| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 313 - 20 de fevereiro a 5 de março de 2006
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Negócio também é cultura
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Grupo nascido no IFCH completa 20 anos de estudos
decifrando as dimensões culturais das empresas

Antropólogos mostram que
negócio também é cultura

LUIZ SUGIMOTO

O professor Guilhermo Ruben e o pesquisador Luciano D'Ascenzi: "Os empresários são a nossa tribo" (Foto: antoninho Perri)Por que empresários necessitariam dos conhecimentos de um antropólogo? Ou, na visão dos colegas deste antropólogo, por que vestir paletó e gravata e se meter dentro de uma empresa? Já está fazendo 20 anos desde que o professor Guilhermo Raul Ruben, do Departamento de Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, decidiu ampliar o escopo tradicional da disciplina e estudar empresas e outras formas organizacionais. Ele estava de acordo com um questionamento lançado pelo antropólogo Eric Wolf: “Pode-se perguntar por que a antropologia parece ter desistido do estudo da organização, de tal forma que o tópico se encontra hoje mais discutido nos manuais de administração do que em nossas publicações?”.

Tal observação não parece ter sido muito ouvida pelo mainstream da comunidade antropológica brasileira. “Os antropólogos raramente tinham se voltado para os núcleos de poder, a fim de entendê-los. Nós quisemos estudar a dinâmica das empresas capitalistas neste contexto de globalização, quando se interconectam diversas lógicas culturais”, explica Guilhermo Ruben. “Além das diferenças culturais que as pessoas trazem para dentro da empresa, há também diferentes modelos de gestão”, acrescenta o economista e antropólogo Luciano D’Ascenzi, que defende sua dissertação de mestrado ainda este mês.

A partir do trabalho do professor da Unicamp, o grupo nasceu pouco antes de ter aprovado um projeto temático financiado pela Fapesp (“Culturas empresariais brasileiras: Estudo comparativo de empresas públicas, privadas e multinacionais”, 1992-98), quando ganhou caráter interdisciplinar, reunindo perto de vinte pesquisadores espalhados pelo país. Já produziu uma boa quantidade de trabalhos de iniciação científica, mestrado, doutorado e pós-doutorado, que envolveram os meandros de organizações como a empreiteira Odebrecht, o Banco do Brasil, Banespa-Santander, Banco América do Sul e a indústria Unilever. Mais recentemente, abriu o leque para para a administração pública e o chamado setor social, que envolve cooperativas, ONGs e fundações empresariais, além de moda e consumo.

Nesses 20 anos, o próprio Grupo de Culturas Empresarias precisou superar preconceitos. De um lado, o imaginário de empresários tementes de que antropólogos xeretando suas organizações tentassem promover uma “revolução comunista”. De outro lado, a suspeita dos acadêmicos de que esses antropólogos vendiam-se ao capitalismo. “Nunca atuamos como consultores remunerados. Não queríamos vender um produto, mesmo sabendo que era importante para uma empresa desvendar suas lógicas culturais. O interesse sempre foi acadêmico. Se há alguma coisa que queríamos oferecer para a sociedade era e é o conhecimento antropológico sobre essas realidades”, diz o professor do IFCH.

Contudo, hoje o grupo vive um momento de inflexão. Por um lado, percebeu-se que muitos profissionais de diferentes formações vendem às empresas serviços de consultoria, muitas vezes utilizando de forma extremamente superficial conceitos e metodologias próprios da antropologia, como a chamada “etnografia compartilhada”. Por outro lado, constatou-se também que o conhecimento crítico produzido pelas pesquisas etnográficas pode ajudar as empresas a repensar as suas políticas, contribuindo assim para uma intervenção mais qualificada na realidade organizacional.

