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A auto-organização e os
caminhos da consciência

O professor irlandês J. A. Scott Kelso fala
sobre o funcionamento do cérebro e de movimento

Kelso: "Uma teoria adequada da mente terá que incorporar motivos, sentimentos afeto e emoção de alguma forma"Um dos ramos mais recentes da ciência cognitiva, a auto-organização ainda é pouco estudada no Brasil. Na entrevista que segue, o professor irlandês J. A. Scott Kelso, da Universidade Atlântica da Flórida, considerado um dos pioneiros dos estudos na área, fala sobre o funcionamento do cérebro e de movimento. Kelso, que esteve recentemente na Unicamp participando do VII Colóquio Internacional Michel Debrun: Novas Tendências das Ciências Cognitivas, explica por que a auto-organização pode ser útil em diferentes terrenos do conhecimento e na compreensão da consciência.

JU - Como o senhor define ciência cognitiva e como a sua pesquisa se encaixa nela?

Kelso - Uma resposta simples seria que a ciência cognitiva busca compreender a estrutura da mente. É a ciência de como a mente funciona. Isto provavelmente é muito simples e perigoso, porque parece assumir a existência de uma distinção básica entre a mente e o físico – uma mesa e nossa idéia de uma mesa são fundamentalmente diferentes. Pode-se ver que isto nos conduz a básicas questões filosóficas e epistemológicas. Nós conhecemos nosso mundo ou somente nossa representação dele? Deixando este problema de lado, por um momento, eu penso que as ciências cognitivas mais centrais, pelo menos quando o campo estava se formando no início dos anos 80, são a psicologia, ciência da computação e lingüística.

JU - E nos dias de hoje?

Kelso - Eu estou falando de psicologia cognitiva em particular, como os seres humanos percebem, atendem, aprendem, se lembram, tomam decisões e agem sobre eles mesmos e assim por diante -como eles processam informação no jargão da computação. De fato, o esforço para projetar máquinas inteligentes de um lado e a demanda para descobrir os algoritmos ou regras que podem estar subjacentes à percepção, cognição e ação têm tido um papel importante na definição da ciência cognitiva, da mesma forma que os avanços no estudo da linguagem. Ainda outras ciências, tal como a antropologia, que estuda os seres humanos no contexto da evolução, têm fornecido um pano de fundo cultural para as ciências cognitivas. E naturalmente, e acima de tudo se encontra a filosofia.

JU -O senhor poderia detalhar qual seria o papel desempenhado pela psicologia nesse contexto?

Kelso - Grande parte dos psicólogos que estavam originalmente envolvidos na ciência cognitiva trabalham, hoje em dia, na neurociência cognitiva, que lida, em poucas palavras, com a maneira como o cérebro produz cognição e comportamento. A neurociência cognitiva freqüentemente envolve técnicas de imagens não invasivas do cérebro (em humanos, pelo menos) tal como imagens funcionais de ressonância magnética (functional magnetic resonance imaging - FMRI) e eletroencefalografia (EEG). De mesma forma, um campo que está crescendo, chamado neurociência computacional, busca desvendar os algoritmos de base neuronal que dirigem o comportamento em múltiplos níveis, da célula para outros níveis, e implementá-los computacionalmente.

JU - Como o trabalho desenvolvido pelo senhor se insere na interface destas disciplinas?

Kelso - Quero compreender como os seres humanos (e os cérebros humanos, individual ou conjuntamente) coordenam o comportamento intencionalmente. Como o cérebro funciona? E qual a sua relação com a maneira como as pessoas se comportam. O que acontece quando o cérebro não funciona, como ocorre em muitas disfunções neurológicas que afligem a sociedade. Muitos concordariam que é a coordenação entre regiões especializadas do cérebro que dá suporte à nossa capacidade de atender, perceber, pensar, aprender, relembrar, decidir e agir. Mas qual é a natureza desta coordenação e como ela deve ser entendida? Há mais de 20 anos, eu e meus colegas estamos desenvolvendo uma nova fundamentação para a compreensão da coordenação no cérebro e comportamento que é chamada de dinâmica da coordenação. A dinâmica da coordenação, além de se apoiar nas disciplinas citadas anteriormente, contribui com idéias de como padrões são formados em sistemas complexos que existem na natureza e como estes padrões de coordenação persistem, adaptam e mudam – em outras palavras, a dinâmica dos padrões.

JU - E a que conclusões o senhor chegou?

Kelso - Eu penso que são estes padrões coordenados e a evolução deles no espaço e tempo é que contêm o segredo do que o cérebro faz quando as pessoas percebem, lembram, aprendem e agem. Tais funções freqüentemente emergem de processos internos, conscientes ou inconscientes, não somente respostas a estímulos. Para a dinâmica da coordenação, a coordenação dos neurônios existentes no cérebro e as ações coordenadas de animais são oriundas, basicamente, do mesmo tipo de dinâmica. A integridade da mente e do físico é preservada porque ela nunca foi desafiada.

