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‘Generais’ triunfam e
FCM é instalada

 

CAPÍTULO 5

De como, no apagar das luzes do Governo Carvalho Pinto, Campinas é
atendida com muito mais do que havia sonhado

EUSTÁQUIO GOMES

Zeferino Vaz, como inventor na UnB, recebe visita do embaixador Lincoln Gordon: 15 meses produtivos e contraditórios (Foto: Acervo Arquivo Central (Siarq) Unicamp)A gastado com a polêmica, Zeferino chegou a demitir-se da comissão. Foi demovido pelo governador Carvalho Pinto. Aos campineiros isso já não importava muito, pois tinham decidido contornar o Napoleãozinho e levar a luta adiante com ou sem ele no caminho. Para todos os efeitos, a escola de Campinas estava criada no papel e pô-la para funcionar continuava sendo uma questão política e de dinheiro. Em junho de 1959, Luso Ventura pontificou mais uma vez no Correio Popular:

— Está superada a fase dos debates. Estamos empenhados na instalação.

No ano seguinte os campineiros se organizaram para valer. Ao tomar posse da presidência da Sociedade de Medicina e Cirurgia de Campinas, o patologista Roberto Franco do Amaral, um dos esteios do projeto, elegeu a instalação da faculdade como prioridade número um da entidade. Pela primeira vez alguém definia com clareza os alvos a serem atacados de frente: o Conselho Universitário da USP, que detinha o controle do Conselho Estadual de Ensino Superior; os membros do próprio Conselho Estadual; os deputados da Assembléia Legislativa; e o governador do Estado.

O Conselho de Entidades foi reativado(1) e uma nova campanha colocada em marcha. Criou-se uma estrutura com organograma e plano de ação definidos. No topo havia uma coordenação geral que tinha à frente, além de Franco do Amaral, o engenheiro Eduardo Barros Pimentel, delegado da Federação das Indústrias do Estado na cidade, o presidente da Associação Comercial e Industrial de Campinas Ruy Rodriguez e o presidente da associação local dos funcionários públicos, Ary de Arrruda Veiga. Abaixo deles vinham 86 “combatentes” distribuídos em onze grupos de trabalho cujos líderes foram denominados “generais”. Cada grupo tinha uma tarefa a cumprir de acordo com a tarefa geral que era a de formular estudos jurídicos e financeiros para a instalação da faculdade, fazer o levantamento sócio-econômico da região, estabelecer contatos políticos, promover o tráfico de influência e realizar palestras de convencimento. Foram listados todos os agentes políticos e administrativos cuja opinião ou poder de fogo pudesse ser útil à causa. Foram arregimentados os nove deputados que na época representavam a cidade na Assembléia do Estado e na Câmara Federal, sem distinção de partido, para azeitarem o diálogo com o poder público(2). A propaganda foi considerada um capítulo importante e urdiu-se uma linguagem de frente de batalha. O próprio arcebispo, Dom Paulo de Tarso Campos, cunhou um slogan que depois os jornais repetiriam à larga:

— Não é Campinas que precisa de uma faculdade de medicina, mas a medicina que precisa de uma faculdade em Campinas.

Nos meses seguintes, como uma espécie de corrente da sorte em expansão, registrou-se um bombardeio de telegramas, ofícios, memorandos e bilhetes endereçados ao governador e aos parlamentares exigindo o atendimento do pleito de Campinas. Eram redigidos e firmados por vereadores, às vezes câmaras municipais inteiras, dirigentes de instituições, capitães de indústrias, clubes de serviços e Isso com tal intensidade que a certa altura o governo já não tinha como ignorar os argumentos dos campineiros; além do que seus relatórios técnicos eram impecáveis. O Brasil tinha apenas 25 mil médicos e precisava de mais 90 mil – 15 mil dos quais só no Estado de São Paulo – para estar em dia com os parâmetros da Organização Mundial da Saúde. E Campinas, uma cidade para onde convergiam doentes de quase uma centena de cidades, dispunha de 1 médico para cada grupo de 3.000 pessoas, quando a recomendação era de 1 para cada 750.

Na reunião de 14 de março de 1961, diante de 56 “generais”, Albernaz foi enfático:

— Se preciso, vamos sacudir no nariz do governo as cifras da arrecadação municipal.

Em dezembro, Carvalho Pinto deu mostras de mudar de postura e de conselheiro. Retirou Zeferino do caso e nomeou um seu antípoda, o reitor da USP Antônio Barros de Ulhoa Cintra, para chefiar um novo grupo de trabalho com a missão de “estudar a criação de um núcleo universitário em Campinas”. O grupo incluía o professor de gastroenterologia Cantídio de Moura Campos, o estatístico Ruy Aguiar da Silva Leme, o bioquímico Isaias Raw e o misto de biólogo e compositor de samba Paulo Emílio Vanzolini, todos da USP ou com passagem pela USP.

