Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 299 - 29 de agosto a 4 de setembro de 2005
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A blindagem e o
retorno à superfície
na dimensão dos interesses republicanos



ÁLVARO KASSAB


Ricardo Carneiro, professor do Instituto de Economia: "Acho difícil que a crise política contamine a economia" (Foto: Antoninho Perri)A blindagem do modelo econômico é recorrente na crise atual, atropela os princípios republicanos e interfere na dimensão política do Estado. O diagnóstico é compartilhado pelo cientista político Luiz Werneck Vianna, professor do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), e pelo economista Ricardo Carneiro, professor do Instituto de Economia (IE) da Unicamp.

O fenômeno, ressaltam os analistas, não é recente, mas ganha contornos inusitados por ser um divisor de águas de um governo de esquerda que fez do mercado uma de suas tábuas de salvação. “O que essa crise revela de

interessante é o segredo de polichinelo da República brasileira. O soberano não está mais em instituições. Ele está em outro lugar, em outra região”, afirma Werneck, para quem o governo fez “a sociedade tornar-se expectante em relação ao que uma tecnocracia iluminada opera em cima”.

“Uma das conseqüências da chamada blindagem é que a soberania popular na verdade vai sendo cada vez mais escorraçada”, avalia Ricardo Carneiro. Para o docente do Instituto de Economia, nesse contexto “as eleições valem cada vez menos, já que boa parte do poder real da sociedade não passa mais pelo voto”.

Na entrevista que segue, Werneck – que deu uma palestra no Instituto de Economia no último dia 24 – e Carneiro analisam a conjuntura política e econômica.

Jornal da Unicamp - Fala-se muito em blindagem do ministro da Fazenda, Antonio Palocci, e do modelo econômico, o que pressupõe a manutenção dos fundamentos vigentes. Até que ponto eles estão sólidos para justificar essa rede de proteção? A quem exatamente ela interessa?

Luiz Werneck Vianna – Se a dimensão econômica é capaz, como sustentou o ministro da Fazenda no último dia 24, de por si só trazer ganhos crescentes para a população em termos de expansão da taxa de emprego, de oportunidades de vida e de serviços sociais, isso é algo a ser checado. A análise de indicadores vai poder auferir a sua efetividade ou não. Essa é uma questão.

A outra diz respeito a um governo de esquerda rebaixar de tal forma o tema da vontade a um ponto que chega a sugerir à sociedade, nesse cenário, que ela se torne apenas expectante em relação ao que uma tecnocracia iluminada opera em cima. Isso é de uma desmobilização sem tamanho. Para isso, não precisava um governo de esquerda.

Por mais que o cenário mundial esteja complicado – como ficou claro na Itália, na Espanha e na França – um governo de esquerda tem que, por definição, pensar em alternativas de sociedade, de vida. Ele precisa mobilizar a imaginação das pessoas para outras possibilidades. É isso que esse governo, muito especialmente no curso dessa crise – e mais especificamente no dia 24 de agosto de 2005 – vem definindo de uma forma muito dura. “O meu projeto é o da economia; quanto ao deserto do campo político e à mobilização popular uniforme e absenteísta disso, vou agir salvo para me defender junto aos beneficiários dos meus programas assistencialistas”. Isso é grave. Trata-se de capitulação da esquerda no sentido de procurar ao menos outros mundos possíveis.

Luiz Werneck Vianna, professor do Iuperj: "A estrutura partidária e a legislação eleitoral se corromperam" (Foto: Antoninho Perri)Ricardo Carneiro – A história da blindagem é muito mais ampla. Na verdade, o que se tem crescentemente no mundo hoje é a blindagem de um conjunto de políticas que atendem a determinados interesses. Esse é o significado da blindagem. Ela existia, havia já sido montada no Brasil desde o governo Collor e foi aprofundada na era FHC. Dela, fazem parte instituições internacionais, multilaterais e o governo. Seu sentido é mais amplo. No caso brasileiro, ela foi construída no governo Fernando Henrique e entrou no governo Lula. Palocci, desse ponto de vista, representa a blindagem. Mas ele não é a blindagem, que transcende a figura do ministro. Se amanhã Palocci sair do Ministério da Fazenda, a blindagem continuará. De fato, não há questionamentos substantivos a essa blindagem. Nem sequer se discute um caminho para rompê-la.

