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8

Zeferino se opõe ao
sonho campineiro

CAPÍTULO 4

De como Zeferino se coloca contra a instalação da faculdade de medicina e se torna persona non grata na cidade

EUSTÁQUIO GOMES

Notícia de mesa- redonda em favor da Faculdade de Medicina e logotipo autografado por Carvalho  Pinto (Foto: Acervo Arquivo Central (Siarq) Unicamp)

O azedume do Diário do Povo para com Zeferino não era novo. Remontava a 1956, quando ele era diretor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo em Ribeirão Preto, escola fundada por ele em 1951. Já figura influente nas esferas de decisão sobre assuntos de educação superior, Zeferino colocou-se publicamente contra um projeto caro aos campineiros: dotar Campinas de uma faculdade de medicina que fosse igual ou melhor que a sua.

Ary de Arruda Veiga , Roberto Franco do Amaral e Eduardo Barros Pimentel: vitória dos "generais" (Foto: Acervo Arquivo Central (Siarq) UnicampA campanha do jornal pela instalação dessa escola na cidade começou em 1946 através de um artigo de seu editor-chefe Luso Ventura. Até à época do entrevero com Zeferino, Luso, poeta à antiga e polemista apaixonado, já havia escrito mais de 200 artigos sobre o assunto. Seus argumentos traduziam o anseio dos médicos da cidade e das famílias que tinham filhos cursando escolas de medicina em outros centros. Se Ribeirão Preto, que era uma cidade menor e economicamente menos importante, tinha o privilégio de contar com uma faculdade de medicina, por que não Campinas?

Antônio Augusto de Almeida, o primeiro diretor(Foto: Acervo Arquivo Central (Siarq) Unicamp)Mas Zeferino, um pioneiro do ensino médico no interior paulista, achava que a rota de interiorização devia passar por outros caminhos. Ele se dizia inteiramente a favor de uma nova escola de medicina fora do eixo paulistano, mas não exatamente em Campinas. Defendia que as escolas de medicina não deviam ficar próximas umas das outras, e que Campinas tinha contra si o fato de estar a menos de cem quilômetros da Capital.

Foi o bastante para inflamar o ânimo dos campineiros.
— Parece claro que o projeto da Faculdade de Medicina de Campinas tem um inimigo acérrimo, e infelizmente para nós poderoso, no professor Zeferino Vaz – constata o otorrinolaringologista Paulo Mangabeira Albernaz, professor da Escola Paulista de Medicina e campineiro de velha cepa. — Compreende-se que a criação de uma escola médica do mesmo padrão em Campinas viria matematicamente prejudicar a dele, não só porque Campinas é uma “capital” mas também por ser um dos maiores centros médicos do Brasil.

O argumento da proximidade entre as escolas era ridículo, dizia Albernaz. Lisboa, Porto e Coimbra são cidades próximas entre si e contam com escola de medicina. E na França? Só no sul há escolas médicas em Montpellier, Papignan, Toulouse e Aix.

Walder Hadler, o primeiro docente contratado (Foto: Acervo Arquivo Central (Siarq) Unicamp)O ressentimento dos campineiros concentrou em Zeferino todos os dissabores que vinham sofrendo com sucessivos governos estaduais e com os catedráticos da Universidade de São Paulo que detinham, na época, o controle do ensino superior no Estado. Estava nas mãos da USP – a única universidade pública no Estado, à época – o principal instrumento que autorizava ou recusava a abertura de novos cursos ou faculdades: o Conselho Estadual de Ensino Superior, precursor do atual Conselho Estadual de Educação. Assim, enquanto os governos criavam no papel um sem-número de faculdades para agradar seus currais políticos, o Conselho se encarregava de evitar que elas se materializassem desautorizando sua instalação; sem contar que raramente se consumava a liberação de dinheiro para tal fim. Esse expediente, verdadeira aberração eleitoral, começou no governo de Lucas Nogueira Garcez, tornou-se comum no período Jânio Quadros e teve prosseguimento com seus sucessores Carvalho Pinto e Adhemar de Barros.

Daí a irritação de Albernaz quando Zeferino, um uspiano de alto coturno, pronunciou-se abertamente contra a instalação de uma nova faculdade na cidade.

— As opiniões do professor Vaz são capciosas e ocultam no bojo interesses particulares – disse.

Uma vez que no ano anterior Garcez havia criado por decreto a escola que os campineiros tanto queriam, toda a expectativa da gente mais ou menos letrada da cidade estava voltada para a consubstanciação desse sonho. Tanto que em outubro de 1955 o recém-criado Conselho de Entidades de Campinas – uma organização que reunia as associações de classe e clubes de serviços da cidade – fixou como sua tarefa prioritária a orquestração de uma campanha para forçar Jânio Quadros a cumprir a promessa feita pelo governo precedente.

