Leia nessa edição
Capa
Diário de Cátedra
Na era dos computadores
Mananciais de aqüíferos
Esclerose múltipla
Iniciação científica
Título de mestre
Cabeças pensantes
Painel da semana
Oportunidades
Teses da semana
Unicamp na mídia
Materiais magnetocalóricos
Fórum
Classe operária vai ao paraíso
 

2

Entre Salamanca e Madrid

Reginaldo Carmello Correa de Moraes




Reginaldo Carmello Correa de Moraes é doutor em Filosofia, professor do Departamento de Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp (IFCH) e do curso de pós-graduação em Relações Internacionais (Unicamp-Unesp-PUC/SP). Assumiu uma cátedra junto ao Centro de Estudios Brasileños da Universidad de Salamanca, onde ficará até dezembro, para um ciclo de seminários sobre problemas brasileiros, além de atividades de pesquisa sobre a transição política na Espanha e sobre os experimentos de expansão do ensino superior naquele país. A iniciativa ocorre no âmbito do Programa Cátedras Unicamp & Universidades Espanholas.Em 1975, quando Franco morria e o franquismo se desmanchava, apenas 2,3% da população economicamente ativa de Espanha tinham educação superior. Vinte e cinco anos depois, esse percentual chegou aos 10 pontos.

Ainda nesse final de século, entre os espanhóis de 25 a 64 anos, 21% tinham algum tipo de educação terciária. Mas, quando consideramos a faixa dos 25-34 anos, aquela faixa que foi graduada já no pós-franquismo, o índice salta para 33%. O contraste entre gerações só não é maior porque as escolas superiores espanholas incorporaram, decididamente, muitos indivíduos acima da chamada “faixa adequada”, a dos 18-24, que, definitivamente, não parece adequada para analisar paises de urbanização e escolarização tardias.

O censo de 1991 registrava que cerca de 20% dos estudantes universitários eram filhos de operários. Mas, grande como pareça este número, ainda temos, aí, uma sub-representação, um sinal de exclusão: afinal, 36% das famílias espanholas tinham “chefes” operários.

No final do milênio, a Espanha tinha cerca de 1,6 milhões de estudantes de nível superior, para uma população de 40 milhões. O Brasil, na mesma data, tinha quase 3 milhões de estudantes, mas para uma população mais de três vezes maior. E, sublinhemos, uma população mais jovem, mais próxima da famosa “idade adequada”. Quantos estudantes deveríamos ter, para alcançar a Espanha?

Perto de 90% das matrículas do nível superior, na Espanha, estão em escolas públicas. Muito diferente do Brasil, onde perto de 70% “pertencem” ao setor privado – e esse “pertencem” tem muitos e importantes sentidos. A propósito, poucos países têm perfil similar ao do Brasil, neste aspecto. Japão e Coréia são os exemplos mais fortes de presença grande de escolas privadas. Mas, lembremos, são países com renda per capita muito superior à do Brasil e desigualdades de renda e propriedade bem menos acentuadas. A Coréia, aliás, estimulada e apoiada pelos Estados Unidos, fez uma reforma agrária que no Brasil seria chamada de comunista pela imprensa falada, impressa e televisada, imprensa sempre muito propensa a confundir liberdade e propriedade.

Porém, ainda há uma importante qualificação a ser feita no parágrafo anterior: escola pública não quer dizer necessariamente gratuita. Assim, como, em certa medida, empresas públicas de energia, transporte ou telefone também não tenham essa implicação. Escola pública não é gratuita na Espanha, nos Estados Unidos, em Portugal, na Austrália e em muitos outros países do mundo.

Um estudante espanhol paga perto de 1.000 dólares anuais (dependendo da carreira) por um curso de graduação. Não é tanto, para um país de renda per capita de US$ 15 mil (a do Brasil é inferior a US$ 3 mil). Um college público norte-americano custa ao estudante perto de US$ 1,8 mil anuais. Mas a renda per capita nos EUA é mais de dez vezes a brasileira. Equivale, talvez, a renunciar a um bom hambúrguer (bom hambúrguer?!) por dia. Comparando de modo grosseiro, mas suficiente para ver o tamanho da encrenca, é como se o estudante brasileiro pagasse mensalidades de menos de 20 dólares, aproximadamente. Perto de 2,5 milhões de brasileiros pagam mensalidades muitas e muitas vezes maiores do que isso, em escolas privadas de qualidade, digamos, bastante variada. A indústria do ensino superior privado, no Brasil, fatura 12 milhões de reais ao ano. A indústria editorial, pouco mais de 2 milhões, metade deles, mais ou menos, com material para escola básica. Pouquíssimo com livros de tecnologia e ciência em geral. Por esses números podemos ter uma idéia da qualidade das coisas.

Em quais desses países temos universidades “públicas”? Em quais deles temos acesso mais democrático à cultura acadêmica? O mundo está cada vez mais complicado e cada vez mais distante do que ensinavam as cartilhas da antiga Alemanha Oriental, da Romênia ou da Albânia, outrora “pátrias” bem policiadas do pensamento progressista. Mas, nós, em grande medida, ainda não atualizamos nossas lentes. Não, “atualizar” não é um termo adequado, porque muito do que precisamos para analisar este mundo novo já foi ensaiado em um escritor do século 19, um certo barbudo que tem bem pouco a ver com os três países logo acima mencionados, apesar das aparências.


llllll

Salamanca fica a 200 km de Madrid, a leste. Perto de 160 mil habitantes, uns 40 mil estudantes universitários. Em suma, a vida urbana gira em torno das duas universidades, a USAL, pública, e a Pontifícia. Consta que a USAL é a segunda mais antiga universidade do mundo – a primeira é Bologna.

