Leia nesta edição
Capa
Artigo
Fim à gasolina adulterada
Economia fluminense
Combate à exploração sexual
Para o MÍNIMO voltar a
   ser GRANDE
Guitarra brasileira
Coros infantis
Processamento do
   presunto cru
Fungos em frutas secas
Congresso de leitura
Painel da semana
Oportunidades
Teses
Estante
Exercícios na água
Língua de sinais
Ilha dos hemafroditas
 

2

Qual é o seu tipo
científico-tecnológico?



RENATO DAGNINO

Renato Dagnino é professor do Departamento de Política Científica  (Foto: Antoninho Perri)Na semana passada, para motivar meus alunos de graduação da disciplina de Ciência, Tecnologia e Sociedade a praticarem os conceitos de construção social da tecnologia, determinismo tecnológico, neutralidade da ciência etc, sugeri a eles um exercício. Tratava-se de submeter um professor, um colega ou eles mesmos, a um teste, semelhante aos que aparecem naquelas revistas que lemos nos consultórios.

Baseado na pergunta-título deste artigo, o teste admitia quatro opções de resposta dispostas segundo o gráfico abaixo, inspirado nos trabalhos dos professores Andrew Feenberg e Hugh Lacey.

O eixo vertical representa, na parte superior, a perspectiva que considera a tecnologia como neutra, isto é, livre dos valores (ou interesses) econômicos, políticos, sociais ou morais dominantes numa dada sociedade. Na parte inferior, a que a entende como condicionada por esses valores. Segundo a perspectiva neutra, o resultado material da tecnologia, um dispositivo técnico qualquer, é simplesmente uma concatenação de mecanismos causais “que pode ser usado para o bem ou para o mal”. Já para a perspectiva que entende a tecnologia como condicionada por valores, ele, enquanto entidade social, tem um modo especial de carregar valores em si próprio e a reforçá-los.

No eixo horizontal se representa, à esquerda, a perspectiva que considera a tecnologia como autônoma e, à direita, a que a entende como controlada pelo Homem. De acordo com a primeira, a tecnologia, apoiada na ciência e no método científico e em busca da eficiência crescente, teria suas próprias leis imanentes, seguindo uma trajetória linear e inexorável, governada por esse impulso endógeno. A sociedade apenas aceitaria seus impactos e tentaria tirar dela o melhor proveito. Segundo a última, a sociedade estaria em condições de decidir em cada momento como a tecnologia se desenvolverá. Dela dependeria o próximo passo da evolução dos sistemas técnicos.

A combinação das quatro perspectivas, duas a duas, dá origem aos quatro “tipos científico-tecnológicos” representados em cada um dos quadrantes delimitados pelos dois eixos.

Renato Dagnino é professor do Departamento de Política Científica

Como cada tipo científico-
tecnológico vê a tecnologia?

O teste - Qual é o seu tipo científico-tecnológico? - consistia em classificar a pessoa num dos quatro tipos. Para isso, dei como referência adicional a descrição de cada um deles reproduzida abaixo.

O primeiro tipo, que combina as perspectivas do controle humano da tecnologia e da neutralidade de valores, é o dos Instrumentalistas. Apesar de serem herdeiros do iluminismo e positivismo, eles expressam uma visão contemporânea que concebe a tecnologia como uma ferramenta gerada pela espécie humana (em abstrato e sem qualquer especificação histórica ou que diferencie os interesses de distintos segmentos sociais) através de métodos que, ao serem aplicados à natureza, asseguram à ciência atributos de verdade e, à tecnologia, de eficiência. Dado que pode atuar sob qualquer perspectiva de valor, o que garante o seu uso (e também a sua orientação) “para o bem” é algo estranho ao mundo do conhecimento científico-tecnológico e dos que o produzem: a “Ética”. Só se esta não for respeitada pela sociedade, esse conhecimento poderá ter implicações indesejáveis.

O segundo tipo, que combina autonomia e neutralidade, é o dos Deterministas. Segundo eles, sua visão decorre da interpretação do que Marx escreveu no final do século 19. O avanço contínuo e inexorável da tecnologia (ou, no seu jargão, o desenvolvimento das “forças produtivas”) seria a força motriz da história que, pressionando as “relações técnicas e sociais de produção”, levaria a sucessivos e mais avançados “modos de produção”. Para eles, a tecnologia não é controlada pelo Homem; é ela que, utilizando-se do avanço do conhecimento do mundo natural, verdadeiro e neutro, molda (e empurra para um futuro cada vez melhor) a sociedade mediante as exigências de eficiência e progresso que ela estabelece. A tecnologia que serve ao “capital” e oprime a “classe operária” é a mesma que, apropriada por ela depois da “revolução”, a “liberaria” e construiria o ideal do “socialismo”.