Primeira turma de formandos de Medicina, em 1968: primeiro vestibular teve 1.654 candidatos para 50 vagas (Fotos: Acervo Arquivo Central (Siarq) Unicamp)Durante três anos Jânio fez ouvidos surdos ao clamor que vinha de Campinas. Em 1958, no entanto, encontrou uma forma de pacificar momentaneamente os ânimos dos campineiros recriando no papel a escola exigida por eles mas ao mesmo tempo agraciando três outras cidades – Catanduva, São José do Rio Preto e Botucatu – com promessa idêntica. Ou seja, de austero o governo passou a magnânimo. Mas, paralelamente, Jânio criou uma comissão para analisar as condições específicas de cada cidade. Os campineiros não demoraram a compreender que se tratava de um “leilão” em que poderiam não dar o último lance. Tiveram certeza disso quando Jânio, sem consultar ninguém, confiou a presidência da comissão a Zeferino. Para Albernaz, foi como entregar o galinheiro aos cuidados da raposa.

— Zeferino vai fazer o jogo de Botucatu – previu.

Luso Ventura, editor-chefe do Diário do Povo:200 artigos em defesa da faculdade (Foto: Acervo Arquivo Central (Siarq) Unicamp)Não demorou muito para que os receios de Albernaz se confirmassem. Em abril de 1959 a comissão entregou ao governador um relatório que rejeitava as pretensões de Campinas e concluía com um parecer favorável a Botucatu – “por motivos técnicos, morfológicos e econômicos”. No entender de Zeferino, era uma questão de lógica que uma nova escola de medicina no interior paulista devesse situar-se no lado oposto a Ribeirão Preto, onde já existia uma, precisamente a que dirigia. Além disso, das quatro cidades candidatas, Botucatu era a única a possuir hospital próprio, com capacidade para 700 leitos, além de ser “boca de sertão” e epicentro de onde servir tanto à Alta quanto à Baixa Sorocabana, além de alcançar com facilidade a vasta região rural do noroeste do Estado.

Albernaz ironizou:

— É simplesmente incrível essa história de motivos morfológicos. Se se tratasse da Brigitte Bardot ou da Lollobrigida, vá lá. Mas trata-se de uma cidade. Os motivos técnicos quais seriam?

E depois de listar todos os pontos favoráveis a Campinas, já então uma metrópole com 15 hospitais, 300 médicos, uma universidade confessional com dez cursos – a Católica –, 40 mil estudantes de todos os níveis e dezenas de bibliotecas, enumerou as dificuldades que Botucatu teria em mais de um sentido, inclusive o de conseguir cadáveres para as aulas de anatomia e dissecção.

Zeferino apanhou como um felino o argumento dos cadáveres. Acusou Albernaz de atraso científico:

— Essa mentalidade “cadavérica” de ensino já está encerrada há vinte anos.

— Falou o parasitólogo, grande autoridade em mosquitos e carrapatos – ironizou o médico campineiro. — Todos sabemos que não se pode fazer uma fenestração no vivo antes de umas cinqüenta num cadáver.

E dirigindo-se aos companheiros do Conselho de Entidades:

— Não devemos ter mais ilusões quanto aos interesses escusos do professor Zeferino.

Ao ouvir essa dura expressão, “interesses escusos”, Zeferino subiu nas tamancas:

— Que interesse escusos teria eu? Políticos, afetivos, econômicos? Não sou político, não tenho parentes em Botucatu e não possuo propriedades na região. Interesse na diretoria da faculdade? Duas vezes não! Planificar, executar e dirigir a de Ribeirão Preto já é o bastante para encher toda uma vida e satisfazer o mais vaidoso dos homens.

Antonio Barros de Ulhoa Cintra profere aula solene de instalção da Faculdade de Ciências Médicas (Foto: Acervo Arquivo Central (Siarq) Unicamp)De fato, seu apego à escola médica que criara em Ribeirão Preto superava qualquer ambição: por duas vezes, ao longo da década de 50, declinou o convite feito por Garcez para assumir a reitoria da USP (naquele tempo a escolha do reitor era prerrogativa direta do governador) sob o argumento de que sua faculdade de medicina ainda não estava de todo consolidada. Negava, portanto, ser contra Campinas e lastimava a animosidade dos campineiros:

— É aceitável que um homem normal seja contra outro homem, contra um time de futebol e mesmo que um habitante de uma pequena cidade seja inimigo de outra cidade vizinha por motivos esportivos ou por rivalidade de banda de música. Mas é manifestação de psicose delirante ser contra toda uma grande cidade como Campinas, com sua população culta e ativa, com suas indústrias, seu comércio e sua lavoura.

Isto soou a discurso de conciliação tardia, prontamente repudiado pelos campineiros. O fato é que, ao terminar a década de 50, Botucatu tinha a sua faculdade de medicina e Campinas, não. Na maioria dos círculos da cidade onde a idéia alguma vez teve curso, Zeferino passou a ser considerado persona non grata. A tal ponto que, ainda em 1959, quando o governador de São Paulo já era Carvalho Pinto, foi aconselhado pelo tribuno Otávio Bierrembach de Castro, seu amigo, a excluir Zeferino Vaz de qualquer comissão que estudasse os problemas de Campinas. E justificou:

— Parece que ele tem ponto de vista firmado contra a cidade.

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