O centro mais antigo – antiqüíssimo – compreende um círculo de 3 ou 4 quilômetros de diâmetro. Nesta semana festeja a data da padroeira. Milhares de pessoas ocupam os calçadões desse círculo, em que se instalam centenas de mesas e quiosques dos restaurantes e bares. Em vários pontos, shows de música, danças e encenações tomam a rua.

Traço curioso disso tudo: a presença das senhoras de Salamanca na festa. Um número enorme de “coroas” de tailleur e casaquinho, broches e colares, xales e lenços. Talvez algumas delas tenham saído, faz pouco, da missa de uma daquelas tantas igrejas. Mas, agora, na rua, dedicam-se aos prazeres da carne: nas mesas, há refrigerantes e sucos, chás e chocolates, mas, também, muita cerveja e copos de vinho. As velhinhas bebem sem culpa. Estão certas de que Jesus e Maria compreenderão.

llllll

Na primeira vez em que vim à Espanha, para um “passeio de reportagem”, julgava-se o 23-F, a tentativa frustrada – e canhestra – de golpe militar que ocorrera no ano anterior (o 23 de fevereiro, claro). Era o tema da hora em todo lugar por onde passei, em Madrid, em Barcelona, no país basco. Até porque a sombra dos militares – dos poderes fáticos – pairava sobre a jovem democracia, tutelada e temerosa.

Agora, o assunto é o 11-M (o 11 de março das bombas nos trens do subúrbio), que se costuma associar ao 11-S (o das torres gêmeas americanas). Poucos meses se passaram, mas muitos livros já foram editados. De todo tipo: depoimentos, reflexões sobre os desafios do crime organizado e do terror político à organização da justiça e da policia e, é claro, interpretações sobre as conseqüências do evento. Neste último aspecto, há uma prova de como o modo de olhar é tudo na vida. Como dizia o poeta andaluz, “o olho que te vê não é olho porque tu o vês, é olho porque te vê”. O que não nos impede de examinar os diferentes olhos e ver suas diferenças. Um livro chamado Dias de Infâmia, de Enrique Diego, tenta provar que o PSOE e a mídia construíram uma grande conspiração para aproveitar o sangue dos mártires e vencer as eleições. Essa é a infâmia a que se refere o título. De outro lado da cerca, 11-M – Mentira de Estado, de Pepe Rodriguez, faz exatamente o contrário: aponta que Aznar e a direita tentaram utilizar a “mentira basca” para não apenas se livrar da enrascada, mas, ainda, ganhar com o medo do terror, que havia sido sua grande bandeira de campanha. Aliás, como estive aqui no começo deste ano, vi um pouco do massacre televisivo que tentava associar Aznar à segurança e a oposição ao terrorismo. Nada a dever para os piores de programas de tv brasileiros sobre crimes na cidade, a lei e a ordem.

A vida é engraçada, já dizia o sábio Tim Maia. Em 1982, ano do julgamento do 23-F, também se estava à beira de eleições. O governo conservador afundava e muitos tinham como quase certa a vitória do PSOE. O julgamento e o clima que em torno dele se criou não produziram pavor que jogasse os eleitores para direita. O PSOE ganhou. Agora, tinha-se como quase certa a vitória de Aznar e a continuidade de sua política de alinhamento com Bush. A tentativa desastrada de tirar proveito do atentado saiu pela culatra. Manifestações monstruosas – que já vinham da oposição à invasão do Iraque – exibiam faixa curta e grossa: “Tua guerra, nossos mortos”.

Muitas outras coisas ainda estão por serem deduzidas dessa lição. Uma delas é a aparição, com muito mais força, do problema dos imigrantes, grande maioria dos mortos naqueles trens malditos. Muitos deles sem papéis, ilegais. Mas trabalhadores. Outra indicação: há, no plano nacional, uma espécie de bi-partidarismo de fato. Em 1996, desgastado o PSOE, por muitos motivos, seus eleitores (e os eleitores de esquerda em geral) ficaram em casa, enquanto a direita ganhava. Agora, o PP não perdeu votos, até ganhou alguns. Mas o número de votantes cresceu enormemente. Os eleitores de esquerda e centro-esquerda resolveram que era urgente sair de casa e votar – e votar em quem tinha chance de espremer Aznar para fora do jogo. Zapatero, o chefe de governo do PSOE, ainda não é, de fato, um líder de massas. Mas tem a chance de se tornar um nome importante na Espanha e no tabuleiro internacional. Saberá fazê-lo? Conseguirá convencer seu público que é verdadeira sua frase famosa: “o poder não vai me mudar”? Está em aberto, como toda a história que se vive, não aquela que se conta e ajeita.

SALA DE IMPRENSA - © 1994-2003 Universidade Estadual de Campinas / Assessoria de Imprensa
E-mail: imprensa@unicamp.br - Cidade Universitária "Zeferino Vaz" Barão Geraldo - Campinas - SP