O grupo tinha vento a favor e trabalhou depressa, pois assumira o compromisso de concluir seu relatório ainda no governo Carvalho Pinto, que se encaminhava para o fim. Como tudo indicasse que seu sucessor viria da oposição — Adhemar de Barros tinha como principal oponente Jânio Quadros, um ex-presidente combalido pela renúncia do ano anterior —, isto significava que Zeferino, um ademarista de berço, voltaria a dar as cartas em assuntos de educação superior. Antes de apear do poder, entretanto, Carvalho Pinto já havia concluído que a postulação de Campinas era incontornável: estava madura o suficiente para não ser colhida. E resolveu dar aos campineiros um presente maior do que eles haviam pedido: em 28 de dezembro de 1962, no apagar das luzes de seu governo, assinou o decreto que criava a Universidade Estadual de Campinas. E, a poucos dias de entregar o posto ao novo governador, nomeou como primeiro reitor da UEC (sigla que vigorou até 1966) o professor Cantídio de Moura Campos.

O curso foi autorizado a funcionar provisoriamente nas dependências de um hospital ainda em construção, a Maternidade de Campinas. Em fevereiro de 1963 era contratado seu primeiro professor, o especialista em hanseníase Walter August Hadler, que assumiu a cadeira de histologia e embriologia. Lembrou-se então que a faculdade, única a compor até aí o projeto da nova universidade, precisava regimentalmente de um diretor. Em março foi designado para essa função o oftalmologista Antônio Augusto de Almeida. E em agosto começaram a ser instalados os primeiros departamentos, o de Genética Médica – primeiro da América Latina na especialidade – e o de Anatomia, tarefas confiadas respectivamente ao geneticista Bernardo Beiguelman, um dos pioneiros da genética humana no Brasil, e ao patologista João Batista Parolari.

O primeiro vestibular, realizado em abril, atraiu 1.654 candidatos para o preenchimento de 50 vagas. Formou-se rapidamente um conselho de curadores e em 20 de maio, quando o reitor da USP, Ulhoa Cintra, chegou para dar a aula inaugural, encontrou todo o corpo docente perfilado para cumprimentá-lo. No dia seguinte, os alunos entraram em bando para a primeira aula. (E.G.)


(1). O Conselho de Entidades congregava de início 18 associações de classe; posteriormente esse número subiu para 23.

(2). Ângelo Zanini, Dante Perri, Eduardo Barnabé, Harry Normanton, Marcondes Filho,Nelson Omegna, Ruy de Almeida Barbosa, Ruy Novaes e Sólon Borges dos Reis.

CAPÍTULO 6

Aventuras de um revolucionário civil

Zeferino acusa o ministro do Trabalho de Jango de fomentar greves
e justifica desse modo seu apoio ao golpe militar

O golpe militar de 31 de março de 1964 veio encontrar Zeferino presidente do Conselho Estadual de Educação, depois de um ano como secretário da Saúde do governo Adhemar de Barros. Cinco anos mais tarde, num artigo comemorativo da quartelada, Zeferino explicou sua posição:

Pode-se perguntar por que razão um pacífico homem de ciência, acreditando com a mais profunda fé nas virtudes do regime democrático, que por ele lutara como soldado em 1932, foi compelido a buscar a derrubada de um estado de direito para substituí-lo por um estado revolucionário. A razão estava em que o que existia era um pretenso estado deTanque nas ruas em abril de 1964: em artigo, Zeferino Vaz justifica porque "um pacífico homem de ciência" foi compelido a buscar a derrubarda de um estado de direito (Foto: Acervo Arquivo Central (Siarq) Unicamp) direito cujos dirigentes se preparavam ardilosamente e sub-repticiamente para implantar uma ditadura de medíocres.(1)

Zeferino tomou essa decisão em agosto de 1963, depois de concluir que o ministro do Trabalho do governo João Goulart, Amaury de Oliveira e Silva, estaria “prestigiando” moralmente uma greve salarial na Santa Casa de Santos, que ele, ainda secretário da Saúde, tentava a duras penas debelar. Quando a greve ganhou o apoio dos estivadores das docas, o ministro viajou a Santos para reunir-se com as lideranças sindicais. Ao lado do provedor da Santa Casa, Ricardo Pinto de Oliveira, estudava a conveniência de aceitar-se ou não as condições dos grevistas. Zeferino tomou isso como uma afronta. Numa operação de emergência, desceu a serra na companhia de 40 enfermeiras emprestadas do Hospital das Clínicas de São Paulo para tentar restabelecer aquele serviço de enfermagem . Cruzou com o ministro na entrada do hospital e desviou-se dele com o semblante carregado. Terminou de subir as escadas como se não o conhecesse. “A partir daí”, escreveu Zeferino, “não tive mais dúvida sobre o governo”:

Um governo que, para alcançar seus objetivos subalternos, através do caos social, não sentia, comprovadamente, o menor escrúpulo em proceder criminosamente, não mais podia merecer o meu respeito de cidadão e muito menos de médico.(2)

E ia mais longe na sua interpretação do que pretendia o governo de Jango: nada menos que “implantar o caos e a desordem social através da degradação da economia brasileira, mesmo à custa de vidas de crianças e de pobres trabalhadores doentes, para justificar o golpe de Estado que preparava”. Caos que, na opinião do reitor da Universidade de São Paulo, Luís Antônio da Gama e Silva, um adepto de primeira hora do movimento militar, também ameaçava dominar o meio universitário e particularmente a instituição que dirigia.

