| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 338 - 25 de setembro a 1 de outubro de 2006
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Aos 60 anos, Marília de Andrade volta a
se exibir nos palcos e
prepara livro autobiográfico

O corpo como
instrumento da alma

LUIZ SUGIMOTO

Maria de Andrade no Observatório a Olho Nu da Uncamp em 1995, e hoje, votando a dançar Isadora com sucesso, no Rio (Fotos: Antoninho Perri/Arquivo pessoal)Aos 3 anos de idade, Marília de Andrade já pedia ao pai que tocasse o disco com a 6ª Sinfonia de Beethoven. Toda criança pequena gosta de dançar, geralmente fazendo graça para vovôs e titios, mas Marília gostava de dançar Beethoven. Oswald de Andrade teve bailarinas como amantes – e entre as bailarinas, Isadora Duncan – e provavelmente se deixou influenciar pela lembrança das divas quando levou a filha pela mão até a academia de Camila Brandão, onde Marília daria início a uma formação clássica bastante sólida. “Depois que meu pai morreu ficamos em situação econômica difícil e implorei para que minha mãe [Maria Antonieta d’Alkmin], com muito esforço, continuasse pagando a escola de dança”, conta.

Criadora do curso de Dança tem forte influência de Isadora Duncan

Em pé, dando aula de improvisação corporal para alunos do vestibular de músicaRecentemente, Marília, que criou o Departamento de Dança e se aposentou na Unicamp, experimentou a vitoriosa sensação de se exibir nos palcos aos 60 anos, “Dançando Isadora”, com sucesso de público e crítica no Rio de Janeiro. Se a volta – gloriosa, por que não? – nem de longe significa novamente ganhar a vida debaixo dos holofotes, já rendeu um convite para apresentar o espetáculo em Nova York, no próximo ano. Nesse meio tempo, a professora vai produzindo coreografias, dando aulas na sua academia em Campinas (Estúdio XXI) e preparando um livro autobiográfico que terá forte influência da leitura que faz de Isadora Duncan.

Marília de Andrade antecipa que o livro será regido por uma máxima de Isadora: “O corpo é o instrumento da minha alma”. “Para isso, o corpo precisa ter uma flexibilidade, uma amplitude de movimentos que permita transmitir a palavra no gesto. O corpo é o canal de algo maior e mais profundo, venha do nosso interior, do universo, de outro mundo ou de Deus. Apesar de altamente técnica, a dança de Isadora é criativa e natural, em oposição à dança mecanicista ou puramente acrobática. Parada, simplesmente, ela fazia o público chorar”, observa a professora.

No início do século 20, lembra Marília, Isadora Duncan aboliu a sapatilha, espartilhos e roupas apertadas, adotando as túnicas soltas inspiradas nos modelos gregos, que permitiam livre movimentação de todo o corpo. Seu grande sonho foi deixar uma escola revolucionária, retomando os ideais da cultura clássica grega com o objetivo de revitalizar a arte da dança e projetá-la no futuro, integrada às outras artes e como atividade de relevância cultural. Encantadora nos palcos, a dançarina norte-americana levou uma vida pessoal polêmica, que incluiu um romance atribulado e violento com um jovem poeta na União Soviética, quando para lá se mudou a fim de fundar uma escola de dança, no início dos anos 20. Mas foi o discurso pró-revolução soviética (inclusive nas peças) que a deixaram mal com os Estados Unidos.

O romance entre Isadora e Oswald de Andrade se deu durante a efervescência da arte moderna, quando a musa da dança esteve no Brasil. Marília fala das amantes do pai com naturalidade, pois quando veio ao mundo encontrou um homem apaziguado e caseiro, eternamente apaixonado por Maria Antonieta. Em relação a Isadora, não persistiu sequer uma maior curiosidade, visto que só foi “tropeçar” na musa da dança depois dos 30 anos – é verdade que desde então vem pesquisando sobre sua vida. E, também, que deu grande contribuição para transmitir o legado de Isadora, criando na Unicamp um curso de Dança cuja proposta inovadora irradiaria por todo o país.

Em pé, dando aula de improvisação corporal para alunos do vestibular de músicaO conforto e a selva – “Dançava desde os 4 anos e participei de grupos profissionais, mas na época a carreira de bailarina era suspeita, o mercado se limitava ao de coristas. Existiam apenas os teatros municipais do Rio e de São Paulo, e era difícil sobreviver como profissional da dança mesmo tendo boa formação clássica. Como a única escola superior estava na Universidade Federal da Bahia, tive de escolher outra carreira”, relembra Marília de Andrade. Formada psicóloga, ela obteve o PhD de Psicologia Social em Colúmbia (EUA) e iniciou uma trajetória promissora como pesquisadora da Fundação Carlos Chagas, na área de feminismo e formação de papéis sexuais. “Achei que tinha mudado minha vida”.