O sentido das eleições de 2002, da perspectiva de vários setores progressistas, era a mudança do eixo da política econômica. Desse ponto de vista, tínhamos várias possibilidades – umas mais arriscadas, outras menos. Mas as mudanças pressuporiam que alguns contratos fossem refeitos. O governo que entrou aceitou a manutenção de todos os contratos, sem exceção. A blindagem é exatamente isso, os contratos. Na área da economia não houve modificação de nenhum dos contratos considerados relevantes pelo mercado financeiro. Havia uma discussão de estratégia, de que quais contratos poderiam ser rompidos. Mas há uma opção, na área da política econômica, de não se mexer na blindagem representada por esses contratos.

A esquerda no Brasil precisaria superar a síndrome bipolar. Temos uma esquerda que até tem um diagnóstico razoável do país, mas que acha que só é possível fazer política por meio de rupturas, todas de uma só vez. Ao mesmo tempo, você tem no PT o Campo Majoritário, que é hegemônico, que acha que nenhuma mudança é possível do ponto de vista da política econômica. Aliás, o que fizeram eles senão reintroduzir, no governo Lula, a idéia do pensamento único na economia, de que nada é possível além dessa política que aí está, que é a capitulação – que é o contrário da ruptura? Há então um movimento pendular.

“A esquerda tem de superar a síndrome bipolar”
Ricardo Carneiro

JU - Até que ponto a economia tutela a crise política?

Luiz Werneck Vianna – No curso da crise, houve momentos – que já ficaram para trás – em que foi cogitada a possibilidade de uma defesa propriamente política do governo, importando inclusive movimentos dissonantes em relação à política econômica estabelecida. Exemplo: as sucessivas idas do presidente aos movimentos sociais, para que os tambores soassem no sentido de uma grande convocação política de defesa de seu mandato. Isso significaria a introdução de elementos de uma dimensão da política na dimensão da economia. Isto é, “contaminar a economia com a crise política”.

O discurso do Palocci não teve êxito apenas na sociedade, mas em setores da própria oposição. Atenção para o trecho em que o ministro faz elogios aos governos anteriores... O presidente viu que, a partir daí, era este o caminho de defesa, e não mais aquele da mobilização popular. Foi o que esteve implícito quando José Dirceu saiu da Casa Civil e disse que iria lutar na planície – não apenas pelo seu mandato, mas também por uma política que teria elementos de dissidência em relação ao que estava instituído. Especialmente com essa separação siderúrgica do mundo da economia com relação ao da política. Isso ficou para trás. Esse caminho apareceu como um atalho, mas esse atalho pareceu muito perigoso porque ele levaria a uma unificação das elites em torno do processo do impeachment.

O impeachment está sendo um grande demarcador de posições. Essa é uma luta que tem seu sentido com o que está acontecendo no mundo. Não podemos olhar para o mundo abstraindo dela. Mas tudo isso é deseducativo, não organiza campo político efetivo algum. De todo modo, as clivagens profundas que existem na sociedade começam a fazer um movimento de retorno à superfície.

Acho que a próxima sucessão terá essa questão como central. Já há um candidato complicado, por causa das suas raízes populistas, que é o Garotinho. Ele entende que esse é o caminho por onde ele deve avançar. Isto é, de combate a essa autonomização exasperada da dimensão econômica. Acho que haverá outros. E haverá poucas possibilidades de modulação desse discurso. Das mais radicais – como será a de Garotinho caso ele seja candidato, coisa em que não acredito porque acho que o PMDB não vai dar legenda para ele, até o discurso, por exemplo, de Helóisa Helena. Se ela for candidata à presidência da República, ela vai fazer essa marcação. Existirão candidatos que vão procurar modular essa posição. O resultado dessa modulação já será importante o suficiente, na minha opinião, para fazer com que seja legitimada a entrada dos temas políticos e sociais na dimensão econômica. Fazer com que isso não seja um monopólio cerrado da tecnocracia.

