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Pesquisa revela como normas sanitárias provocaram mudanças nos rituais fúnebres no século XIX

A cerimônia de adeus
do 'atraso colonial'

JEVERSON BARBIERI

Vanessa Sial, autora da dissertação: moralização dos costumes fúnebres (Foto: Divulgação)A reforma cemiteral ocorrida no século XIX no Recife, desencadeada a partir de problemas na gestão urbana, principalmente com relação à saúde pública, foi tema da dissertação de mestrado de Vanessa Sial, junto ao programa de pós-graduação em História, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Orientada pelo professor Sidney Chalhoub, Vanessa explica que o interesse pelo tema surgiu durante a sua graduação. “Encontrei, no arquivo público João Emerenciano, muitos ofícios emitidos desde o final dos anos 1830 pela Câmara Municipal do Recife à presidência da província de Pernambuco, que discutiam a necessidade de pôr fim aos sepultamentos de pessoas dentro das igrejas, e a moralização dos costumes fúnebres vigentes. Isso me chamou muito a atenção”, revela a pesquisadora.

A salvação da alma ficava na igreja

Segundo Vanessa, essas discussões ganharam maior espaço no cenário político na medida em que médicos higienistas começaram, pouco a pouco, a fazer parte do poder público e a propor posturas municipais e leis provinciais que diziam respeito às normas sanitárias. Isto porque houve uma luta para levar o país à “modernidade” e ao “progresso”, por parte desse setor que acreditava que só a “higiene” seria capaz de livrar a nação das doenças e do “atraso colonial”. Pernambuco, assim como outras cidades brasileiras, foi palco de discussões para a implementação de diversas reformas urbanas, a fim de que pudessem fazer “boas vistas” às cidades européias.

Vista da Capela do Bom Jesus da Redenção, no Cemitério Público do Recife:  primeira necrópole projetada com capela no país (Foto: Divulgação)Os higienistas, de acordo com Vanessa, tiveram que lutar por sua hegemonia nas artes de curar em meio a uma diversidade de outras formas de medicina praticadas havia muito tempo no Brasil. É nesse contexto que os temas relacionados a melhoramentos urbanos, como o calçamento de ruas, criação de novos sistemas de abastecimento de água e a organização e fiscalização do comércio de alimentos, foram propostas como medidas preventivas contra o surgimento de doenças, em especial, as epidêmicas. “O fim do sepultamento dentro das igrejas fazia parte desse conjunto de intervenções”, revela.

Detalhe do gradil de ferro do cemitério erguido no bairro recifense de Santo Amaro: fiéis queriam estar próximos do sagrado (Foto: Divulgação)Para Vanessa, o costume da inumação dentro das igrejas remontava aos primeiros séculos do Cristianismo. Isso significava que as pessoas queriam estar mais próximas do local sagrado e, conseqüentemente, de Deus. Na concepção católica, esse local é a igreja, e desta forma os fiéis faziam uso de rituais que procurassem garantir a salvação da alma. “Dentro dessa cultura fúnebre que os brasileiros herdaram da colonização portuguesa, que ainda vigorava no Brasil do século XIX, era importante investir no ritual funerário, na expectativa de alcançar as benesses do sagrado. Os católicos se preparavam durante toda a sua existência para a morte, inclusive prescreviam suas estratégias de salvação em testamento. Era crucial determinar o local de sepultamento, vestuário fúnebre, velório, cortejo, números de missas, doação de esmolas, pagamento de dívidas terrenas e celestiais. O ato de morrer era um evento partilhado pela comunidade. Também era fundamental que o fiel fizesse parte de alguma agremiação religiosa, como irmandades, confrarias ou ordens terceiras, pois essas entidades eram as maiores responsáveis pela organização dos enterros. Todos esses cuidados tinham o objetivo de minimizar os pecados para que a passagem da alma para o ‘além’ fosse segura. Os fiéis temiam a vida eterna no inferno. É o que a historiografia chama de “bem viver” e “bem morrer”, diz.

Na opinião da pesquisadora, em termos de processo histórico, a reforma cemiteral não significou somente construir cemitérios. As transformações culturais diante da morte, durante o século XIX, tiveram vários momentos de crise. “Não era fácil, para o fiel, abrir mão de seus costumes e crenças e aceitar com facilidade as intervenções sanitárias propostas pela medicina higienista”, comenta.

Os debates em torno do fim dos sepultamentos nas igrejas remontam no Brasil no início do século XIX, com a Ordem Régia de 1801, na qual o Príncipe Regente determinava a construção de cemitérios extramuros. Mas a medida não encontrou força política para promover de imediato a reforma cemiteral. Na Europa, essas propostas de afastamento dos mortos para longe das cidades vêm desde o final do século XVII e XVIII. Em 1828, o Governo Imperial decretou a lei de 1º de outubro, considerada a primeira lei orgânica dos municípios, delegando às câmaras municipais entre outras coisas, construir e administrar os cemitérios públicos em harmonia com o poder eclesiástico.

