Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 257 - de 28 de junho a 4 de julho de 2004
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Maestro português que ministrou oficina na
Unicamp diz que mercado está cada vez mais competitivo


Globalização dá o
tom da música contemporânea

O maestro português Osvaldo Ferreira fala aos músicos da Sinfônica da Unicamp: Brasil é mercado emergente (Foto: Antoninho Perri)A qualidade é hoje um pré-requisito para aqueles que pretendem seguir a carreira de músico. A opinião é do maestro português Osvaldo Ferreira, que ministrou, na semana passada, uma oficina para estudantes de regência na Unicamp. O encerramento do curso acontece dia 28 (segunda-feira) com um concerto da Sinfônica da Unicamp, que será regida por ele no Teatro Castro Mendes (20h30). Na entrevista que segue, o maestro fala das perspectivas da música erudita, avalia o músico brasileiro e fala do papel do regente num mercado cada vez mais competitivo.

Álvaro Kassab

Jornal da Unicamp – Quais são, na sua opinião, as perspectivas da música erudita?
Oswaldo Ferreira – O momento é um pouco complicado, não porque a música deixou de ter interesse. Não é isso que está em causa, mas porque ela está encontrando algum problema em justificar os orçamentos gigantescos. Hoje em dia, na Europa e nos Estados Unidos, os projetos ou são bons ou não têm sustentação. Ninguém vai bancar uma orquestra que não funciona bem, seja sob o ponto de vista do orçamento público do Estado, seja do ponto de vista do patrocinador privado. As empresas não querem jogar o seu dinheiro numa instituição que não funciona. Todos querem ver o dinheiro associado a algo que dê retorno ou pelo menos justifique uma imagem de qualidade. Os patrocinadores hoje estão investindo sobretudo no esporte. E, mesmo dentro do esporte, mais no futebol, porque é o que tem mais visibilidade. Trata-se de um investimento que vai ter retorno. Na cultura, quando você pensa num cenário como o europeu, ele está diretamente ligado à tradição, com o próprio patrimônio cultural de cada país. O que está em jogo cada vez mais é a qualidade.

Os contratos não são assinados com as orquestras, mas sim com os regentes

JU – Quais seriam os parâmetros?
Ferreira –Neste momento, as boas orquestras e os bons agrupamentos, como um quarteto de cordas ou um bom coral, justificam plenamente o investimento público ou privado. Mas, de fato, não há lugar neste momento para coisas que existiam no passado, entre as quais pequenas orquestras, coros amadores, grupos semi-profissionais etc. Isso está tudo acabando. Ou o público quer o melhor, ou não quer nada.

JU – O senhor teve oportunidade de trabalhar com regentes consagrados, como o caso de Claudio Abaddo. Até que ponto a popularidade desses maestros acabou influenciando nesse conceito de qualidade?
Ferreira – Para estabelecer um paralelo com outras atividades, acredito que o mesmo acontece com o esporte. Um bom treinador de futebol, por exemplo. É quase a mesma tarefa. O trabalho de um diretor artístico não começa e nem acaba somente no momento em que está regendo ou ensaiando a orquestra. É suposto esperar do diretor artístico que tenha boas idéias, que lance uma base de trabalho e que dê um direcionamento para a orquestra que vai não só causar impacto no público – seja pela originalidade da programação, seja pelas propostas e criatividade – mas que da mesma forma vai ser capaz de cativar o patrocinador. E isso é fundamental. Há diretores que ganham muito dinheiro. Algumas pessoas contestam isso, mas curiosamente eles fazem entrar mais dinheiro do que o que custam. E aí, numa lógica economicista, os gastos com esse regente passam a ser justificados. Ao contrário do que muita gente pensa, as grandes editoras mundiais da música clássica também estão em crise. Hoje em dia, a pirataria predomina. Mas, mesmo assim, os contratos não são assinados com as orquestras, mas sim com esses regentes. Por isso, as grandes orquestras estão atrás desses regentes, com quem os contratos são firmados. Se o regente assina um contrato com uma gravadora, várias orquestras vão estar interessadas porque o nome dessas orquestras vai aparecer na capa do CD. E algum dinheiro vai sobrar da venda desse trabalho. É assim que as grandes orquestras se tornam conhecidas. Aconteceu isso com as Orquestras de Oslo, de Helsinque e de Glasgow. Ou seja, cidades de “segundo ou terceiro plano” na Europa passaram a ter orquestras que apareceram no mercado discográfico e nas revistas internacionais. Isso porque os regentes, jovens e ambiciosos, transportaram essas orquestras à dimensão dessa mesma ambição pessoal.