Ricardo Carneiro – Acho que a economia está passando ao largo dessa crise. Acho difícil que a crise política contamine a economia, dada essa blindagem que está além do governo. Estamos vendo uma crise que é resultado da precariedade da política de alianças montada pelo PT, que é a outra face da política econômica ortodoxa. Desse ponto de vista, trata-se de uma crise eminentemente política.

Do meu ponto de vista, a crise política tem um aspecto bastante interessante que é a atuação da elite brasileira. Ficou claro, desde a Carta ao Povo Brasileiro, e pelo conjunto de atitudes que o governo Lula foi tomando na área econômica, que não havia razão para que a elite se sentisse ameaçada pelo governo. A história de que só havia um caminho na economia foi uma construção muito bem feita e consolidada. Desse ponto de vista, a crise política abriu a possibilidade, para a elite brasileira, de não fazer nenhum questionamento em relação a isso, até para retomar o poder em 2006. É o jogo político. Ela fez isso com competência – operou um esvaziamento do Governo retirando, por exemplo, as chances de reeleição.

JU - Os interesses do mercado interferem na dimensão política do Estado e dos princípios republicanos? Se sim, em que medida?

Luiz Werneck Vianna – Essa pergunta é relevante. A soberania foi usurpada muito caracteristicamente a partir dos anos 90. Sob ameaça ela sempre esteve, mas esse processo pleno de usurpação vem desde o governo Collor. Não podemos analisar a conjuntura presente apenas a partir de Fernando Henrique Cardoso; vem de antes. É resultante também da forma desastrada como nós vivemos a transição para a democracia, e como operamos a institucionalização da democracia na Carta de 1988. É de lembrar, por exemplo, que o PT não assinou a Carta.

A questão é relevante na medida em que as instituições republicanas passaram a operar sob limites e sob imperativos categóricos que não vinham dela, que eram externos a ela. Isso é próprio do Estado de exceção, e é soberano quem decreta o Estado de exceção. A soberania brasileira foi afetada neste momento em que se disse para as instituições republicanas quais são os limites em que ela pode operar.

Ela pode fazer legislação social em certos limites; ela pode ter determinadas atividades, sempre sob esse imperativo de respeito às regras sistêmicas que aí estão. A meu ver, do ponto de vista prático, significa, avizinha, assemelha às circunstâncias a de um Estado de exceção. E você também não pode deixar de considerar que as medidas provisórias – com toda a possibilidade que o Executivo tem de fazer regras e normas que nos obriguem a uma série de coisas – não têm feito outra coisa a não ser confirmar isso.

O que essa crise revela de interessante é o segredo de polichinelo da República brasileira. O soberano não está mais em instituições. Ele está em outro lugar, em outra região.

Ricardo Carneiro – É de extrema gravidade essa discussão. No fundo, quando se diz que a economia está blindada, isso está sendo feito contra a soberania popular que se expressa por meio do voto. Afinal de contas, Lula ganhou a eleição em 2002 com aproximadamente dois terços dos votos. Qual é a questão substantiva? É que hoje, na prática, as eleições valem cada vez menos. Boa parte do poder real da sociedade não passa mais pelo voto. O que adianta ganhar uma eleição se, na prática, não se consegue promover mudanças nas questões substantivas?

Isso, de certa forma, explica o que acontece em várias sociedades, embora no Brasil seja ainda mais grave em razão das desigualdades. Nos Estados Unidos, por exemplo, há um interesse cada vez menor das pessoas pelo voto. O povo norte-americano está vendo que o voto muda pouco coisa – a mistura entre política e negócios influencia mais. Essa é uma das conseqüências da chamada blindagem. Ou seja, a soberania popular na verdade vai sendo cada vez mais escorraçada.


JU - Como o senhor analisa o fato de o PT (ou pelo menos parte dele), partido em que o discurso predominante era antimercado, passar a escorar-se nesse mesmo mercado em nome da governabilidade. O discurso era para a torcida? Em que momento deu-se a mudança?

