| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 313 - 20 de fevereiro a 5 de março de 2006
Leia nesta edição
Capa
Brasiléia II
Drenagem torácica
Lattes
Alfredo Marques
Mandarim 7, 8 e 9
Caism, 20 anos
Videoconferência no IG
História Peculiar
Lazer & mercadoria
Vida Acadêmica
Teses
Vanguarda Paulista
Rediscutir a creatina
Face feminina na Internet
Flora Brasiliensis
 

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Alfredo Marques conta como conheceu Lattes e
construiu uma amizade de mais de meio século

O depoimento de um grande amigo

Maria Carolina assina termo de doação: perpetuando a memória afetiva (Foto: Neldo Cantanti)Mara Leodoro Silva e com o jacaré empalhado: pregando susto no ônbus (Foto: Neldo Cantanti)A neta Maria Fernanda: enfeita com declaração de amor ao avô (Foto: Neldo Cantanti)
As filhas no escritório reconstituído: ansiedade por rever os pertences (Foto: Neldo Cantanti) Foto em família: “Meu pai voltou para o lugar dele”, diz Maria Lúcia (Foto: Neldo Cantanti)

O Departamento de Raios Cósmicos e Cronologia, do Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW), também deu a seu laboratório o nome de Cesar Lattes, seu criador. A homenagem ocorreu no mesmo dia da doação do acervo pessoal do cientista. Na cerimônia, falaram o chefe do Departamento, professor Anderson Campos Faith; o diretor do IFGW, professor Júlio César Hadler Neto; e o reitor da Unicamp, professor José Tadeu Jorge. O pesquisador e físico Alfredo Marques, um dos idealizadores do Departamento, ainda nos primórdios do Instituto de Física, esteve presente à homenagem. Um dos maiores amigos de Lattes, com quem conviveu por mais de 50 anos, Marques deu o seguinte depoimento ao Jornal da Unicamp.

O professor Alfredo Marques: “Às vezes eu me pergunto: cadê o Lattes para eu conversar, cadê o meu interlocutor?” (Foto: Neldo Cantanti) Jornal da Unicamp – O que o senhor achou da homenagem prestada na manhã de hoje a Cesar Lattes?
Alfredo Marques - Essa homenagem de hoje foi muito emocionante. Primeiro, porque foi muito bem feita. Respeitaram a figura dele em todos os aspectos. Ele sempre foi uma pessoa linear, direta, sem rebusques, despojada. E a festa foi isso. Despojada, mas com conteúdo. Isso era o próprio Lattes. Ele não fazia firula.

JU– Como e quando o senhor o conheceu?
Marques – Em 1952, quando eu ainda era aluno da Faculdade Nacional de Filosofia do Rio de Janeiro. Ele passou por lá com algumas das placas mais recentes do méson pi e as mostrou para os alunos e para o professor Costa Ribeiro, que era o diretor do departamento. Fiquei muito impressionado com a juventude dele. Ele era apenas uns cinco anos mais velho que eu e já tinha aquele nome todo... Aquilo realmente me causou um tremendo impacto. Fiquei comovido também com sua simplicidade.

JU – Por quê? Sua postura era muito diferente da adotada por outros professores?
Marques –
Os professores daquela época, embora fossem acessíveis, guardavam uma certa formalidade, uma certa reserva. Lattes não tinha nada disso. Aquilo ficou na minha cabeça durante um certo tempo. Até, que mais tarde, o presidente Dutra criou, para o Lattes, uma cadeira chamada Física Nuclear. Fui aluno do curso. Depois de 1955/56, quando ele foi para os Estados Unidos com a saúde um tanto abalada [depressão], me pediu para assumir a sua cadeira. Foi este o primeiro contato com ele, aliás um contato de extrema confiança porque ele me conheceu ligeiramente como pessoa, quando passou pela universidade, e depois como aluno. Mas, mesmo assim, me deu um crédito de confiança que, para mim, teve um valor muito grande. Ele gostou muito porque, antes de ir para a ciência, eu trabalhei no IBGE. E eu conhecia um pouco de estatística. E, na física experimental, a estatística é um instrumento de análise indispensável. Lattes percebeu que eu era o único cara, daquela turma toda, que sabia alguma coisa de estatística. E aí ele começou a me procurar mais. Lattes sabia exatamente o que cada um podia dar de melhor.