O terceiro, que entende a tecnologia como dotada de autonomia e intrinsecamente portadora de valores, é o dos Substantivistas. Eles compartilham a crítica do marxismo tradicional feita pela Escola de Frankfurt a partir da década dos sessenta. Segundo ela, enquanto a idéia de neutralidade atribui à tecnologia a busca de uma eficiência (abstrata mas substantiva), a qual pode servir a qualquer concepção acerca do modo ideal de existência humana, o compromisso com a concepção capitalista dominante (que embora pareça natural e única, é ideologicamente sustentada), faria com que seus valores fossem incorporados à tecnologia (capitalista). Em conseqüência, ela não poderia ser usada para viabilizar propósitos de indivíduos ou sociedades que patrocinem outros valores. Ela carregaria consigo valores que têm o mesmo caráter exclusivo das religiões que estipulam as crenças, orientam a conduta e conformam o inconsciente coletivo de grupos sociais. A tecnologia capitalista tenderia inevitavelmente a se afinar com os valores imanentes da “sociedade tecnológica”, como a eficiência, o controle e o poder. Valores divergentes – alternativos - não conseguiriam nela sobreviver ou prosperar, tal o poder de determinação da tecnologia.

Os Substantivistas (radicais e pessimistas) se diferenciam dos Deterministas. Estes, ao aceitar que a tecnologia, por não ser portadora de valores, é o servo neutro de qualquer projeto social, idealizam um final sempre feliz para a história da espécie.

O quarto tipo, por designar um grupo em formação não tem ainda um nome. Como os que estão formulando o conjunto de idéias que eles defendem o chamam de Teoria Crítica, denominamos esse tipo de Críticos. Eles combinam as perspectivas da tecnologia como humanamente controlada e como portadora de valores. Concordam com o Instrumentalismo (a tecnologia é controlável), mas reconhecem, como o fazem os Substantivistas, que os valores capitalistas conferem à tecnologia características específicas, que os reproduzem e reforçam, que implicam conseqüências social e ambientalmente catastróficas, e que inibem a mudança social. Mas, ainda assim, vêem na tecnologia uma promessa de liberdade. O problema não estaria no conhecimento como tal, mas no pouco êxito que temos tido até o momento em criar formas institucionais que, explorando a ambivalência (graus de liberdade) que possui o processo de concepção de sistemas tecnológicos e resignando-se a “não jogar a criança com a água do banho”, permitam o exercício do controle humano – coletivo e socialmente equânime - sobre ela.

Segundo os Críticos, a tecnologia atualmente existente (ou dominante) “emolduraria” não apenas um estilo de vida, mas muitos outros possíveis. Cada um refletindo diferentes escolhas de projeto tecnológico e diferentes extensões da mediação sócio-técnica. Todos os quadros de um museu têm molduras, mas não é por isso que eles estão ali. As molduras são limites e suportes para o que elas têm em seu interior. A eficiência é uma moldura (valor formal) que pode carregar tipos diferentes de valores substantivos. Para a Teoria Crítica, a tecnologia não é vista como ferramenta, mas como suporte para estilos de vida.

A tecnologia não é percebida como uma ferramenta capaz de ser usada para qualquer projeto político como pensam, otimisticamente, os Deterministas. Nem como algo que deve ser usado e orientado pela “Ética”, como ingenuamente querem os Instrumentalistas. Tampouco como um apêndice indissociável de valores e estilos de vida particulares, privilegiados em função de uma escolha feita na sociedade, como os Substantivistas. Segundo eles, desde que “reprojetada” e submetida a uma “instrumentalização secundária” com características “democráticas”,e mesmo a uma “racionalização subversiva”, ela pode servir como suporte para estilos de vida alternativos. Abre-se, assim, um largo espectro de possibilidades para pensar estes tipos de escolhas, questioná-las, e submeter sua tradução em projetos e desenvolvimentos tecnológicos a controles mais democráticos.

E então, qual é o seu tipo tecnológico? Se quiser entrar na nossa estatística, responda pelo e-mail: mailto:rdagnino@ige.unicamp.br.



SALA DE IMPRENSA - © 1994-2005 Universidade Estadual de Campinas / Assessoria de Imprensa
E-mail: imprensa@unicamp.br - Cidade Universitária "Zeferino Vaz" Barão Geraldo - Campinas - SP
Fotos: Antoninho PerriFoto: Divulgação(Foto: Antoninho Perri)(Foto: Antoninho Perri)