Houve, no entanto, um entremeio marcante: uma apresentação pelo Ballet Stagium em pleno Xingu, dançando para os índios a música de Egberto Gismonti. “Passamos dez dias na sede da Funai, dentro da floresta, ensaiando e convivendo com várias tribos que acamparam em volta. Eles dançaram para nós e nós para eles, que acharam estranhíssimo o balé clássico. Tenho aquela experiência como um divisor na minha carreira, seguida de outra criação muito forte do Stagium, que foi Quarup”, assinala a dançarina. Aos 32 anos, caiu numa crise existencial que a fez abrir mão do status de pesquisadora sênior, com direito a telefone na mesa, secretária e viagens a congressos internacionais. “Sem a dança, eu morro”, decidiu.

Ao centro do grupo de "Pedro e o Lobo" em 1983: espetáculo no Teatro MunicipalMarília de Andrade mudou-se para Campinas por circunstâncias pessoais e passou a dar aulas de metodologia de pesquisa na PUC, mas também montou um grupo de dança que a ocupava à noite. Ao saber que na Unicamp existia um departamento de música com especialização em regência, enviou o currículo e um projeto de pesquisa idealizado como luva que coubesse na própria mão: expressão corporal para maestros. “O objetivo não era melhorar a performance dos maestros, mas conscientizá-los de como seu envolvimento com a regência é visceral. A energia corporal para harmonizar a orquestra leva um maestro a perder vários quilos num espetáculo”, justifica. Os próprios músicos, segundo a professora, viriam a agradecê-la porque corrigiram a postura e obtiveram noção do próprio corpo. “É melhor tocar de pernas cruzadas ou pousadas? O músico está muito ligado à pauta. A simples percepção de como pega o violino já melhora a qualidade”, acrescenta.

Marília já tinha conseguido ingressar na Unicamp por outra via, a Faculdade de Educação, quando o maestro Benito Juarez, ao assumir o departamento, encontrou o projeto de pesquisa na gaveta. “Tinha que ser. Quando vi os estudantes fazendo o vestibular de música em cima da grama, em frente ao galpão onde hoje funciona o Banespa, soube que era o Instituto de Artes o que eu queria”, recorda. Benito, por sua vez, não atentou apenas para o currículo e o projeto envolvendo maestros, mas também para o PhD da professora. “O departamento ficava sem representação na Comissão de Graduação porque não tinha um doutor. Fui chamada para dar aulas e também para ocupar esses lugares institucionais”, admite.

Grupo peculiar – Imediatamente, Marília criou um grupo de dança, embora um tanto peculiar, convocando interessados por meio de cartazes espalhados nas unidades. Apareceram cerca de quinze pessoas, apenas uma ou duas com alguma formação, as demais nunca haviam dançado. “É com esses que eu vou, pensei. Propus ao Benito montarmos ‘Pedro e o Lobo’, a aventura musical de Prokofiev, e o espetáculo acabou no Teatro Municipal de São Paulo. Depois montamos A História do Soldado, de Stravinsky, que assim como outras peças posteriores lotavam os teatros da cidade. É importante lembrar aquela preocupação em levar a produção artística até a população, pois os alunos de dança, hoje, têm uma produção rica mas que fica na sala”, critica.

Fato é que o reitor Aristodemo Pinotti viu “Pedro e o Lobo” no teatro. Passando por Nova York, onde também se encontrava Marília de Andrade fazendo uma especialização, pediu a ela que implantasse o curso de dança na Unicamp. Era uma manhã de sábado em maio de 1984 e o reitor queria realizar o vestibular no final do ano. Sozinha e sem referência de outra escola superior de dança que não fosse a da Bahia, a professora reuniu amigos que trabalharam de graça para montar um projeto com todas as disciplinas, do 1º ao 4º ano. “Um currículo de sonho, que não se mostrou viável com o tempo”, confessa.

Um cartaz de época do Departamento de Artes Corporais, divulgando o vestibular para o curso na Unicamp, relaciona disciplinas como consciência corporal, cinesiologia, danças regionais brasileiras, anatomia e fisiologia aplicada à dança, capoeira, mímica, artes corporais do oriente, voz e canto, elementos de música (rítmica), e expressão e movimento. “Para introduzir a capoeira, percorri Campinas atrás de um mestre, quando nem havia tantos praticantes. Encontrei mestre Antonio, ‘formado na Bahia’, mas que não trouxe qualquer diploma para apresentar ao Conselho Universitário. De repente, ele se lembrou que possuía um, e trouxe um diploma de detetive particular obtido por correspondência”, diverte-se Marília, assegurando que mestre Antonio, contratado como “técnico especializado”, foi um bom professor até morrer prematuramente.

Aquele mesmo cartaz do vestibular que repercutiu nacionalmente através dos principais veículos da mídia, traz uma definição que parece ditada por Isadora Duncan: “Este curso foi elaborado entendendo que o corpo é uma unidade indivisível e que esta unidade é fonte e instrumento de expressão”. Abordada com freqüência por adolescentes apaixonados por dança, mas inseguros em adotá-la como profissão, Marília de Andrade ressalta sempre a dificuldade do mercado e reluta em aconselhá-los a seguir seus passos. Soube, dia desses, que uma moça com quem conversou bate o pé e vai prestar o vestibular de dança na Unicamp. “Uma pesquisa na universidade mostrou que a dança é o curso que apresenta o menor índice de desistência. Se o aluno faz é porque ama: ‘sem a dança, eu morro’”.

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