“Muitas empresas atravessam atualmente complicados processos de fusão, que envolvem questões culturais. Outras estão estruturando hoje, com o apoio de ONGs e de movimentos sociais, políticas de valorização da diversidade da força de trabalho. Achamos que a antropologia tem uma contribuição a prestar nesses assuntos e nesse sentido estamos buscando uma maior aproximação com as organizações empresariais”, destaca Pedro Jaime, pesquisador do grupo. Daí, a decisão de negociar este serviço junto a empresas, com a devida intermediação da Universidade, que assim teria outra fonte de arrecadação. “Estamos convictos de que nossos trabalhos criam conhecimentos de grande qualidade”, ressalta Guilhermo Ruben.

Casa grande – Pelo menos 90% das associações entre empresas de países diferentes fracassam. Por que isso ocorre? “Nossa resposta, embora existam várias outras, é que esse fracasso passa por questões sociais, culturais e políticas que precisam ser melhor desvendadas”, observa Ruben. O pesquisador recorda o caso que o levou à antropologia empresarial, quando em 1986 solicitaram sua ajuda na conversação entre brasileiros e argentinos (seus conterrâneos, embora o professor seja naturalizado brasileiro) em uma churrascaria perto da via Anhanguera. “Eles criaram uma metalúrgica que fabrica cozinhas industriais. São pessoas lúcidas, que detêm tecnologia e dinheiro, mas não se entendiam”, explica.

Convidado a observar os passos da empresa binacional por quatro anos, Guilhermo Ruben lembra que os brasileiros queriam instalar a fábrica de cozinhas em Alphaville e o escritório e show-room na avenida Paulista, vitrine dos “bem-sucedidos”. Já os argentinos preferiam juntar fábrica e escritório em Alphaville, por causa da praticidade e dos custos menores. “Esta desavença durou três anos, tempo em que a empresa deixou de concentrar esforços nos negócios para progredir”, conta o professor. Para um antropólogo, enxergar o motivo da discórdia não foi difícil.

“No Brasil o processo de acumulação da riqueza se deu com base no trabalho escravo. No clássico de Gilberto Freyre, Casa Grande & Senzala, vemos a nítida separação entre o senhor de engenho e o trabalhador braçal. Aqueles senhores paulistas da metalúrgica não queriam se sentar junto com os trabalhadores”, observa Ruben. Já a Argentina, segundo ele, se fez rica com o gado, seguindo a lógica do ‘dono engorda o boi’ tendo a ajuda de dois ou três peões. “Vemos então que existem lógicas culturais nas dinâmicas empresariais. A cultura não aparece apenas nas vestimentas, nos rituais indígenas ou no candomblé. A cultura aparece também nos negócios”, acrescenta. Convencidos pelo antropólogo de que “negócio também é cultura”, os sócios brasileiros e argentinos acabaram por se entender, juntando fábrica e escritório em Alphaville e sobrevivendo bem no mercado.

O grupo também acompanhou a empreiteira Odebrecht, fundada por imigrantes alemães em Santa Catarina e atuante em mais de 20 países. Este trabalho resultou na tese de doutorado em ciências sociais de Alicia Gonçalves Ferreira. O presidente da empreiteira, Norberto Odebrecht, é autor de um livro traduzido em várias línguas e intitulado Tecnologia Empresarial Odebrecht (TEO), onde descreve como deve ser a metodologia de produção, da contratação do mestre de obras à construção da ponte. “Nós avaliamos a aplicação desta metodologia tanto no Brasil como em outros países, e concluímos que no Peru, por exemplo, Mas no Peru, por exemplo, a TEO não funcionava”, informa Ruben.

Metodologia - Os membros do grupo sabem que as organizações passam por grandes mudanças, em todo o mundo e em todos os setores. “O mundo globalizado trouxe questões como a fusão e a reestruturação, que são muito traumáticas. E muitas empresas ainda não sabem como lidar com esse cenário de turbulências. Muitas vezes concentram suas ações no plano ‘prático’ e esquecem das dimensões culturais e simbólicas, fatores centrais nesses processos. São essas dimensões que procuramos desvendar dentro de uma organização”, afirma Guilhermo Ruben. Ele acrescenta que, por um período prolongado, o grupo pesquisa as relações entre empregados, deles com as chefias, as condições de trabalho e as relações carnais da empresa com a sociedade e os poderes políticos. “As empresas são nossa tribo”, compara.

