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Artigo

O caleidoscópio do
dinheiro e das palavras


JOSÉ CARLOS DE SOUZA BRAGA

“No entanto, não devemos argumentar que uma expansão monetária influencia os preços relativos da mesma maneira que a translação da terra através do espaço afeta as posições relativas dos objetos em sua superfície. O efeito do movimento de um caleidoscópio sobre as coloridas peças de vidro existentes no seu interior é provavelmente uma metáfora mais adequada acerca da influência das mudanças monetárias sobre os níveis de preços.” J. M. Keynes. Collected writings, p. 81.

Ilustração: PhélixSwap, globalization, outsourcing, derivatives, high yield, operações alavancadas, posições compradas ou vendidas, expansão produtiva, também financeirização da riqueza, mais à frente: crash? Títulos securitizados, agências de classificação de riscos de crédito, – olha o rating! – alta elasticidade da riqueza financeira, contabilizações fictícias e daí? Auditores independentes (sic!) avalizam situações que redundam em colapsos empresariais nos Estados Unidos e na Europa; desvalorização de ações, business cycle, recessão? O Fed de olho na violence et confiance de la monaie, já se sabe, memória de 1930, prontamente socorre e socorrerá os investidores em perigo para o sistema não desabar, pois se avalia que há risco sistêmico, o que requer a ação urgente do fundo público de empréstimo de última instância.

E os países emergentes? Às vésperas, ratings atraentes, passado um tempo, já devem muito, não têm reservas internacionais suficientes, moedasJosé Carlos de Souza Braga, professor do Instituto de Economia da Unicamp (IE), é diretor executivo do Centro de Estudos de  (Foto: Neldo Cantanti) desacreditadas, é hora da fuga, retorno ao dólar flexível. Palavras e dinheiro sintonizam-se, embaralham-se, afirmam e negam. Aquelas ora dizem algo, depois o contrário, o signo de riqueza flui voraz numa direção para, repentinamente, redirecionar-se a outras veredas. Incerteza, jogo, aposta, especulação aberta. Autoridades internas e internacionais visitam-se carregando suas pastas – briefcases – repletas de contas sobre o ajuste necessário à suposta nação emergente. Nada de novo: socialização das perdas, privatização de ganhos para os que foram mais bem informados, mais espertos.

Cortina caída, reorganizada a cena, tudo recomeça. Tudo, em termos, o presente não é só repetição do passado. O futuro é desconhecido, mas uma coisa é certa: os valores, os atores e as coisas não têm sossego, nada descansa, não há águas plácidas.

O leitor não afeito a essa literatura, porém acidentalmente defrontado com ela, deverá, em estado de choque, perguntar-se que linguagem é essa e, curioso que seja, logo constituirá hipóteses sobre essa estranha metáfora in love com o dinheiro. Concluirá que se trata de ironia analítica sobre um movimento e lembrar-se-á que – ora! –, a mídia “treinada” em macaquear discurso dos poderosos, escreve e fala fragmentos disso a todo dia, mas apresentando quase sempre elucubrações sobre um caminho virtuoso.

O autor desse editorial e os autores dos artigos se propõem a comunicar uma visão de economia política internacional sobre um objeto real – o capitalismo global das três últimas décadas. Se parece com o movimento do caleidoscópio, a culpa não é de G. L. Shackle, autor de Epistemics and Economics e de Keynesian Kaleidics e muito menos deste que aqui se apóia naquele magnífico intérprete de Keynes. São palavras da globalização, ou não são? Pois, assim sendo, há muito que refletir, indo mas allá do imediato, tentar uma análise estratégica, que – Oxalá! – nos oriente e agregue tanto à defesa quanto ao avanço da economia e da sociedade brasileira no cenário mundial. O Centro de Estudos em Relações Econômicas Internacionais (CERI) lança, como se vê, o primeiro número dessa publicação trimestral que pretende contribuir para a compreensão sobre o movimento e as veredas a que somos conduzidos pelos signos monetários, pelos capitais internacionais sem controle, pela inserção comercial limitada a commodities primárias e manufaturas de baixa intensidade tecnológica, por negociações quase sempre adversas frente a países desenvolvidos e “protecionistas”, com exceção, entretanto, recente e digna de registro: estamos a ganhar na Organização Mundial do Comércio (OMC) o contencioso com os Estados Unidos sobre algodão.

É oportuno mencionar que a realização da Unctad XI – United Nation’s Conference on Trade and Development, 13 a 18 de junho, São Paulo, Brasil, lançou nova rodada de negociações do Sistema Global de Preferências Comerciais (SGPC), prevendo a redução de barreiras tarifárias entre os 44 países em desenvolvimento signatários.

