| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 313 - 20 de fevereiro a 5 de março de 2006
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Legado de Lattes
 

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Unicamp disponibiliza ao público acervo particular do
cientista, que agora dá o nome à Biblioteca Central

O legado pessoal de Lattes

LUIZ SUGIMOTO

O escritório de César Lattes, que será reconstituído na BC: o cinzeiro e a bituca de cigarro (destaque) têm história (Foto: Antoninho Perri)Biblioteca César Lattes. Assim passa a se chamar o coração do Sistema de Bibliotecas da Unicamp (SBU), a partir deste dia 8 de março, primeiro aniversário da perda daquele que foi um dos maiores cientistas brasileiros. A cerimônia marcada para as 10 horas foi preparada com esmero, entremeando música, poesia e muita prosa. O tom singelo acompanha a informalidade e desprendimento que marcaram a vida do homenageado. No terceiro andar do prédio, com a mesma minúcia, profissionais da ex-BC e do Arquivo Central (Siarq) já terão reconstituído o escritório particular de Cesare Mansueto Giulio Lattes, dispondo nas paredes os diplomas, prêmios, obras de arte e fotos da família, amigos e cachorros, os objetos de mesa e das estantes, além de recordações e adereços que também ostentam sua história. O acervo pessoal doado pela família livros, cartas e outros documentos.

César Lattes nunca se deu a vaidades em público, mas no escritório exibia as conquistas que lhe eram intimamente caras. Listar algumas honrarias, no caso dele, não soa pernóstico. Diplomas do Instituto Técnico Superior de Milão, Academia Brasileira de Ciências, Academia de Ciências da América Latina e de pesquisador emérito do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas. O Prêmio Moinho Santista. O título de cidadão paulista. A cópia do diploma de bacharel em Física da FFCL/USP e o certificado de contratação pela Faculdade Nacional de Filosofia. O atestado de conselheiro da SBPC. A Medalha Santos Dumont. O Prêmio CNPq. O Honoris Causa pela USP. Os títulos de Professor Emérito e de Honoris Causa pela Unicamp. A medalha de ouro da Academia Brasileira de Ciências pela observação de mésons. E o Prêmio de Física da Academia do Terceiro Mundo, o mais recente.

Lattes venerava a família. Há inúmeras fotos da esposa Martha, das filhas Maria Carolina, Maria Cristina, Maria Lúcia e Maria Teresa, dos netos. Desenhos e pinturas de Maria Carolina. Um óleo sobre tela de Volpi, “Marina”, presente para Maria Cristina. Placa de madeira pirografada: “Vô te adoro, beijos, Fê”. Um cartão felicitando o casal pelos 50 anos de união. A fotografia com seus avós e os cachorros Pirulim e Ratim. Sua foto no Monte Chacaltaya e seu busto na estante – talvez uma ponta de vaidade. Moringa de barro. Um hidrômetro-termômetro montado em madeira. Três chapéus pendurados lembrando a calvície. Um enfeite de couro trançado tendo nas pontas bolas de madeira – a “boleadeira” lançada por peões gaúchos nas patas do boi para derrubá-lo. Jacaré empalhado, chifre de animal desconhecido, a fotografia de uma vaca e um macaquinho de brinquedo dado por uma fã: “She loves you”.

Mesmo parecendo politicamente incorreto, o Siarq também guarda o cinzeiro e a bituca de um “Derby” com o filtro cortado, o último aceso por César Lattes. Justifica-se, pois por trás do vício, igualmente, há uma história. Ao Jornal da Unicamp, na edição especial após a morte de Lattes (nº 281), já foi contado que as pesquisas em Bristol foram realizadas em laboratório financiado por uma indústria do tabaco, sinal dos tempos em que tragar era mero charme. O cientista teria adquirido o hábito porque o cigarro estava disponível e enganava a fome, no pós-guerra que obrigava ao racionamento de alimentos. Pelo visto, os maços eram também racionados. “César me disse que juntava o fumo das bitucas para fazer um cigarro inteiro”, recorda o professor Édison Shibuya, acrescentando um detalhe quiçá inédito.

Nos últimos tempos, quando Lattes adoecido já não saía de casa, era Shibuya quem agendava e monitorava as visitas de colegas da comunidade científica, e foi ele o indicado pela família para cuidar da transferência do acervo que a Unicamp está disponibilizando ao público. Como foi de suas mãos que o Siarq recebeu perto de uma dezena de pastas de poliondas contendo cartas e documentos, Édison Shibuya era também a pessoa mais indicada para orientar a reportagem sobre o que nelas havia de mais importante. Grosso modo, porém, fatos interessantes relacionados com esta correspondência precisariam ser devidamente contextualizados, tarefa impossível num tempo que permitia apenas o virar de página de 764 documentos.