O samurai, assédio sexual e suicídios

No Banco América do Sul, criado por imigrantes japoneses em 1944, o professor Guilhermo Ruben testemunhou um embate entre gerações. Impressionou-se com a figura de Fujio Tachibana, presidente do banco, que o recebeu no último andar da sede em São Paulo. “Tachibana-sam é uma pessoa magnífica, um samurai, simples e de grande sabedoria, que me disse: ‘Professor, não sei o que tenho aqui embaixo. Por favor, desça e faça sua pesquisa para eu conhecer esse banco’”, recorda. Embaixo, o pesquisador observou, na mesa de captação de dinheiro, observando uma senhora issei (de primeira geração) rodeada por 42 operadores em seus terminais telefônicos.

A senhora parecia conhecer a vida de cada cliente, aprovando ou desaprovando um empréstimo diante da simples menção do nome de um patrício de Goiás ou do Pará. “Ela fazia parte da velha casta de dirigentes que defendiam a continuidade desta relação quase familiar com a clientela. Esse tratamento preferencial era estendido aos funcionários descendentes de japoneses, que gozavam de mais regalias do que os gaijins”, conta o antropólogo. A nova geração, por sua vez, pregava a adoção de novas tecnologias, campanhas para conquistar clientes fora da colônia e a paridade em relação a salários e promoções. Os jovens venceram, mas o Banco América do Sul, por conta de problemas com os créditos, acabou liquidado pelo Banco Central e vendido ao Sudameris em 1998.

Guilhermo Ruben destaca ainda o trabalho de Léa Rodrigues, sobre o impacto do programa de demissões voluntárias (PDV) no Banco do Brasil. Na ocasião, 55 mil empregados foram colocados contra a parede, com 11 dias para escolher entre trabalhar numa agência remota ou se demitir. “Foram vários casos de suicídio. Nos depoimentos dos funcionários, a pesquisadora observou uma relação de afeto com o banco que mais parecia coisa de mãe, pai, marido ou esposa. Declarações como ‘o banco me abandonou’, ‘o banco me traiu’ eram comuns. A direção destruiu os vínculos simbólicos que durante anos estruturaram a relação dos funcionários com a empresa. E fez isso de forma pouco transparente e sem nenhum ritual que amortecesse as tensões que a situação provocara”, pondera o antropólogo.

O Grupo de Culturas Empresariais pôde conferir um exemplo da diferença entre o trabalho de consultores e de antropólogos. Muitas vezes os consultores apontam em seus relatórios apenas aquilo que os contratantes querem ouvir. Isso aconteceu em uma indústria que havia contratado serviços de consultoria. “O relatório omitia barbaridades como o assédio sexual contra as mulheres funcionárias”, critica Ruben. Todavia, em seu trabalho de mestrado na mesma empresa, a pesquisadora Cátia Muniz percebeu algo de muito errado no churrasco de confraternização de final ano, gerentes e diretores promoveram votações para eleger as funcionárias com bunbuns e seios mais bonitos na festa, causando revolta entre as mulheres.

O relacionamento com as empresas tem evoluído bastante. Em Campinas prosperou uma empresa que produz terminais telemáticos, a Zetax Tecnologia, a partir da garagem da casa de um dos engenheiros associados. Certo dia, seu presidente, Marcos Eduardo Bandeira Maia, bateu à porta do Departamento de Antropologia: “Professor, nossa empresa está dando certo”, anunciou. Guilhermo Ruben lhe deu parabéns, antes de se surpreender com o pedido: “Acontece que não sabemos por que ela está dando certo. Queremos que vocês descubram”.

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