JU – Dá para dimensionar hoje o tamanho do desafio que foi assumir a sua cadeira?
Marques –
Eu mesmo me cobrava. Levei muito a sério e procurei cumprir o compromisso à risca. Foi assim que nós juntamos as nossas vidas. Depois, trabalhei uns dois anos com placas e fui para a Inglaterra, onde fiquei uns três anos. Quando eu voltei, ele estava saindo do Rio para ir para a USP. Apesar de distantes, mantivemos um certo relacionamento. Mas o relacionamento mais contínuo, mesmo, só vim a ter depois que ele voltou para a USP, ocasião em que ele quis colocar a Colaboração Brasil-Japão em dia. Houve uma divisão de compromissos. Os japoneses davam as emulsões, que eram muito caras, a USP entrava com a revelação, mas faltava quem entrasse com o chumbo. Pressionado na USP, Lattes entrou em contato comigo. Eu chefiava um departamento no CBPF e, por meio de uma pessoa, obtive recursos para a compra do chumbo. Depois, quando assumi o posto de diretor científico, as coisas ficaram mais fáceis e consegui mais dinheiro.

JU – Como foi sua passagem pela Unicamp?
Marques –
Depois que terminou meu período de diretor, que foi de seis anos, o CBPF passou para o CNPq. Com essa mudança, muito radical, perguntei para o Lattes se não eu poderia passar uma temporada na Unicamp. Ele aceitou na hora. Permaneci na Unicamp de 1977 a 1983.

JU – E o que o senhor guarda desse período?
Marques -
A convivência foi a mais agradável possível. Minha mulher tem muita saudade dessa época. Foram alguns dos melhores anos da minha vida. Não que eu não tivesse brigado com o Lattes. Tivemos vários desentendimentos... mas acho que é isso o que torna as pessoas humanas. Não é você concordar com tudo, não é você obedecer cegamente. Havia divergência e muito respeito. Tanto que havia uma ligação muito grande entre nós. Passamos por cima de todas as desavenças. Não é importante que você sempre acerte ou erre, mas sim que, no erro e no acerto, as pessoas se respeitem. Se elas fizerem isso, elas se tornam mais humanas, mais solidárias, amigas. Em suma, foi o que aconteceu conosco.

JU – O senhor é tido como excelente violonista. Como começou o seu envolvimento com a música?
Marques –
Na verdade, antes de vir para a Física, eu cheguei a tocar no rádio lá no Rio de Janeiro. Mas meu pai não queria saber daquilo, dizia que era coisa de cachaceiro. Na verdade, não era. Tinha cachaceiro, mas esses não duravam três meses. Os caras que duravam não bebiam nem fumavam. Mas ele tinha uma certa razão, o meio era um pouco complicado e eu estava no colégio. Larguei o violão e só fui retomar os estudos com o instrumento em Caracas, onde passei dois anos. Lá conheci um chileno que era um excelente violonista. A partir daí comecei a ler partituras etc. Adoro música. É um hobby essencial para mim.

JU – Como eram as tertúlias na casa de lattes?
Marques –
A senhora do Lattes, a dona Martha, gostava muito de cantar. Então eu pegava o violão e ia lá para casa deles. O Lattes era festivo, gostava de receber os amigos. Lattes dizia que ciência sem cultura, sem consciência, passa a ser um mal. O que ele quis dizer é que ciência sem conhecimento, no bom estilo da palavra, sem os mecanismos de avaliação, é desprezível, um perigo. Para ter consciência, é preciso ter cultura. E cultura envolve essas digressões da alma. O espírito é livre. Naturalmente tem aquela área onde você se sente mais à vontade, que nos dá um prazer maior.

JU – Isso o aproximou do Lattes?
Marques –
Não só me aproximou como fez com que minha admiração por ele aumentasse. Lattes era extremamente culto. Para a média de pessoas cultas que conheci no Brasil, ele era disparado um dos mais letrados.

JU – Como era o seu gosto musical?
Marques –
Um pouco ingênuo. Mas ele gostava muito de filosofia, literatura, de religião. Sabia tudo. Seus discursos eram permeados de citações do Velho Testamento. Era incrível. Nunca consegui ver ninguém que chegasse perto do que Lattes fazia. Quanto à música, ele vivia me perguntando sobre alguns compositores, sobretudo italianos. Ele queria entrar um pouco mais no movimento musical mais moderno.

