Leia nesta edição
Capa
Formação continuada
Queijo de melhor qualidade
Alexandre Eulalio
Artigo: Clarice à flor da pele
De olhos (bem) abertos
Nas bancas
Atraso colonial
Painel da Semana
Oportunidades
Teses
Livro da semana
Unicamp na Mídia
Portal Unicamp
Prevenção de câncer
Primeiro movimento
 


4

ARTIGO

Clarice à flor da pele


JOEL ROSA DE ALMEIDA


Muitos são os estudos recentes sobre a obra de Clarice Lispector, porém um dos mais esperados é o de Vilma Arêas, intitulado Clarice Lispector com a ponta dos dedos, da Cia das Letras, lançado na Flip este ano. Como até agora só houve aquele estardalhaço do lançamento em Parati, optamos por resenhá-lo. Numa fala ligeira porém densa, Arêas entende a obra de Clarice numa perspectiva em construção, que delineia o sentido da sua chegada, do seu porto, ainda que inseguro, porque pouco ou quase nada em Clarice era calculado e, assim, trata-se de uma autora cujo percurso literário pensaríamos inacabado, mas que no olhar perspicaz de Arêas torna-se, paradoxalmente, uma caminhada intimista à flor da pele.

Na fase final, Clarice, mesmo desprestigiada pela crítica, pôde ousar: Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, romance de 1969, ainda que desgostosa do seu acabamento e “penosa composição”, como aponta Arêas, é um exercício de colagem de crônicas para construir um romance de “trama decorativa”. A via crucis do corpo, livro de contos e crônicas de 1974, antes lido na recepção como “lixo”, ora é visto como percurso de radicalidade. Os críticos da época irritavam-se com o livro de encomenda, de um erotismo lúgubre, ou silenciavam. Arêas, já na publicação deste, pressentia o equívoco da crítica apressada e reticente e a partir daí procura entender as qualidades estético-literárias na obra da autora, não deixando de compreender que, para Clarice lá chegar, tenha alcançado o prestígio literário com A paixão segundo G.H. no romance e Laços de família nos contos.

Essa visão dialética da obra de Clarice poucos alcançaram e podemos comparar os ensaios de Arêas aos do leitor mais sensível de Clarice: Benedito Nunes, em O drama da linguagem. Tanto Nunes quanto Arêas optaram pelo aprimoramento crítico através de um olhar preciso e iluminador. De Nunes já há muito sabemos, mas quais os pontos elucidativos de Arêas? Diversos e aqui apontamos alguns. Um deles é perceber essas últimas obras, (mal)vistas como “lixo”, ora entendidas como livros-sucata, pulp fiction, como espaços de radicalidade, experimentações, percebendo a obra de Clarice como um todo, “forma e fundo”, e não só os esboços, mas também que os limites destes não eram tampouco respeitados. Arêas sabe que Clarice é uma autora do intervalo, dos deslimites, da tensão entre o perene e o transitório. Assim, a elaboração fragmentária da obra clariciana resulta, por fim, numa espécie ópera bufa. De modo perspicaz, Arêas recorre a esse aparato teórico do drama, interligando essa Clarice à “comédia popular”, em seus tons “farsescos”, “clownescos” e sobretudo “circenses”. Não seria somente uma autora intimista, porém mais sensivelmente táctil, “com a ponta dos dedos”.

A via crucis do corpo é um árduo caminho que nos leva ao romance-testamento A hora da estrela, quando ocorre a “virada de cabeça para baixo” (p. 69), tendo como elementos estético-literários a comicidade, a paródia, o grotesco, a fragmentação, dentre outros. Ao compará-lo a Vidas Secas, de Graciliano Ramos, aponta-se a convergência na caracterização das personagens, cuja temática da humildade do “nordestino” errante perfaz um risco. São errâncias díspares, estilos incomuns, linguagens distintivas, porém a preocupação de Arêas é criteriosa, a de verificar como ambos, Clarice e Graciliano, trabalharam a “convenção literária” de temática difícil. Acredito que Arêas aqui entenda por “convenção literária” a perspectiva histórica do romance regional que já se cristalizava na modernidade, pois a linguagem literária dos dois autores é radical e experimental, longe de um modelo mais acomodado. Enquanto há falta de um realismo exclusivo em Vidas Secas, em A hora da estrela, extravasa seu “universo circense”, retomando-se então o drama. E é tão dramática a construção de Macabéa que Arêas chega a compará-la às mais ingênuas e tocantes personagens fellinianas: Gelsomina Di Constanzo, de La Strada (A estrada da vida, 1954), e Cabiria, de Le Notti di Cabiria (Noites de Cabíria, 1957).

