| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 313 - 20 de fevereiro a 5 de março de 2006
Leia nesta edição
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Cerimônia que deu o nome do cientista à Biblioteca Central
é marcada por lágrimas de emoção e não pela perda

Unicamp recompõe
‘universo’ de Lattes

ÁLVARO KASSAB

Auditório lotado: festa desperta sentimentos que eram caros a Lattes (Foto: Neldo Cantanti) As Marias Lúcia, Carolina, Teresa e Cristina: como se o pai estivesse ali (Foto: Neldo Cantanti) A cantora Elisabeth e o quinteto de cordas: as músicas preferidas (Foto: Neldo Cantanti)
Cerimônia no IFGW:  Lattes também tem seu nome em laboratório (Foto: Neldo Cantanti) O neto Tomás, em primeiro plano: o nome Lattes no registro acadêmico (Foto: Neldo Cantanti)

Foi uma homenagem bonita, emocionante, carregada de um forte componente simbólico. Pode-se afirmar, a julgar pelos depoimentos, que houve uma relação de troca em que as duas partes saíram satisfeitas. De um lado, a família do físico Cesar Lattes, que doou à Universidade o acervo pessoal do cientista; do outro, a Unicamp, que não só passa a abrigar documentos, livros e objetos do cientista, como deu à Biblioteca Central (BC) o nome do professor que nela atuou durante 17 anos (1969-1986).

"Papai deve estar gostando muito"

Martha e Cesar Lattes: harmonia e despojamento transferidos para a festa (Foto: Acervo Pessoal) A data, 8 de março, tinha tudo para ser lembrada de outra maneira. Afinal, completava-se exatamente um ano da morte do físico. A lacuna da perda, entretanto, foi preenchida por uma seqüência de episódios ricos em emoção. Houve até quem arriscasse um palpite: a festa despertou sentimentos que seriam caros a Lattes. A atmosfera, não menos. A manhã quase outonal – brisa e céu azul – trazia com ela o onírico, a generosidade e o despojamento.

O clima efusivo já podia ser sentido no café da manhã que antecedeu a sessão que lotou o auditório da (ainda) Biblioteca Central. Reencontros, abraços calorosos, relatos de passagens guardadas na memória. Tudo conspirava a favor da harmonia. A presença dos netos de Lattes enchia o salão de alegria, de um frescor que certamente cairia no gosto do cientista. As filhas do físico – Maria Carolina, Maria Lúcia, Maria Cristina e Maria Teresa – não conseguiam esconder a ansiedade. “Não vejo a hora de reencontrar o escritório”, admitiu Maria Teresa.

A caçula de Lattes estava se referindo à reconstituição do escritório do pai, cujos livros e pertences foram alojados no terceiro andar do prédio. Nos bastidores, funcionários do Arquivo Central do Sistema de Arquivos (Siarq) e do Sistema de Bibliotecas da Unicamp (SBU) corriam para dar os últimos retoques na arrumação. Pelas contas de Teresa Cristina Nonato de Carvalho, diretora de Coleções Especiais e Obras Raras, 1.830 livros da biblioteca de Lattes estavam dispostos nas prateleiras contíguas ao escritório reconstituído. Já para a equipe de Neire do Rossio Martins, diretora do Siarq, o trabalho começara em agosto do ano passado, quando começaram a chegar os primeiros documentos doados pela família. Segundo Neire, a reprodução do gabinete de trabalho do cientista consumiu cerca de um mês.

No auditório – A exibição de um filme produzido pela TV Unicamp marcou a abertura da cerimônia de entrega do acervo. Maria Carolina Lattes, filha mais velha do cientista, a quem coube a assinatura do termo de doação, lembrou dois aspectos da personalidade do pai: o patriotismo e o fato de ele considerar-se, antes de tudo, um professor. “Seus pertences não poderiam estar num local mais adequado, acessível a todos os alunos. Nossa intenção era perpetuar não apenas a memória científica, mas também a afetiva”.

