Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 257 - de 28 de junho a 4 de julho de 2004
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Pagu: a história da catadora
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  contemporânea
Café sem cafeína

 

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Arquivo Edgard Leuenroth recebe doação de fotografias e documentos
originais de Patrícia Galvão e Geraldo Ferraz encontrados em rua de São Paulo


A incrível história da catadora
de rua que resgatou Pagu do lixo

ÁLVARO KASSAB


Retrato de Patrícia Galvão, a Pagu, feito pelo fotógrafo Mauro. (Foto: Arquivo Edgard Leuenroth)A sala da casa da catadora Selma Morgana Sarti é um relicário de objetos recolhidos do lixo. Na parede, quadros de estilos variados; nos pequenos armários e nas cristaleiras, dezenas de miniaturas, estatuetas e vasos; no chão, um tapete vistoso e multicolorido. Na verdade, a casa toda guarda tralhas amealhadas nas andanças. O jardim, debruçado sobre a calçada de uma das muitas ladeiras íngremes do bairro paulistano do Butantã, é formado por antúrios, gerânios e samambaias desprezados pelas floriculturas. Os caprichos de Selma não se restringem à poda das plantas e ao restauro das aves ornamentais de madeira dispostas entre as flores. Num dos muros laterais da casa térrea, quase geminada, dezenas de miúdas pedras foram cuidadosamente enfileiradas numa pequena depressão. A colecionadora de pedras (que na infância já colecionara selos) é dotada da sagacidade típica dos caçadores de tesouro. Um deles, encontrado de uma maneira insólita, acaba de ser doado por ela ao Arquivo Edgard Leuenroth, daCarteira funcional do jornalista Geraldo (Fotos: Arquivo Edgard Leuenroth) Unicamp (AEL): um conjunto de fotos e documentos originais da escritora, jornalista e militante política Patrícia Galvão, a Pagu, e de seu último companheiro, o jornalista e crítico Geraldo Ferraz.

“Foi emocionante esse meu achado”, comemora Selma, que se deu conta de sua importância na hora de separar o material recolhido para a reciclagem. Na mesma massa documental, além das fotos, dezenas de recortes de jornal sobre a trajetória de Pagu despertaram a atenção da catadora, que leu atentamente os relatos sobre a militante e escritora. Desconfiada de que estava com algo importante na mão, decidiu pedir o parecer de uma ex-vizinha, a estudante Cristina Dunaiva, aluna de doutorado em história da arte no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp (IFCH). A estudante imediatamente mensurou o tamanho da descoberta, entrando em contato com um colega de curso, o doutorando Marcelo Chaves, que fez a ponte com o AEL . Os recortes viraram sucata, mas as fotos e os documentos foram depositados na Unicamp. “A ignorância deixa a gente passar um monte de coisas importantes. Você já imaginou quantos catadores existem e quantas coisas foram destruídas? ”, indaga Selma, que “fugiu da escola” no 1º colegial.

Selma ensaia uma teoria sobre a peça pregada pelo acaso. “Acho que a Pagu pensou: ‘é essa louquinha mesmo que eu vou catar’. Ela não queria que esses documentos fossem para outro lugar. Sou espírita, acredito que isso tinha de parar nasEscoltada por políciais, Pagu, deixa presídio para julgamento, em 1936(Fotos: Arquivo Edgard Leuenroth) minhas mãos para não ir para o lixo. Tudo na vida tem um significado”. Muitos, no caso da catadora. Acossada pelo desemprego, Selma foi à luta depois de ser demitida em 1994 do cargo de secretária de um médico cujo consultório funcionava numa travessa da avenida Paulista. De lá para cá, a vida de Selma deu uma guinada.

Pouco restou dos tempos de carteira assinada no chamado coração financeiro do país. A catadora cumpre hoje uma rotina da qual se orgulha. Com um carrinho de supermercado, caminha das 2 às 6 da madrugada à cata de material reciclável nas do Butantã. Algumas vezes, diz, bate na rodovia Raposo Tavares e volta. Enumera as vantagens da saída noturna: menos gente, pouco trânsito e, lógico, mais lixo nas ruas. Ouvindo tiros ao longe, percorre em média oito quilômetros diários, recolhendo vidros, metais, ferros e papéis. Foi assaltada uma única vez porque o ladrão pensou que ela havia acabado de sair de um supermercado. “Ladrão que é ladrão sabe que você não interessa. Já os maloqueiros são perigosos, estão a fim de bagunçar”. Deu de cara com um deles ao colocar a mão numa caçamba que escondia um toca-fitas jogado pelo rapaz. Escapou ilesa do episódio depois de convencê-lo de que estava trabalhando na garimpagem. Esse exercício de coragem rende em média cerca de R$ 250 por quinzena, período despendido para juntar de 600 a 700 quilos de material reciclável.

Acumular, nem pensar. O dinheiro, diz a catadora, é suficiente para sustentar o filho Jefferson, de 7 anos, e para tocar a casa, onde moram também a mãe, um sobrinho pequeno e duas irmãs. Uma delas, Eliane, também sobrevive do lixo. A aversão ao desperdício, à ostentação e ao consumismo transcende o fato de conviver com as sobras. A história de vida de Selma, descontado o desemprego, fortaleceu suas convicções. O pai, um tintureiro que ia diariamente de bicicleta do Butantã ao Embu, local do emprego, foi explorado por um parente próximo, também seu patrão. Perdeu tudo, revela a contadora, só ficando com a casa e com um terreno em Cotia, mais tarde vendido. Os efeitos da derrocada financeira foram devastadores. Depois de perder o pai, Selma foi obrigada a enfrentar a morte de dois irmãos, ambos assassinados. “Eles nunca se conformaram com o que aconteceu com o meu pai.Selma com o carrinho das andanças da madrugada (Foto: Antoninho Perri) Acabaram se metendo com drogas, com gente errada. Comecei a entender que é preferível você não ter dinheiro. É preciso ser útil de alguma forma, mas sem essa de acumular”, prega.

