Dos paradigmas da ciência ao conhecimento em construção
ÁLVARO KASSAB
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O que é ciência multidisciplinar? Em que medida ela rejeita e/ou amplia a ciência tradicional? O papel da tecnologia de informação na multidisciplinaridade é reducionista ou construcionista? Ao colocar dados no computador, o cientista está reduzindo um conceito complexo ou está em busca de um novo paradigma? O pesquisador Gilberto Câmara, do INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), fica com a última opção. Sua escolha vem justamente do fato de ter, ao longo dos últimos anos, refletido sobre estas indagações. Câmara se debruça hoje sobre uma proposta de estatuto teórico para a ciência multidisciplinar. Parte desse ideário, baseado na experiência do autor em projetos de pesquisa multidisciplinar em temas como as causas do desmatamento na Amazônia e o mapeamento da exclusão social nas grandes cidades brasileiras, será exposta pelo próprio Câmara na terceira edição do seminário “Diversidade na Ciência”, que ocorre na Unicamp no próximo dia 11 (veja matéria na próxima página).
“A exclusão social representada no computador não é uma redução positivista do conceito qualitativo. O conceito do cientista social é qualitativo e aquele representado no computador é quantitativo, matemático, bem-definido, e complementa o anterior”, diz Câmara. “Costumamos dizer que a ciência opera de duas formas básicas: por descoberta e por invenção. Newton descobriu a lei da gravitação universal e Edison inventou a luz elétrica. Acredito que existe uma terceira forma de realizar ciência: a construção de representações do mundo. Não se trata de descobrir uma nova espécie, nem de inventar um novo engenho, mas de construir artefatos formais de expressão do pensamento. A partir destas novas abstrações, conseguiremos entender o mundo um pouco melhor”. Na entrevista que segue, o pesquisador do Inpe, detalha sua visão de ciência multidisciplinar.
Novo paradigma
Estamos começando a aceitar cada vez mais que a nossa compreensão do mundo passa por produzir representações informacionais e computacionais que nos ajudem a entendê-lo. Uma das nossas inspirações é o genoma humano, onde construímos uma representação das formas e das partes de nossos genes e que, a partir dela, começamos a entender o funcionamento do nosso organismo e de sua parte bioquímica. Coisa semelhante tem acontecido recentemente no ramo da neurociência, e desde sempre nas ciências naturais.
No campo das ciências sociais e humanas, a compreensão do papel da tecnologia de informação tem sido muito mais lenta. O grande desafio histórico do estudos nas ciências humanas é estabelecer maneiras de comparação entre diferentes teorias. Muitos cientistas sociais rejeitam toda possibilidade de avaliação entre diferentes concepções, mas se não admitirmos a possibilidade de refutar uma teoria, como nosso conhecimento do mundo pode avançar? Para sair deste impasse, temos experimentado com razoável dose de sucesso a criação de representações computacionais de conceitos de ciências humanas, pois estas representações permitem criar um espaço de debate objetivo.
Vou dar um exemplo no qual trabalho: a questão da exclusão social. Se olharmos a literatura sociológica de exclusão social, ela tem uma enorme quantidade de definições. Excluídos podem ser aqueles que não têm acesso aos direitos da cidadania, ou aqueles que vivem em regiões periféricas, fora do alcance da rede de proteção social. Em algumas definições, pode-se ter emprego e ainda assim ser excluído socialmente. A literatura a respeito é enorme. No entanto, essa mesma vastidão cria um problema sério, que é a falta de uma forma de avaliar objetivamente esse conceito. Para enfrentar este dilema, a equipe da PUC-SP liderada pela professora Aldaíza Sposati resolveu construir uma representação da exclusão social em São Paulo a partir de uma análise quantitativa de dados socio-territoriais coletados pela Secretaria de Saúde, IBGE, Secretaria de Segurança Pública e outras instituições públicas. Este trabalho foi iniciado em 1996 e a partir de 2000, contou com o apoio do INPE. Os resultados estão materializados nos Mapas de Exclusão/Inclusão Social de São Paulo para os dados dos censos de 1991 e 2000. Assim, criamos um espaço objetivo de crítica do conceito de ‘exclusão social’. É muito mais fácil criticar um conceito objetivo do que uma definição abstrata e genérica. Uma definição genérica nunca pode ser efetivamente refutável e acaba se transformando quase numa questão de fé entre os que a aceitam e os que não a aceitam.