Luiz Werneck Vianna – Se você pesquisar textos de minha autoria, chegará à conclusão de que eu teria respondido isso há muito tempo. E digo isso sem um pingo de presunção. Trata-se hoje de um argumento que virou senso comum. Todos já entenderam a partir de que tendências o PT se originou. Do sindicalismo do ABC, orientado para o mercado, para o mundo dos interesses, em oposição ao sindicalismo pré-existente, que estava também orientado para o tema do Estado, e, como tal, orientado para a política. A mágica do novo sindicalismo foi se apartar disso e ganhar terreno livre para operar na sociedade porque estava descontaminado da tradição do sindicalismo brasileiro de até então. Esse sindicalismo nasce alheio à política e aos intelectuais.

Eu participei de um debate em 1977, com o então sindicalista Lula, que está registrado em livro, chamado a “A conjuntura nacional” [Editora Vozes, 1978]. Nesse debate, o Teatro Casa Grande, que comportaria 700 pessoas se tanto, abrigou 1.200 pessoas empilhadas. Nesse debate, Lula disse textualmente – está lá gravado para “os tempos” – que o AI-5 dos trabalhadores era a CLT. Em seguida, eu disse que o AI-5 dos trabalhadores era o AI-5 e não a CLT. É claro que a platéia se incendiava com o que ele dizia; Lula representava a pureza do movimento operário... Tinha aquele lado da ontologia saudável da sociedade brasileira. Vinha de uma classe pura...

Era isso mais a Igreja com uma visão de capitalismo pastoral – uma vaca e três alqueires, aquela coisa de Gustavo Corção – e setores da ultra-esquerda, revolucionaristas, que viram nessa associação uma oportunidade felicíssima para afinal chegarem à classe operária, ao âmago dos setores subalternos da sociedade. Assim, imaginavam dirigir afinal a revolução brasileira.

Esse compósito foi mantido pelo carisma de Lula. Ele foi capaz de articular essas partes desconexas num tecido razoavelmente unitário. Tudo ficava na sua dependência; ele que colava. Mas, ao cabo, ele jamais foi infiel à sua marca de origem. Ele disse, logo no início do governo, que jamais havia sido de esquerda. É verdade...

Em relação ao presidente, não há tantos motivos para que nós entendamos uma mudança de curso tão radical no que diz respeito às suas convicções e ao seu sistema de orientação no mundo. Quanto ao PT, sim. Porque a maneira como Lula argamassou o partido admitia o discurso da ruptura, da mudança radical. Mas, quando isso se traduzia em programa, não passava da retórica, como o foi o “Programa de Recife de 2001”. Falava-se em socialismo, mas isso era um registro retórico.

Daí pareceu, num dado momento, para a esquerda brasileira e especialmente para esquerda mundial – que estava precisando acreditar em alguma coisa – de que essa era uma nova forma de a esquerda se fazer presente no mundo por meio de caminhos que não tinham nada a ver com os caminhos da tradição.

Havia coisas positivas nisso, mas acho que tudo foi perdido nessa trajetória desconexa do governo.

Ricardo Carneiro – Havia uma falha importante na concepção do PT sobre a política econômica. Não é possível transformar uma economia periférica, subdesenvolvida, quando você não tem políticas de Estado bastante claras e definidas em determinadas áreas. Esse que é ponto central.

Isso não é ideologia. A experiência histórica exitosa dos países asiáticos e do desenvolvimentismo no Brasil mostra isso. O PT jamais foi um espaço de reflexão sobre essas políticas. E chegou ao governo sem uma visão clara sobre esses temas embora a discussão tenha avançado bastante entre 1999 e 2002.


JU - Até que ponto a opção pela ortodoxia resultante do controle inflacionário e de outras medidas conservadoras é um obstáculo para o desenvolvimento social?

Ricardo Carneiro –Isso pode ser respondido em diversos níveis. Qual é a questão, na verdade, do combate inflacionário? As pessoas precisam entendê-la, não é uma tara do sistema. As sociedades contemporâneas têm cada vez mais o peso da poupança financeira. A inflação ameaça muito a riqueza financeira. Daí a importância que essas políticas de estabilidade assumem no capitalismo contemporâneo. São interesses. E não adianta dizer que só são interesses dos banqueiros. Nos países centrais e mesmo no Brasil, partes das classe médias também têm interesses nessa dimensão.