JU – E entrava?
Marques –
Ele era uma pessoa clássica. Queria incursionar no moderno, na vanguarda, mas ele não gostava.

JU – E o senhor?
Marques –
Eu gosto. Só me perdi um pouco quando começou o desfazimento da partitura musical, a perda da tonalidade. Em algumas coisas, eu gosto. Marlos Nobre, por exemplo, é muito bom. Sua música ativa o meu senso estético. É um pouco, enfim, da sensibilidade inata que eu tenho. Não consigo atingir com a cabeça, mas sim com o coração. Isso é verdade com Marlos Nobre, mas não para a maioria dos compositores do gênero, e sobretudo para a música pop, que eu acho um desastre.

JU – E a música popular brasileira?
Marques –
Gosto muito, cresci no meio. Com esse chileno que conheci em Caracas, peguei muito a música clássica, sobretudo os espanhóis. Mas eram aqueles espanhóis “romanticões” que exploram ao máximo a técnica da guitarra. Então eu fui para a base da técnica, não da musicalidade. Confesso que fiquei meio perdido. Música não é apenas técnica. E, depois, não era mesmo o meu meio. Meu negócio era a Física. Fiquei então nos meus sambas, acompanhando as pessoas que cantavam. Mas, dentro disso, conheci caras muito bons, entre os quais o Jacob do Bandolim. Comecei a freqüentar os saraus do Jacob em Jacarepaguá. Foi uma época muito boa.

JU – Saindo das digressões da alma. O que o unia a Cesar Lattes no campo da ciência?
Marques –
Era o espírito analítico que ele tinha. Ele procurava desfolhar o episódio científico e ir até as últimas conseqüências, com uma argúcia experimental enorme. Lattes bolava experimentos, testava a natureza. Ele queria ir até a última resposta, sempre. Foi assim, por exemplo, na Colaboração Brasil-Japão. Eu já era melhor pensando nas coisas em bloco. Ele era melhor pensando nas coisas em detalhe. Mas, no fundo, a gente se completava.

JU – E a lacuna deixada por ele?
Marques –
Eu sinto a falta dele como sinto a falta de um parente. Às vezes eu pergunto: cadê o Lattes para eu conversar? Cadê o meu interlocutor? Eu não tenho mais... Antigamente, não tinha nem conversa; qualquer dúvida, qualquer questionamento, qualquer encruzilhada, conversava com o Lattes. Alguma saída eu tinha. Hoje, entretanto, as coisas mudaram. É como seu tivesse perdido um pai, uma pessoa a quem você recorre quando se sente fraco.

JU – Cesar Lattes costumava dizer que, antes de tudo, ele era um professor. Qual o peso da docência no conjunto de sua obra?
Marques –
No Dom Pedro II, fui aluno do Antenor Nascente, que foi um grande lingüista, do Aurélio Buarque de Hollanda, do José Oiticica. Quando olho para trás, vejo que tive excelentes professores. Este é um dos pontos levantado por Lattes. Ele sabia exatamente a importância que um bom professor podia ter na vida de qualquer um. Um bom professor muda uma vida.

JU – Que avaliação o senhor faz do sistema educacional?
Marques –
Está um nó. O mercado passou a dominar tudo. Essa história de que você prepara a pessoa para conseguir emprego é uma tragédia. Você prepara a pessoa para vida. A profissão chega no momento certo. O mercado acaba invadindo tudo, inclusive a universidade, o que também é um desastre. A universidade, nesse contexto, poderia ser a tábua de salvação. Entretanto, ela também pegou as rédeas do mercado. Hoje em dia, um membro do departamento é julgado pelo número de papers que ele faz. Se uma pessoa quiser pensar para mudar de ramo, ela é atropelada pelo outros.

JU – Onde isso pode desembocar?
Marques –
Não sei, não dá para prever. Antevejo, caso as coisas continuem nesse ritmo, uma espécie de apodrecimento. A ciência vai perder o seu poder criativo, regenerativo. Muitos acadêmicos encontram hoje maneiras de contratar ”bagrinhos” para trabalhar para ele, criando todo um sistema de exploração do trabalho que está ligado à exploração do próprio sistema econômico. Ele reproduz, na escala da ciência, o que o mercado dita para todo mundo. Isso acaba por afugentar os jovens interessados na pesquisa. Muitos acabam optando por seguir carreira em outras áreas.


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