Outra realidade
A realidade nunca é representada fidedignamente no computador. Pensar assim seria cair na ‘falácia da reificação’. As representações computacionais não têm compromisso com a fidelidade, mas servem para ampliar em muito nossa compreensão. Na medida em que construimos representações computacionais de conceitos como vulnerabilidade, exclusão, pobreza, segregação, que estão na categorização de partes do corpo social, eles passam a ser objetivamente criticáveis. Podemos, a partir daí, olhar e criticar nossa definição de exclusão, através de testes estatísticos, vizualização e comparação com dados de campo. Isto dá a um pesquisador que trabalha com conceitos sociais e com políticas públicas uma ferramenta poderosa para entender a realidade.
Fosso epistemológico
Seria pretensioso falar em uma nova ciência. Trata-se de transpor o fosso epistemológico que se criou entre as ciências naturais e as humanas. O fosso existe porque os problemas sociais são mais complexos e têm muito mais dimensões para ser apreendidas do que os problemas das ciências naturais. O comportamento de agentes sociais é difícil de modelar e de medir. Daí vem a tentação de afirmar que as relações sociais e as nossas ações não são capturáveis por abstrações matemáticas. Resignar-se a esta concepção seria admitir que o fosso epistemológico é intransponível, mas isto é equivalente a rejeitar nossa capacidade de avançar o conhecimento.
Basta olhar o que está acontecendo na neurociência. A divisão entre corpo e mente, que foi durante séculos um problema filosófico, hoje é considerado um problema neurológico. Hoje, os neurocientistas estão trabalhando para descobrir quais são os mecanismos que dão origem à consciência. Veja-se o trabalho de Antonio Damásio, descrito nesse livro maravilhoso que é “Em busca de Spinoza”, no qual mostra que o processo de desencadeamento de emoções e de sentimentos tem uma base neurológica.
Razão comunicativa
Nas ciências humanas, muitas dimensões ainda hoje são difíceis de ser apreendidas, mas não impossíveis. Questões como exclusão social, pobreza, vulnerabilidade, o próprio comportamento de agentes econômicos e sociais, só serão devidamente compreendidas quando pudermos construir representações computacionais inteligentes para estes problemas. Ao admitir a possibilidade de quantificar determinadas dimensões desses fenômenos, estamos transpondo o fosso epistemológico e diminuindo a distância entre as ciências humanas e as ciências naturais. Estamos criando algo que as ciências naturais sempre tiveram e as ciências humanas não têm ainda de uma forma bem-resolvida, que é um espaço de debate. Como argumentar que a exclusão e vulnerabilidade social existem, baseado apenas em argumentos qualitativos? Se nunca criarmos um espaço de debate e um mecanismo de verificação, estaremos nos recusando a avançar na nossa compreensão do mundo.
Este espaço de debate é imprescindível quando trabalhamos num ambiente multidisciplinar. O objetivo maior da ciência multidisciplinar é tratar velhos problemas com novas abordagens. Para operar num ambiente multidisciplinar, é fundamental dispor de maneiras nas quais especialistas em diferentes disciplinas possam dialogar. Trata-se justamente do proceso que Habermas descreve como “razão comunicativa”. Como fazer com que especialistas em saúde, sociólogos, demógrafos e estatísticos possam estudar a exclusão social sem ter uma maneira objetiva para criticar, medir e avaliar este conceito?