Quando eclodiram as primeiras notícias do golpe, na manhã de primeiro de abril de 1964, a congregação da Faculdade de Medicina da USP reuniu-se em sessão extraordinária para formalizar seu voto de confiança no Exército. Pela rapidez com que isso foi feito, deve ter sido o primeiro apoio institucional que os militares receberam da sociedade civil. Houve prisões em sala de aula. A Faculdade de Filosofia foi invadida por tropas de choque e portas foram abertas a pontapés. O reitor cruzou os braços. O governo agradeceu cumulando Gama e Silva de poderes — deu-lhe o Ministério da Educação e logo em seguida o da Justiça — que ele usou para instalar, em julho, uma comissão especial “para investigar atividades subversivas na USP” da qual fizeram parte os professores Theodureto de Arruda Souto, da Escola Politécnica, Moacyr Amaral dos Santos, da Faculdade de Direito, e Jerônimo Geraldo de Campos Freire, da Faculdade de Medicina. Três meses mais tarde, essa comissão recomendou a suspensão dos direitos políticos de 44 professores e oito alunos e funcionários. Entre os “agentes da doutrinação marxista” estavam o físico Mário Schenberg, o arquiteto Villanova Artigas, os sociólogos Caio Prado Júnior, Florestan Fernandes e Fernando Henrique Cardoso, o economista Paulo Singer e o estudante politécnico José Serra. Não houve sanção imediata por parte dos órgãos de segurança, mas os inquéritos policial-militares instalados serviriam de base, cinco anos mais tarde, para um expurgo efetivo que alcançaria parte dos arrolados em 1964.

O clima de caça às bruxas instalou-se na maioria das principais universidades brasileiras, sobretudo nas federais, onde não só professores eram presos ou indiciados como também reitores foram caindo um após outro. A deposição do reitor e fundador da Universidade de Brasília, Anísio Teixeira, um educador marcado por suas ligações com Darcy Ribeiro e Leonel Brizola, homens de Jango, era uma questão de honra para o regime. Anísio caiu no dia 9 de abril, junto com seu vice-reitor Almir de Castro, e o campus da UnB foi invadido por tropas do Exército e da Polícia Militar de Minas Gerais, acantonadas em Brasília com metralhadoras em posição de fogo. O Conselho Diretor foi dissolvido e os escritórios dos professores interditados por duas semanas.

Menos de uma semana depois da invasão, no dia 15, Zeferino Vaz amanheceu interventor da UnB. O próprio general-presidente, Humberto de Alencar Castello Branco, convocou-o para o cargo por telefone.

— Preciso de você aqui para impedir a destruição da universidade – o general lhe teria dito, conforme relato posterior do próprio Zeferino.

Os quinze meses que passou na UnB como “interventor ou reitor a serviço da Revolução de 31 de Março”, segundo sua própria expressão, foram ao mesmo tempo produtivos e contraditórios. A parte boa é que, hábil em arrancar dinheiro do Estado, colocou em dia as finanças da instituição. Recebido com reservas pela comunidade universitária, surpreendeu a todos cuidando pessoalmente da libertação dos professores e estudantes presos durante a invasão. No entanto, poucos dias depois expulsou nove professores e quatro instrutores “por conveniência da administração” (mais tarde admitiu ter errado em dois casos, mas não conseguiu trazê-los de volta).

Em meados de 1965 tornou a causar surpresa ao convidar para organizar o Departamento de Filosofia o professor Ernani Maria Fiori, que havia sido demitido e aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul no primeiro dos 16 atos institucionais do período militar. Quando as esperanças da comunidade interna voltavam a aglutinar-se em torno dele, Zeferino foi obrigado a voltar atrás, demitindo Fiori por ordem do Planalto.

Aborrecido com as interferências e abalado com a perda de prestígio interno, deu sua missão por terminada na capital federal e passou o cargo a um homem que faria história na Universidade de Brasília — o professor paulista Laerte Ramos de Carvalho — graças não só à quantidade de uísque que consumia mas também por ter rapidamente conduzido a instituição ao abismo.

Menos de dois meses depois da saída de Zeferino, o novo reitor demitiu 16 professores e, em represália, recebeu 223 cartas de demissão, o que equivalia a 80% do corpo docente da UnB. Foi a maior crise da história de uma universidade no Brasil. (E.G.)

Continua na próxima edição.

(1). "A revolução de Março de 1964: imperativo de sobrevivência", 31/03/1969

(2). Idem

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CAPÍTULOS ANTERIORES

* Capítulos 1 - O dia em que Zeferino não embarcou num cruzeiro

* Capítulos 2 - “Prefiro plantar perobas a plantar couves”

* Capítulos 3 - Flores para o pequeno homem de sombra longa

* Capítulo 4 - Zeferino se opõe ao sonho campineiro


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