Depois de lembrar que “Cesar Lattes colocou o Brasil no mapa do cenário científico internacional”, o reitor José Tadeu Jorge destacou o papel seminal do cientista na área da Física e na formação de instituições, entre as quais o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), o CNPq e a própria Unicamp, com a qual, na opinião do professor, Lattes teve uma relação cujos vínculos de pioneirismo e afetivos foram muito significativos, extrapolando o campo profissional.

Um carinho expresso no gesto de desprendimento da família ao doar os pertences do cientista. “Nada mais justo, portanto, do que colocar o nome do professor Cesar Lattes no coração da Universidade, que é a biblioteca, mais emblematicamente representada pela Biblioteca Central. Trata-se de um local que representa todas as funções vitais da Universidade. Aqui, o conhecimento é organizado e disseminado”.

O reitor lembrou ainda que, em 1991, nas comemorações dos 25 anos da Unicamp, uma carta escrita por Lattes foi colocada numa urna lacrada e depositada na BC. A urna será aberta no centenário da universidade, em 2066. “A carta deixada por ele está em sua própria casa, já que este prédio passa agora a se chamar Biblioteca Central Cesar Lattes. A reconstituição de seu escritório é um exemplo que deve inspirar os jovens afeitos à pesquisa e à geração do conhecimento”.

Maria Carolina no telão: homenagem muito além do que a família esperava (Foto: Neldo Cantanti)Tadeu Jorge mencionou, no final do seu discurso, o sentido premonitório de uma crônica na qual o jornalista Eustáquio Gomes relatava um sonho que tivera exatamente seis meses antes da morte do físico. Intitulado “Lattes no interior do sonho”, o texto revela passagens vivenciadas pelo cientista, terminando assim. “Sonho. O físico Cesar Lattes acaba de morrer. Estou diante dele numa sala onde há outras pessoas. Lattes parece radiante com sua nova situação: está morto e continua vivo. A rigor, livrou-se do problema da morte sem sofrer nenhuma perda, pelo contrário. Pergunto-lhe se finalmente desvendou o mistério da morte, isto é, da vida pós-morte. Responde que sim, e que na verdade não se morre”.

(Corte rápido. Todas as filhas de Lattes falavam do pai como se ele estivesse ali. Não havia afetação nos depoimentos. Antes, gratidão. Maria Cristina Lattes Vezzani destacou que a homenagem celebrou a vida num lugar que viu nascer, “brotado de um canavial”. “Meu pai está vivo ao ter sua memória perpetuada da melhor maneira possível. A homenagem foi muito delicada, de um carinho muito grande. Foi uma troca de gentileza fantástica”. Para Maria Lúcia Lattes Romeiro, seu pai “voltou para o lugar que era dele”, com a vantagem adicional de estar descansando em seu habitat. “A biblioteca era o seu lugar preferido. A nossa idéia de doar o acervo foi muito boa, e o que a Unicamp fez com nossa idéia foi muito mais do que a gente podia esperar”).

Falaram ainda na cerimônia: o bibliotecário Luiz Atílio Vicentini, coordenador do Sistema de Bibliotecas da Unicamp (SBU); o professor Édison Shibuya, do Instituto de Física Gleb Wathagin (IFGW), que destacou a brasilidade de Lattes, de quem era muito amigo; e Alfedo Marques, físico e pesquisador do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (leia matéria na página 5). Neire Rossio Martins entregou a Maria Carolina CDs com imagens de Lattes. O vice-reitor da Unicamp, professor Fernando Costa, também estava na mesa de abertura.

Um dos pontos mais emocionantes da cerimônia foi a execução de três das músicas preferidas de Lattes. Um quinteto de cordas formado por três alunos e dois professores (três violinos, viola e violoncelo), tocou Primavera, o primeiro movimento de As Quatro Estações (Vivaldi), Carinhoso (Pixinguinha) e Quem sabe (Carlos Gomes). A última, uma modinha, foi interpretada por Elisabeth Almeida, aluna de pós-graduação do Departamento de Música do Instituto de Artes. Sua atuação comoveu a platéia. “Cesar Lattes foi um brasileiro autêntico. ‘Quem sabe’ não só representa uma época, como também a música brasileira. Quem a ouve, sempre tem uma lembrança boa. Foi uma honra poder cantar numa homenagem tão especial” revelou Elisabeth, uma baiana que deixou Salvador para graduar-se na Unicamp.