JU - Como o senhor explicaria, em linhas gerais, o que é auto-organização?

Kelso - É um termo que infelizmente vem sendo usado de modo abusivo. Auto-organização se refere à formação espontânea de padrões e mudança de padrões em sistemas complexos formados por um grande número de componentes individuais. Um bom exemplo é o próprio cérebro, com literalmente bilhões de neurônios e milhões de conexões entre eles e muitas substâncias neurotransmissoras que são necessárias para os neurônios funcionarem. Pode-se dizer que é um sistema complexo em dois sentidos. Primeiro, a matéria biológica, por si só, é complexa e heterogênea. Segundo, naturalmente, é que os padrões dinâmicos de comportamento que surgem devido à interação das muitas partes são também complexos, variando no espaço e no tempo.

JU - O senhor trabalha com a perspectiva de que estes sistemas complexos se organizam?

Kelso - Sob certas condições, as várias partes interagem umas com as outras e os ambientes em volta delas para formar padrões de coordenação dinâmica. Observe, não existe um "organizador" dentro do sistema ordenando as partes e dizendo a elas o que fazer para produzir padrões. Nós podemos dizer que a organização é descentralizada. Em uma escola de peixe, por exemplo, nenhum peixe individualmente é o diretor executivo que comanda os outros e diz a eles como e onde nadar. Sistemas auto-organizados são como uma orquestra sinfônica que toca sem um maestro.

JU - Qual seria, então, o principal mecanismo de auto-organização?

Kelso - Quando condições externas e internas variam, as muitas partes começam a cooperar umas com as outras. Então, quando as circunstâncias ultrapassam um limiar crítico, padrões adaptados de comportamento emergem sem qualquer instrução. Este é um tipo de transição de fase. Uma forma de organização se torna instável, e uma nova organização que melhor se encaixa às circunstâncias emerge. Algumas pessoas se referem a esta auto-organização como emergência, mas não existe força mística por trás dela. É somente como as coisas são. Ironicamente, não existe nenhum agente especializado que contém ou prescreve a ordem que emerge.

JU - Um tópico muito discutido hoje por filósofos e psicólogos é a consciência. Pode o conceito de auto-organização nos auxiliar a compreendê-la?

Kelso - A resposta é sim e eu acredito que ela pode. Como eu disse acima, auto-organização, a formação espontânea de padrões em sistemas abertos, não tem o "self" no sentido de algum agente interno dizendo às partes o que e quando fazer algo. Assim, de onde vem a consciência básica - o sentido de si mesmo? Meu trabalho e de outros cientistas em laboratórios pelo mundo afora tem demonstrado que as formas básicas de movimentos coordenados são auto-organizadas. Isto é, não é necessário um programador específico dentro do sistema para controlar um grande volume de neurônios, músculos e articulações envolvidas no curso de ações típicas como andar e falar. Processos evolucionários com restrições para a auto-organização, junto com a aprendizagem e desenvolvimento têm se preocupado com estes aspectos. Considere o grande repertório de movimentos espontâneos que nós todos apresentamos ao nascer. Recém-nascidos podem fechar a mão, chutar com as pernas, sugar e assim por diante. E existe muita evidência mostrando que mesmo em estado embrionário os neurônios motores se desenvolvem muito antes de seus correspondentes sensoriais. Como Goethe disse "um angfang war die tatff" ("no início existiam os movimentos").

JU - Como isto está relacionado com a consciência?

Kelso - Num determinado momento a criança se compenetra, através destes movimentos e sensações que deles emanam, que estes são seus próprios movimentos. Eles pertencem a ela, e nenhum dispositivo externo está fazendo com que as suas pernas se movam. Se alguém amarrar um barbante no seu pé e a outra ponta num móbile, a criança se compenetrará que são seus chutes que fazem como que o móbile se mova de acordo com a sua vontade.

JU - Quer dizer que o repertório de movimentos pré-determinados com os quais todos nós nascemos é auto-organizado e permite que as atividades aconteçam antes de nós termos controle sobre elas?

Kelso - Sim. Nós, humanos sabemos que somos nós e somente nós que controlamos os movimentos de nossos corpos. Isto sendo verdade, as tendências de coordenação espontânea (auto-organizada) residem nas origens do poder da consciência. Em parafraseando um filósofo amigo meu, as coordenações espontâneas são "a mãe de toda cognição" e já existiam antes de qualquer mente dizer "eu". Este conceito de "eu" então emerge de processos espontâneos, auto-organizadores, e sendo este "eu" que dirige a ação humana. Este "eu" é o eu consciente. Nós literalmente vimos a nos descobrir através de movimento. No meu ver, ações coordenadas auto-organizadas residem nas origens da consciência. A convicção íntima (consciência) de si mesmo.

JU - O senhor acredita, então, que a habilidade motora humana oferece uma visão da consciência em geral?

