely fazem uma observação. De acordo com eles, quando se trata de prostituição infanto-juvenil não se pode usar o verbo “optar”. “Há crianças de 9, 10, 11 anos que se prostituem para assegurar a própria sobrevivência. Não é possível dizer que uma menina ou menino nessa faixa etária tenha se decidido por essa vida. Ele ou ela certamente foi forçada a isso, o que constitui uma exploração”, esclarece a enfermeira sanitarista, que respondeu pela coordenação do projeto “Rotas Recriadas”.

Prostitutas nas ruas de Campinas (Foto: Divulgação)Ao longo das gravações, realizadas entre outubro e novembro do ano passado, Coraci diz ter percebido um aspecto importante em relação à questão da exploração sexual infanto-juvenil. Ela afirma que o abuso sexual não tem classe social, ou seja, ocorre tanto com crianças de famílias ricas quanto pobres. “Mas a exploração sexual acontece predominantemente com os jovens vindos de famílias de baixa renda”, analisa. Questionadas sobre seus sonhos, as vítimas desse tipo de violência declaram ao longo do documentário que anseiam ascender socialmente. Muitas meninas cultivam o desejo de tornarem-se modelos e usarem roupas de grife. Como boa parte vive nas ruas, várias esperam encontrar um lugar decente para morar.

O curioso é que a expectativa de conquistar um lar não tem necessariamente relação com a constituição de uma família. Uma das exceções fica por conta de uma menina, que deu a declaração mais impressionante na avaliação dos cineastas. Ela respondeu da seguinte forma à pergunta sobre onde ela gostaria de chegar: “Espero voltar para perto de minha mãe”. Julio e Coraci consideram os prêmios recebidos no Festival de Gramado como um estímulo importante ao trabalho que vêm desenvolvendo. “Nós nos sentimos muito honrados com esse reconhecimento”, afirmam os cineastas, quase em uníssono. Para Josely, fica a expectativa de que as premiações ajudem a divulgar a filosofia original do projeto “Rotas Recriadas”, de modo a incentivar experiências semelhantes em outras cidades.

O filme “Rotas Recriadas” foi produzido pelo Laboratório Cisco, núcleo de documentários da produtora Kino Studio, com sede no distrito de Barão Geraldo, em Campinas. O próximo filme de Julio e Coraci já está em fase de edição. Trata-se de um documentário sobre vídeocartas trocadas entre quatro famílias de Campinas e quatro de Havana, em Cuba, que já se conheciam. O filme mostrará a relação afetiva estabelecida entre os personagens e as transformações sofridas por eles depois de transcorrido um determinado tempo. O lançamento está previsto para setembro. “Ainda estamos em busca de patrocínio”, avisa Coraci. Os interessados em apoiar o trabalho podem manter contato pelo telefone (19) 3289-2693 ou pelo e-mail.

O direito à delicadeza

Antes de dar origem ao documentário ao qual empresta nome, o projeto “Rotas Recriadas” foi objeto da tese de doutoramento da enfermeira sanitarista Josely Rimoli, apresentada na Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp. Intitulado “Direito à delicadeza”, o trabalho analisava os eixos que orientaram as intervenções voltadas ao resgate do direito à infância de crianças e adolescentes submetidos à exploração sexual em Campinas. A autora procurou compreender o fenômeno social e registrar como as ações e serviços propostos pelo programa foram arranjados no âmbito municipal, de modo a assegurar a prevenção, a proteção e o cuidado das vítimas desse tipo de violência.

Inicialmente, a pesquisadora investigou as causas da exploração sexual infanto-juvenil. Conforme a autora, o problema não está relacionado apenas com a pobreza e a miséria. “Esses fatores contribuem, mas não são os únicos. Outros aspectos, inclusive os de ordem cultural, também têm influência”, afirmou em entrevista ao Jornal da Unicamp. Um dado que reforça essa avaliação vem de uma pesquisa realizada em várias cidades brasileiras, mencionada no trabalho de Josely. Segundo o estudo, enquanto no Distrito Federal as meninas submetidas à exploração sexual têm entre 10 e 17 anos, em Salvador elas pertencem à faixa etária que vai dos 5 aos 12 anos. “Nesse caso, o viés cultural fica muito claro. Na Bahia, as crianças convivem desde muito cedo com elementos ligados à erotização. Não por acaso, vêm de lá as danças como a da garrafinha”, disse.

Todo esse problema, abordou Josely em sua tese, tem ocorrido num contexto em que as políticas públicas de atendimento a esta parcela específica da população praticamente inexistem. A carência de escolas criativas e acolhedoras, a falta de espaços de lazer e cultura e o número reduzido de programas profissionalizantes e de projetos de inclusão, de acordo com a enfermeira sanitarista, criam um ambiente propício à manutenção da exploração sexual desses jovens. Isso pode ser dimensionado, em algum grau, por meio dos resultados da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) instituída em 2004 pelo Congresso Nacional para investigar a exploração sexual de crianças e adolescentes. Na ocasião, os trabalhos da CPI resultaram em 543 notícias-crime e na sugestão de indiciamento de 250 pessoas, entre políticos, empresários, magistrados, líderes religiosos e esportistas. Deputados e senadores constaram que o fenômeno, classificado como extremamente complexo, está disseminado em todo o Brasil e não está ligado apenas à pobreza, mas também a aspectos culturais, como apontou o estudo de Josely.

SALA DE IMPRENSA - © 1994-2005 Universidade Estadual de Campinas / Assessoria de Imprensa
E-mail: imprensa@unicamp.br - Cidade Universitária "Zeferino Vaz" Barão Geraldo - Campinas - SP
Foto: Antoninho PerriFoto: Neldo CantantiFoto: Antoninho PerriFoto: Gustavo Miranda/Agência O GloboFoto: Antoninho Perri