No 3º andar – Depois do descerramento das placas na parte externa e no interior da Biblioteca Central Cesar Lattes, os convidados dirigiram-se ao terceiro andar, onde estavam os pertences e os livros do cientista. Nas escadarias, a primeira surpresa. Em cada parede a separar os lances de um andar do outro, grandes painéis de fotos de Lattes despertavam a atenção de quem subia e revelavam o zelo com a memória histórica.

A outra memória, a afetiva, tomou o ambiente onde o homenageado passou os últimos 20 anos. Os netos, as filhas e os amigos mais íntimos de Lattes ficaram impressionados com a reconstituição do gabinete de trabalho do cientista. A neta Maria Fernanda Lattes reencontrou um pequeno pedaço de madeira pirografado com dizeres escritos por ela e dedicados ao avô. Outros netos vasculhavam os livros da infância.

Mara Leodoro Silva, que trabalhou 10 anos na casa do físico, viu de novo o jacaré empalhado que ficava ao lado da mesa de trabalho do ex-patrão. Segurando o bicho, puxou pela memória e contou aos presentes que numa ocasião, ao levar uma das netas de Lattes à escola, entrou num ônibus com o animal a tiracolo, para espanto dos passageiros e do motorista. O professor Édison Shibuya, um dos mais fiéis companheiros de Lattes, deu risada ao ver uma reportagem sobre a descoberta das “bolas de fogo” publicada pela revista “O Cruzeiro”, cujo exemplar estava na sessão de documentos. O docente contou mais uma história a integrar o anedotário sobre seu amigo. Ao ser indagado pelo interlocutor sobre onde guardava as bolas de fogo, Lattes não titubeou. “Não posso falar. Elas estão trancadas a sete chaves, num cofre...”.

A ansiedade inicial de Maria Teresa Lattes Borsato havia migrado para outros territórios. “Papai deve estar gostando muito. Ele ficava contente quando a homenagem era sincera, além de ter sempre compartilhado o que a ele pertencia. Tudo aqui ficou muito bonito. Agora já sei para onde vou quando precisar recarregar as baterias”. Maria Teresa tem um sonho. “Quando for avó, vou poder trazer os meus netos aqui. Já pensou? ”. Um sonho que tem tudo para ser real.

De Lattes para Lattes

A Biblioteca Central Cesar Lattes vai ganhar, no futuro, livros com dedicatórias feitas por... Cesar Lattes. A professora Carola Dobrigkeit Chinellato (foto), do Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW), será a autora da doação. A docente, que foi aluna e orientada de Lattes no início da década de 1970, revela que ganhou mais de um livro do seu mestre, que mais tarde tornaria também seu amigo.

Um livro em especial Carola guarda com muito carinho: trata-se de uma obra sobre Óptica que Lattes deu a ela e à colega Teresa de Camargo, as duas únicas mulheres que à época cursavam Física na Unicamp. Na dedicatória, Lattes escreveu: “Para Carola e Teresa dividirem irmanamente”. Segundo a docente, Lattes “decidiu” que a parte de óptica defrativa era dela; já a que versava sobre óptica geométrica seria da colega. “Como o livro não podia ser rasgado, acabou ficando comigo”, brinca. “Ele fazia questão de compartilhar os seus livros”, lembra Carola. Lattes gostava de tudo. Seus campos de interesse abrangiam literatura, história, filosofia, religião, entre outros assuntos. Quando um trecho chamava a sua atenção, ele sublinhava”.

Situação curiosa é a do estudante Tomás Lattes Romeiro, aluno do último ano da Faculdade de Engenharia Mecânica (FEM), e freqüentador da antiga Biblioteca Central, que agora passa a ter o nome do seu avô. “Quero só ver o que o pessoal da biblioteca vai falar quando checar o meu RA (Registro Acadêmico)”, brincou.

 

 


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