Kelso - Sim. Por exemplo, nós assumimos que o andar nos foi dado porque, como dizemos nós, é "uma habilidade automática" - na maior parte do tempo nós não estamos conscientes do que ocorre à nossa volta. Novas habilidades devem ser aprendidas, e isto pode ser um trabalho tedioso que envolve uma boa dose de esforço consciente. A maneira como uma habilidade se torna automática nos dá aparentemente um limite ou uma zona de transição entre o consciente e o não tão consciente, uma transição que pouco conhecemos. Ela também nos dá um ponto de referencia para comparar o estado consciente. Naturalmente, o que foi dito aqui não é tudo o que existe sobre o tópico da consciência.

JU - Algumas pessoas dão a entender que auto-organização é um conceito importante que explicaria todas as coisas sobre a mente. Você acha que existem limites a áreas nas quais o conceito pode ser aplicado?

Kelso - Existem limites para todo conceito. Mas noções de auto-organização estão começando agora a ser completamente apreciadas e as limitações de conceito para as ciências cognitivas têm ainda que ser sentidas. Quando nos pensávamos que a mente seria somente um dispositivo para manipulação do símbolo (e muitos ainda fazem isto por boas razões), grande ênfase foi colocada sobre a noção de programa. O cérebro era uma estrutura física, operada por um programa. Tem havido sempre grande interesse na analogia entre os computadores e o cérebro, especialmente por aqueles que trabalham em inteligência artificial, um ramo da ciência cognitiva.

Com a atenção sendo colocada cada vez mais no que o cérebro de fato faz durante os processos cognitivos típicos como percepção, atenção, memória e assim por diante, a ciência cognitiva está demonstrando uma maior apreciação da dinâmica complexa da cognição que varia no tempo. Desta forma, a mente como um computador manipulador de símbolo de algum tipo parece ser insuficiente por si só. Se pensarmos que o cérebro é um sistema dinâmico evoluindo, auto-organizado, também pode ser insuficiente por si só, embora ainda é muito cedo para dizer isto. Por último, minha projeção é que nós teremos que ter uma melhor compreensão da relação complementar entre símbolos e sistemas dinâmicos auto-organizáveis. O cérebro apresenta uma sutil composição de duas tendências.

JU - Quais seriam?

Kelso - Uma é a tendência para áreas específicas do cérebro expressar as funções individuais localizadas para fazer a tarefa que foi projetada. A outra é a tendência para coordenar com outras áreas do cérebro para executar uma tarefa cognitiva específica. Estas duas tendências caminham juntas ao mesmo tempo. Eu acredito que existe uma razão para isto. Quando uma pessoa atende a algum sinal no ambiente, seu cérebro entra em um estado coeso de oscilação. Partes do cérebro se entrelaçam eventualmente. Isto permite que o cérebro crie informação. A ciência cognitiva tem enfatizado como nós processamos informação, mas de onde a informação vem? Como ela é criada? Eu acredito que a auto-organização fornece uma dica.

JU - Na sua opinião, quais são as perspectivas para as ciências cognitivas no século 21?

Kelso - Eu penso que falando de modo prático a conexão que a ciência cognitiva tem tido com as ciências da computação e da informação continuará, assim como a relação entre as ciências cognitivas e as neurais. Questões do afeto e emoção assumem um papel maior do que anteriormente pensado na cognição e estão sendo visitados. Presentemente, a mente modelada pela ciência cognitiva nunca é obscurecida pela felicidade, tristeza, depressão, ou ansiedade. Uma teoria adequada da mente terá que incorporar motivos, sentimentos afeto e emoção de alguma forma. Em resumo, cognição e emoção são expressas através do cérebro e cérebros comunicando uns com os outros. O lado social da cognição terá que ser encarado.

JU - E o lado computacional?

Kelso - Atividades como jogar xadrez e diagnósticos médicos podem ser feitos no seu próprio computador. Por outro lado, para alguma coisa aparentemente simples como andar e mascar um chiclete ao mesmo tempo ninguém escreveu um programa para isto. O que é que está acontecendo? Todos os computadores são sistemas dinâmicos, eles mudam de estado na forma especificada pelos programas que são executados neles. Mas nem todos os sistemas dinâmicos são computadores. O clima, por exemplo, é um fenômeno natural. E o cérebro? Também é uma sistema dinâmico, mas é um computador? Se a resposta é não, então o que ele é? Em vez de falar sobre inteligência artificial, eu penso que mais atenção será centrada em inteligência natural. Como podemos construir máquinas que são naturalmente inteligentes? Fazer isto será um grande desafio, talvez impossível de alcançar. Mesmo assim, maior atenção dada a como organismos em seus ambientes passam a exibir comportamentos inteligentes parece ser um passo na direção certa. Organismos e meio ambiente formam um par complementar, um sistema dinâmico acoplado. Este é um tema em meu novo livro, que é chamado The Complementary Nature (desculpem pela propaganda).

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