JU – Até que ponto a nova ordem mundial tem um peso nessa lógica economicista?
Ferreira – Não podemos fugir desse monstro chamado globalização, por mais que queiramos. Um dia todos terão um computador em casa. Hoje se sabe o que acontece nos pontos mais remotos do planeta. Não podemos fugir dessa realidade. A ciência e a arte têm evoluído, sobretudo sob o ponto de vista técnico, a uma velocidade muito grande. Essa qualidade que você tinha 15 anos atrás somente em países desenvolvidos como Alemanha, Suíça e Suécia, já tem na Grécia, em Portugal, na Irlanda e nos países periféricos. Na Comunidade Européia, há antigos países da periferia que estão fazendo coisas melhores do que nos países tradicionais, que experimentam hoje até uma certa estagnação. Isso é fruto da globalização. Volto a fazer uma comparação usando o esporte. Hoje um treinador da maior qualidade do Brasil pode treinar uma seleção africana que chega na Copa do Mundo e eventualmente pode ganhar do Brasil. Isso aconteceu com a França, que foi derrotada por jogadores do Senegal, a maioria deles radicada no futebol francês. Acontece também na música.Vinte anos atrás talvez isso seria impossível. Vivemos integrados nessa aldeia global. Quem não pegar esse trem, não vai conseguir sobreviver.

As pessoas não podem deixar de pensar que a música erudita é entretenimento

JU – O que o futuro reserva para os pequenos agrupamentos de músicos?
Ferreira – Uma boa orquestra de câmara tem hoje o mesmo espaço das grandes orquestras de qualidade. Há uma maior especialização, as pessoas tendem cada vez mais a buscar a qualidade. Música tem uma especificidade: enquanto o músico está em forma, ele dá conta do recado. Ele tem que atingir parâmetros técnicos muito elevados. Sua aprendizagem deve começar quase depois dos primeiros passos, de maneira que esteja pronto para tocar em qualquer orquestra aos vinte e poucos anos. O mercado é cada vez mais competitivo.

JU – E no caso brasileiro?
Ferreira – Há muito por fazer neste país. Vai ser um mercado absolutamente emergente. Vocês talvez não tenham consciência disso. Para nós que vivemos em países pequenos, olhamos o Brasil como um continente. Há um número tão grande de cidades densamente povoadas, que o músico pode fazer um percurso somente dentro do Brasil durante dois anos sem repetir um concerto.

JU – E no que diz respeito à qualidade?
Ferreira – Acho que precisa dar um salto qualitativo, mas acredito que nos próximos anos isso vai acontecer na música erudita. Na música popular, há muitas décadas o Brasil dá as cartas; ele já conquistou o mercado internacional. Encontrei músicos jovens com muito talento e potencial. Em alguns casos e em alguns instrumentos específicos, o que eu vi – e é isso que tenho falado para eles –, é que como mercado é muito grande e quase não consegue absorver a todos, muito cedo eles abandonam os estudos e não exploram até o limite as suas capacidades. Isso porque eles conseguem arrumar emprego com pouco, com um nível que ainda não é ideal em termos internacionais. Mas isso é fruto da falta de competitividade. Quando o mercado começar a ficar um pouquinho saturado, você vai à procura dos melhores. Com isso, os estudantes vão cada vez mais levar esse trabalho até o fim para que sejam profissionais mais competentes e habilitados a tocar qualquer coisa.

JU – Por que as manifestações de vanguarda da música erudita demoram para ser assimiladas pelo público, ao contrário de outras modalidades artísticas?
Ferreira – A música participou de todos os movimentos renovadores, como o impressionista, expressionista e cubista, para ficar em alguns exemplos. Mas o público de fato não consome da mesma forma. É um processo muito mais lento na música do que nas outras artes. O público quer alguma coisa que soe “docinho” nos ouvidos. Aos olhos, por exemplo, você pode ter uma pintura agressiva. O público consome, acha que tem valor. Na música, quando aparece algo que não soe afinadinho, como as pessoas estão habituadas, o público se recusa a consumir. É bem mais complicado. Por outro lado, nós músicos sabemos que sempre foi um pouco assim. Não podemos esquecer que muitos músicos foram revolucionários em sua época. E as pessoas demoraram algum tempo, às vezes décadas, para aceitar o que eles fizeram. Dentro do século 20, tudo aquilo que foi feito antes da década de 50, já foi digerido. O que vem depois começa agora a ser ouvido. Essas obras já entram em repertórios. O certo é que os artistas vivem e criam com base na visão. São de alguma forma visionários e não têm propriamente problemas práticos para resolver. Nós estamos habituados ao pragmatismo, esperamos que tudo tenha uma explicação. Mas a arte não tem que ter forçosamente uma explicação. Talvez por isso demore um pouco mais para ser digerida. Não penso que a música feita em 2004 tenha menos valor do que aquela feita em 1954 e em 1904. E hoje há uma grande vantagem: existem muito mais compositores e muito mais obras do que havia no passado. Vejo com otimismo esse futuro.

JU – Por que na música popular essa assimilação é mais imediata?
Ferreira – Talvez seja mais imediata, mas a música pop não é tão vanguardista como as pessoas pensam. É sempre a mesma estrutura, com meia dúzia de acordes que todo mundo sabe digerir. Já na música dita erudita não é assim. Às vezes, nem sequer têm um formato. A maior parte do público quer coisas idiotas. As pessoas não podem deixar de pensar que a música erudita é entretenimento. Quem quiser intelectualizar a música, e só ficar desse lado, está incorrendo num erro tremendo. A música foi criada e sempre foi pensada para ser entretenimento. É preciso continuar a ser pensada dessa forma. Temos que ter a sensibilidade à flor da pele. Isso é que vale a pena.

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