Os dois últimos ensaios, “Children’s Corner” e “Mistério desentranhado”, tratam das obras infantis de Clarice e de um estudo comparado de que lança mão do texto “At the Bay”, de Katherine Mansfield, respectivamente. Ambos concluem a jornada crítica de Arêas de sutilezas e acuidades. Não se trata apenas de um olhar clariceano, mas de uma investida na instabilidade da obra de Clarice, no “nomadismo”, apalpando uma literatura que não se deixa tocar tão fácil e que, numa incessante procura, encontra-se “fora de lugar”. No ensaio conclusivo, mais uma vez Arêas recorre à perspectiva da teatralidade na composição das personagens, das “máscaras metafóricas”, do incessante desejo. Essa trajetória da (re)elaboração da obra Clarice é entendida do ponto de vista da circularidade, do visceral, dos ecos e silêncios.

Abre-se aqui um parêntese para notar o trabalho pioneiro de Arêas, no final dos anos 80, juntamente com Berta Waldman, sua partner na época e também eminente estudiosa dessa autora, quando ambas organizaram, na Unicamp, uma das primeiras revistas toda voltada à obra de Clarice. Estudiosos como Earl E. Fitz, Hélène Cixous e Claire Varin, que muito divulgaram a obra de Clarice nos Estados Unidos e Europa, já eram os convidados de ambas. Outros ensaios esclarecedores também estão presentes nessa edição nº9 da Remate de Males, o da gênese de Água viva, por Alexandre E. Severino, constantemente (re)citado em trabalhos acadêmicos, bem como o de Benedito Nunes, e tantos outros. Se ainda colhemos revistas especializadas na obra de Clarice, esta semente foi germinada naqueles idos.

Para concluir, a bela capa da Cia das Letras reproduz o quadro “Pássaro da liberdade”, da pintora Clarice Lispector, óleo sobre madeira de 5/6/1975, que se encontra na Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, tão singelo e livre, como sua literatura e, por que não dizer, alguns dos seus críticos1. Não deixando de parodiar o estilo circular de Clarice, o pioneirismo de Arêas, que contribuiu para os estudos clariceanos no seu nascedouro, é exemplar. Hoje, ao olharmos as pegadas de Arêas, percebemos um caminho crítico de sagacidade, ou melhor, percebemos a delicadeza dos seus passos, a corporeidade dos seus pés, numa caminhada crítica perseverante, não só percebemos, mas tocamos uma Clarice com a ponta dos dedos, dos pés e das mãos.


--------------------
Joel Rosa de Ameida é mestre em Letras pela Usp, professor universitário e publicou recentemente A experimentação do grotesco em Clarice Lispector pela Edusp e Ed. Nankin.

---------------------
1Sobre a ficcionista Vilma Arêas, temos: A terceira perna. São Paulo, Ed. Brasiliense, 1994, 2ª ed. Aos trancos e relâmpagos. São Paulo, Ed. Scipione, 1997, 5ª ed.; e Trouxa frouxa. São Paulo, Cia das Letras, 2000.

SALA DE IMPRENSA - © 1994-2005 Universidade Estadual de Campinas / Assessoria de Imprensa
E-mail: imprensa@unicamp.br - Cidade Universitária "Zeferino Vaz" Barão Geraldo - Campinas - SP
Foto: Antoninho PerriFoto: Neldo CantantiFoto: Antoninho PerriFoto: Gustavo Miranda/Agência O GloboFoto: Antoninho Perri