Lattes com um de seus chapéus em aula ao ar livre: Desprendimento em relação à importância das conquistas na carreira (Foto: divulagação)Irreverência – Entretanto, puxando pela memória, Shibuya é capaz de contar e recontar episódios que oferecem uma idéia da personalidade de César Lattes, e que não constam de currículo ou literatura, visto que impublicáveis. Em carta que está no Siarq, o próprio físico brasileiro descreve uma desavença com o mentor que o levou para a Inglaterra, Giuseppe Occhialini, respeitado cientista experimental. “Occhialini construiu uma geringonça complicada para revelar filmes e acusou Lattes de utilizar a máquina e não lavá-la”, conta Shibuya. Injuriado, porque nem havia tocado o equipamento, Lattes mandou que o outro fizesse com a invenção aquilo que podemos imaginar. A reação de Occhialini foi um forte abraço: “Meu filho, para você, não sou mais professor, me chame de Beppo”. Segundo consta, o mestre italiano adotava uma máxima: “aluno que não fala mal de professor, ou é um covarde ou é um idiota”.

Esta informalidade César Lattes impôs ao próprio Shibuya, quando começaram a trabalhar juntos na USP, em 1967. “Enquanto você não me chamar de você, nossa conversa não vai avançar”, repreendeu o professor. Para o aluno, que nunca perdeu o hábito de inclinar levemente a cabeça ao cumprimentar as pessoas e menos ainda de reverenciar os mais velhos, como ensina a cultural oriental, tal intimidade era quase impossível. “Eu gaguejava muito”, admite. Já na Unicamp, um novo constrangimento de Shibuya teve outra motivação, quando Lattes sugeriu que assistissem à defesa de tese de livre-docência do economista Wilson Cano. Presente a fina flor da economia, como Maria da Conceição Tavares e João Sayad. Num instante de silêncio na sala, Lattes pensou cochichar, quando todos ouviram seu vozeirão: “Édison, você está entendendo alguma coisa?”. “Esperei o intervalo e fui embora de vergonha”, confessa Shibuya.

A irreverência de Lattes, certa vez, atingiu o grotesco. A sede do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) funcionava em terreno que um dia serviu como cemitério de um hospício, no Rio de Janeiro, e tornou-se corrente a piada de que ali havia “loucos mortos embaixo e loucos vivos em cima”. Fato é que o prédio estava em péssimas condições e Lattes, à frente da entidade, acabaria por dar alguma razão à piada. Diz a lenda que, querendo pressionar a liberação de verbas para a reforma, o cientista levou o administrador até um banheiro degradado e com a parede de uma sujeira suspeita. Sem mais, passou o dedo no azulejo e lambeu. “Era chocolate”, diverte-se Shibuya, ressalvando que apenas ouviu essa história.

Carta que falta – Essas amenidades contribuem para arejar a densa trajetória de César Lattes, desde que foi adotado na academia por Gleb Wataghin, o fundador da física no Brasil, passando pela descoberta do píon e a produção artificial do méson pi a partir da aceleração de partículas alfa, com o posterior usufruto da fama conquistada para influir decisivamente na criação de centros de excelência no Brasil e na difusão da física em toda a América do Sul. Essa trajetória é por demais conhecida na comunidade científica – e esmiuçada na edição especial do JU – mas que não teve o reconhecimento maior que se pode prestar a um cientista.

Com este propósito, Édison Shibuya está em busca de uma carta cuja existência ainda não foi comprovada e que enriqueceria bastante o acervo entregue à Unicamp. “Seria uma carta do físico dinamarquês Neils Bohr [considerado um dos pais da mecânica quântica] criticando a comissão do Prêmio Nobel por não ter incluído o nome Lattes na premiação de 1950”, explica. Quem recebeu o prêmio foi Cecil Powell, chefe do laboratório de Bristol. Na época, Lattes tinha apenas 24 anos. Na cerimônia do dia 8 será apresentado um vídeo em que o cientista brasileiro comenta o episódio: “Powell ganhou um milhão de dólares, Occhialini [co-autor do artigo] recebeu 100 mil dólares e eu fiquei com os 25 mil cruzeiros do Prêmio Moinho Santista”.

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