Mas, voltemos, é preciso seguir atento ao giro do caleidoscópio que configura sucessivas cenas. O subdesenvolvimento já era, dizem alguns. Economias em desenvolvimento? Países, ou melhor, mercados emergentes? Repressão financeira nos trópicos, poupança externa, abertura financeira, cupom dólar, desnacionalização bancária, concorrência não reduz taxa de juros, nem tarifas, lucros Economia Política Internacional: Análise Estratégica bancários extraordinários são festejados. Produção industrial muito pouca. Emprego é uma batalha. Superávit fiscal primário, superávit engrossa, o Fundo Monetário Internacional (FMI) apóia. Área de Livre-comércio das Américas (Alca) na cola de listas “negativas” ou “positivas” para “liberar geral” – comércio, investimentos, finanças, compras governamentais etc. Tensão na OMC. Subsídios europeus e americanos sobrevivem. Banco Central brasileiro acredita que garante o real com alguns poucos dólares por trás, juros atraentes: – viva a meta de inflação! Copom – Comitê de Política Monetária – exacerba rentismo nacional, assalariados pagam mais impostos ao Tesouro – a Secretaria do Tesouro Nacional não vacila, nem dá ouvidos, diz que são ruídos, sabe o que quer: o fundamento fiscal financiará o longo prazo, mas deixa de esclarecer, desculpem o clichê, que até lá todos estaremos mortos. Cadê o investimento público na infra-estrutura? Sem saneamento e saúde não há espetáculo de crescimento que agrade.

O manejo da semântica pelos economistas insiste em que há países em desenvolvimento e emergentes. Quais? A China! Sejamos chineses! – Não caberíamos no planeta! Sejamos todos os países em desenvolvimento exportadores líquidos, como os asiáticos! É o que recomendam alguns analistas. Ora, isso seria quase impossível aritmeticamente.Estados Unidos e muitos outros a consumir uma avalanche de nossos produtos? O Brasil terá que exportar e muito, mas terá que ser a partir de seu dinamismo interno. A exportação não pode ser um subterfúgio à estagnação econômica nacional.

E o imaginário equilíbrio geral dinâmico? Analistas poliglotas e apologistas tentam nos acalmar. A convergência é lenta, mas, concluídas as tarefas macroeconômicas, realizadas as reformas “microeconômicas”, fluindo os capitais externos para financiar a expansão, eliminando o gasto social ineficiente, imposto o assistencialismo, os de baixo sossegam e reconhecerão o seu lugar, atingido o máximo do mínimo. Já que no próprio território está fraco, sem renda, sem emprego, sem crédito a juros bom, vendam para exterior, com paciência e bom comportamento mercantil tudo se resolverá. É inútil essa discussão de controles, na entrada e na saída, de capitais forâneos. Logo agora, ir contra a “árdua” liberdade conquistada que ainda não teve tempo de mostrar seus frutos? Démodé, détraqué!

Mas a Argentina, no final do século passado, tentou segurar-se até no “padrão-ouro-dólar”, garantido na própria Constituição; acabou encarando tragédia econômica como não se via desde 1929/1930. Teve de rasgar a lei maior, entrou em default; tenta refazer um caminho. O Brasil deu a volta ao mundo, desde os 1990 até ontem, mas não conseguiu ver seu futuro na linha do tempo.

O que mudou? Nos afastamos pouco a pouco, durante os últimos vinte anos, da senda do desenvolvimento. A economia segue tendencialmente em estagnação relativa. Reinventaram nossa dependência externa para pior. Precisamos refazer nosso engate no mundo. Os presidentes liberais e seus economistas cosmopolitas colocaram o Brasil desfavoravelmente na globalização. Enquanto o caleidoscópio gira sob mãos particularistas, o destino dos países, das economias e das sociedades embrenha-se por um caminho de incertezas. Sem uma economia nacional forte, exportações a partir de um mercado interno dinâmico, qualidade de vida, Estado ativo e soberano não há como se beneficiar da globalização, nem como cooperar com os outros povos para o desenvolvimento de nossa humanidade. Entretanto, há o dinheiro e as palavras que impulsionam, sob incerteza e furor competitivo, o movimento do caleidoscópio que expressa o mundo capitalista em curso.

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Este artigo é o editorial do primeiro número do boletim trimestral “Economia Política Internacional – Análise estratégica”, publicado pelo Centro de Estudos de Relações Internacionais (CERI).

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