Religião oficial – Vanessa lembra que, no século XIX, o regime de união Igreja-Estado garantia ao catolicismo a condição de religião oficial e, portanto, era imprescindível administrar e não causar conflitos com a norma eclesiástica. Esse processo de “reedições de leis” sobre cemitérios extramuros mostra o “peso” que uma reforma de moralização dos costumes fúnebres representava. “Se imaginarmos que os fiéis acreditavam que estar enterradas dentro da igreja pela proximidade com os vivos era algo importante para a salvação de sua alma, esse distanciamento provocaria um profundo impacto nessas práticas religiosas. É importante lembrar que esses políticos e médicos higienistas da época partilhavam dessas crenças religiosas. Além disso, era difícil para esses homens construíssem uma boa imagem pública com o “estigma de ser lembrados como aqueles que atacaram as manifestações de fé da comunidade católica ”, comenta.

Nesse contexto, o primeiro processo de reforma cemiteral de vulto realizado no Brasil ocorreu em Salvador, na Bahia, onde os políticos tentaram cumprir as determinações da lei de 1º outubro de 1828. Os políticos baianos ignoram o fato de a reforma ser um projeto de salubridade pública, financiado e administrado por órgãos de Estado. O governo provincial – juntamente com a assembléia legislativa provincial – fez uma concessão para que empresários da iniciativa privada construíssem e administrassem o cemitério e, sobretudo, monopolizassem o comércio funerário. A população repudiou esse novo cemitério, organizando em 1836, um forte protesto que ficou conhecido por “Cemiterada”.

O episódio da Bahia repercutiria em todos os processos de reforma cemiteral no restante do país, inclusive em Pernambuco, Rio de Janeiro, São Paulo e demais províncias. O diferencial dessa reforma de Salvador é que ela foi “privatizada”. Esse fato foi muito importante para as pessoas se mobilizarem contra essa reforma cemiteral. Entre as razões da “Cemiterada” foi a questão do monopólio e a falta de uma justificativa plausível como uma epidemia, para que as pessoas abrissem mão de seus costumes, crenças e interesses pessoais em nome de um projeto que no entendimento geral da população somente beneficiaria os empresários e provocaria a ruína das agremiações religiosas. Esse episódio desacelerou os processos de reforma cemiteral no Brasil. Com isso, o assunto cemitérios públicos extramuros ficou esquecido por um bom tempo.

A discussão em Recife sobre a lei de reforma cemiteral foi entre 1840 e 1841. Os deputados discutiram o tema com muito cuidado e realizaram o processo de forma totalmente pública, procurando não contrariar os interesses da Igreja e das agremiações leigas. A lei nº 91/1841 que proibia os sepultamentos nas igrejas e autorizava o governo a captar recursos para construção do cemitério público chegou a ser aprovada, mas “ficou no papel”. Somente com a ameaça de grande epidemia de febre amarela, entre 1850 e 1851, que ocorreria a mobilização política necessária para fazer cumprir essas determinações sanitárias em torno da morte.

Para Vanessa, o que Recife teve de especial em seu projeto de cemitério público foi o empenho por parte do poder público em harmonizar as normas sanitárias com os demais setores da sociedade pernambucana. “É evidente que esse processo de proibição dos sepultamentos nas igrejas no Recife não foi totalmente pacífico e livre de resistências. Contudo, a experiência baiana criou uma série de parâmetros que propiciou que os políticos locais não cometessem os mesmos erros, quando o assunto era a moralização dos costumes fúnebres. E não houve, na capital pernambucana, mobilizações aos moldes da ‘Cemiterada’ ”, diz.

Catacumbas de irmandades no Cemitério Público do Recife: entidades eram as maiores responsáveis pela organização dos eventos (Foto:: Divulgação)Para ela, alguns pontos foram decisivos para que o projeto fosse implantado na cidade. O primeiro é que, segundo suas pesquisas, o Cemitério Público do Recife, além de ser uma obra pública, foi provavelmente a primeira necrópole projetada com capela construída no Brasil. Além das benções solenes da Igreja, a capela edificada no centro do cemitério fazia com que as pessoas identificassem o novo local de sepultamento como espaço sagrado, diminuindo possíveis resistências religiosas. O segundo ponto importante para apaziguar descontentamentos de particulares foi a doação de lotes de terreno ao longo do muro para as irmandades, confrarias e ordem-terceiras para a construção de suas catacumbas, numa forma de indenização e para evitar maiores conflitos. Alem disso, os velórios dentro das igrejas da cidade não foram proibidos, assim como os cortejos na cidade. A pompa fúnebre também foi mantida no novo cemitério. Os interessados poderiam comprar ou alugar locais privilegiados. Os mais valorizados eram os próximos às alamedas principais, que faziam caminho para a capela. A Câmara Municipal concedia sepulturas gratuitas em nome da caridade e ainda havia espaços distintos para o sepultamento de livres e escravos. Por fim, garantiu-se o livre comércio, sem o monopólio.

Atualmente, Vanessa está desenvolvendo um novo projeto sobre o aumento do número de suicídios do Rio de Janeiro do século XIX em função do processo de secularização da sociedade brasileira. A sua pesquisa de mestrado foi financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).

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