O problema é que, na medida que é exacerbada, como no caso brasileiro, essa política de estabilidade se faz em detrimento de aspectos centrais para a grande maioria da população como o crescimento, a expansão do emprego etc. Essa é a natureza da contradição. Não se pode chegar ao governo e arbitrar em favor da estabilidade inflacionária a qualquer custo. O outro lado sai prejudicado. Não é uma questão simples, teria de ser tratada de outro maneira e não foi. Há uma completa capitulação do governo em relação a esse tipo de política.

“A sucessão do presidente Lula foi precocemente antecipada” Werneck Vianna

JU - Antes de chegar ao poder, o PT pregava a necessidade de um modelo alternativo de gestão da economia. Ele seria factível? Em que moldes funcionaria e como poderia ser viabilizado? Como resolver a equação entre crescimento econômico, justiça social e distribuição de renda?

Luiz Werneck Vianna – Já que a aliança com o PMDB tornou-se inviável, o PT fez alianças com pequenos partidos. Não precisava, contudo, incluir a parte especializada na política de clientela do sistema partidário. Podia fazer um governo com PPS, PDT, PV, PSB e pronto. Seria possível, com isso, se atirar de frente contra os chamados constrangimentos sistêmicos? Não dava. Mas havia campo para, ao longo do tempo e no espaço do possível, criar alternativas de micro e médio alcance. Não precisava de nenhuma dessas emendas constitucionais. Elas não eram vitais. A emenda da reforma do Judiciário foi para atender ao mundo sistêmico, para controlar o Poder Judiciário. É uma mentira argumentar que foi para debelar a corrupção num dos poderes que é um do menos corruptos do Brasil.

Trata-se de uma demagogia patrocinada diariamente, e com amplíssima cobertura da mídia. Era para controlar. Era para que, quando viessem as medidas econômicas, o Jobim dissesse: “por aqui, não...”. Tentou-se, da mesma forma, controlar o Ministério Público.

Tinha sim possibilidades, não heróicas, de se levar um programa consistente no qual houvesse alguns avanços e, sobretudo, ao final, uma agenda nova fosse colocada para o país, inclusive da necessidade de enfrentar o soberano que a todos nos obriga, que é o diabo desse sistema econômico-financeiro que aí está.

Era preciso avançar com a República, com a organização republicana. Havia essa possibilidade, mas passou, são águas corridas. Não há mais como testá-la.

Ricardo Carneiro – Ao contrário do que dizem, o PT tinha, pelo menos na economia, um embrião de projeto alternativo formulado por intelectuais no Instituto da Cidadania e depois discutido amplamente pelo partido. Sua construção foi bastante interessante. Há documentos importante sobre isso, nos programas de governo lançados na campanha em 2002. Um dos pontos centrais era “O social como eixo do desenvolvimento”; que sugeria incorporação das massas ao processo de desenvolvimento por meio da ampliação de bens públicos.

O PT, de fato, tinha um esboço de programa econômico alternativo e reformista. Esse programa tinha passagens corretas, mas não foi testado e foi abandonado ao longo do processo de capitulação. Um conjunto de economistas importantes, muitos da Unicamp, que orbitavam em torno do PT, acabou derrotado.

Quando se imaginou um programa de governo, pensou-se em três conjuntos de políticas básicas. Um deles para lidar com o chamado eixo nacional – para melhorar a inserção externa do país – que incluía políticas de atualização tecnológica, de melhoria da inserção produtiva, de redução da vulnerabilidade financeira para superar uma herança péssima do governo Fernando Henrique. Havia porém um problema: isso não criava empregos.

Pensou-se, assim, no chamado eixo social do desenvolvimento, ao qual já me referi. Seriam realizados investimentos significativos em cinco bens públicos essenciais: saúde, educação, habitação, saneamento e transporte coletivo. Tratava-se de um programa que melhoria o nível de vida a população, a ser implementado com recursos públicos, que além do mais era intensivo em emprego.

O terceiro conjunto era para tratar da restrição macroeconômica. Essa restrição, nesse modelo, não era portanto o eixo central das políticas. Era uma restrição que teria de se adaptar de alguma forma aos dois eixos estratégicos de desenvolvimento – o social e ao nacional.

A discussão essencial é a conversão da política macroeconômica no eixo central da política econômica do governo Lula. Essa foi a capitulação.

JU - Há quem diga que o Brasil vive um “círculo virtuoso”, com indicadores que justificariam esse otimismo. Por outro lado, analistas entendem que o país caiu no “círculo vicioso”, ou seja, tornou-se refém das medidas adotadas ao longo dos últimos anos. O que o senhor acha?

Ricardo Carneiro – Se você analisar a conjuntura internacional dos últimos três anos, não há nada semelhante nas últimas três décadas. Desde 1975, na realidade, não havia uma conjuntura tão favorável do ponto de vista do comércio internacional, crescimento e de financiamento externo. Só o ciclo do petrodólar guarda uma certa semelhança ao cenário do período recente.

Quando se olha para o Brasil, é o país que cresce menos nessa conjuntura extremamente favorável. Se for comparar, numa amostra de 15 países emergentes mais importantes, estamos em 13º. E o que faz com que o Brasil tenha um desempenho relativo tão pífio? São as políticas colocadas em práticas no país. Além, é claro, da herança maldita da era FHC. Trata-se então de uma combinação desses fatores. E quanto tempo vai durar o crescimento mesmo medíocre? Vai durar enquanto durar o cenário internacional favorável. Acho que já desacelerou, não será tão exuberante assim nos próximos anos. Não estamos formulando políticas capazes de dar um certo grau de independência da trajetória da economia a esse cenário internacional cambiante.

JU - Que horizonte o senhor descortina para o período pós-crise?

Luiz Werneck Vianna – A sucessão foi precocemente antecipada. Esse é um dado forte. Nessa sucessão, as possibilidades de reeleição sofreram um rebaixamento. Há um cenário aberto, inclusive para protagonistas externos ao mundo político tradicional. Pense por exemplo em Nelson Jobim e Mangabeira Unger, que são candidatos altamente credenciados. Ambos querem disputar, mas ainda não têm ancoragem na estrutura partidária.

Mangabeira Unger diz, com toda a razão, que não há país como este em que propostas novas possam vir a encontrar tanta audiência. O diagnóstico dele é correto. Foi assim com a aceitação que Collor e o PT tiveram na sociedade. Se isso for verdade – e acho que é – é mais ainda num contexto em que as duas torres gêmeas que controlam a política brasileira, PSDB e PT, se encontram abalados. Há outras possibilidades, sim.

O desfecho dessa crise pode também operar aproximações que até agora nós não suspeitávamos, entre as quais entre o PT e o PSDB. Entendendo esse cenário como um laboratório, isso é possível. Basta ver como os dois partidos se põem diante da política econômico-financeira. E a essa altura você não pode dizer que a adesão do atual presidente seja meramente instrumental, porque o seu mandato está hipotecado a esse componente. Lula não tem mais alternativas.

Há a percepção de que a estrutura partidária e a legislação eleitoral se corromperam e apodreceram à vista de todos. Isso precisa ser reformado. A reforma virá para melhor. O mundo eleitoral estava entregue à carnavalização; a estrutura partidária estava entregue a um empreendedorismo político que não levava à representação efetiva do eleitorado e do povo brasileiro. São fatos a serem considerados.

Há um outro, que é a denúncia, até então velada, clandestina, anônima, de qual era o poder soberano nos regia. Ele agora está visto. Tem nome e sobrenome: é o sistema econômico-financeiro. Ele deverá ser o alvo da vontade republicana. A República brasileira só vai avançar na medida em que trouxer, para si, a soberania que lhe foi subtraída.

Ricardo Carneiro – É impossível fazer previsões, sobretudo por conta do desdobramento da crise política. Em tese, a economia estará blindada até o próximo Governo. Mas a blindagem pode ceder em dois pontos: primeiro, a política econômica, embora preservando os interesses dos rentistas, pode produzir resultados cada vez mais pífios nas variáveis relevantes para a maioria da população, como emprego, crescimento, aumento de salários. Depois, têm as eleições, cujo desfecho, na minha opinião, é imprevisível.

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