Militância – Perdas assimiladas e com um filho para criar, Selma tratou de entender todos os processos da reciclagem do lixo. Encorajada por um grupo de biólogos, mergulhou na cadeia produtiva de um negócio que, segundo estimativas oficiais, coloca 10 mil carroceiros nas ruas da capital paulista todos os dias. Em pouco tempo, passou a desenvolver um trabalho de conscientização ambiental. Primeiramente, no próprio Butantã, onde nasceu e é conhecida pela maioria dos moradores. Em seguida, implantou projetos de reciclagem em escolas públicas da Grande São Paulo. A tarefa não foi fácil, a começar do toque de recolher imposto por traficantes em bairros e municípios esquecidos pelo poder público. De chofre conta por onde passou: Itaquaquecetuba, Poá, Ferraz de Vasconcelos, Campo Limpo, Taboão da Serra e Suzano. “A carência era tão grande que, na maioria das escolas, as Associações de Pais e Mestres (APM) estavam falidas”.

Selma e seus amigos conseguiram, com a ajuda de professores, envolver os alunos em projetos que transformaram o dia-a-dia de jovens que viam no ócio a única opção. A fórmula adotada era simples: com o material derivado do lixo reciclado, os estudantes começaram a desenvolver trabalhos artesanais para ser vendidos nas comunidades. Metade do dinheiro obtido ficava com o aluno, a outra era investida na APM. Paralelamente, depois de encontrar – no lixo – um livro com uma relação detalhada de ONGs envolvidas com escolas públicas, Selma mostrou a diretores de estabelecimentos a importância do contato com organizações. Muitas das escolas, revela, foram equipadas com computadores, para ficar num exemplo. O trabalho de reciclagem continua em todos os locais em que foi implantado o projeto. Hoje, desenvolve seu trabalho no Colégio de Aplicação da USP, onde estuda seu filho.

Altruísmo? Não, a julgar pelas idéias que povoam a cabeça de Selma, que não seAo lado de Elaine Zanatha, Selma assina a doação do material (Foto: Antoninho Perri) imagina mais longe do lixo. “Reciclar não é vender para o ferro-velho. Vivemos num país que ignora os benefícios do reaproveitamento”, argumenta. Lembra que, desde os tempos de secretária, sabia de um prédio na avenida Paulista cuja manutenção era bancada por recursos obtidos do lixo recolhido no edifício. A falta de consciência da população e as poucas iniciativas do poder público são dois dos fatores apontados pela catadora como entraves para que o negócio ganhe impulso. “A Prefeitura de São Paulo, por exemplo, cobra uma taxa para evitar a transferência do aterro sanitário, que já está saturado, mas não dá o suporte necessário para a reciclagem. O município poderia ganhar muito dinheiro e empregar muita gente”, critica. As contas estão na cabeça da catadora. Quando começou a trabalhar no ramo, há exatos dez anos, o quilo do papel jornal estava na casa dos 2 centavos; hoje, custa cinco vezes mais. O quilo do alumínio era comercializado a 40 centavos, valor que pulou para R$ 3,20. “Em apenas uma rua, dez catadores teriam de onde tirar. No Brasil, às vezes, as pessoas compram para jogar fora. É irônico viver no país que tem um projeto como o Fome Zero e, ao mesmo tempo, um lixo tão rico”.

Ao saber que o poeta concretista Augusto de Campos, autor de uma biografia sobre Pagu, tem um poema em que funde as palavras “luxo” e “lixo”, Selma não se conteve. “É muita coincidência. Vivo dizendo que é do lixo que nasce o luxo”, afirma, revelando que, nas suas prospecções, já encontrou de brincos de ouro a talão de cheque assinados em branco. Lembra também que a população despreza móveis, roupas e utensílios que poderiam ser reaproveitados, mas acabam no aterro. “O certo era ir só o orgânico, que poderia ser transformado em adubo”, ensina.

O desperdício de alimentos entra na fatura. Selma revela que inúmeras vezes viu um galpão frigorífico que funciona na Ceasa jogar fora toneladas de frango congelado, dois ou três dias antes do vencimento da mercadoria. “Isto não poderia ser doado para uma instituição?”, indaga. “Vamos fazer um sopão para os mendigos, doar esse frango para uma creche ou asilo”. Selma, cujo quintal é encimado por uma laje enfeitada por orquídeas colhidas no lixo, tem a sua porção Pagu.

Quem foi Pagu

Carteira funcional do jornalista Geraldo (Fotos: Arquivo Edgard Leuenroth)Filha de uma tradicional família paulista, Patrícia Rehder Galvão, a Pagu, nasceu em São João da Boa Vista, interior de São Paulo, em 9 de junho de 1910. Desde a adolescência, conviveu com artistas e intelectuais como Mário de Andrade, Anita Malfatti, Raul Bopp, Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade, com quem teve um filho, Rudá Andrade. O casal fundou em 1931 o tablóide “O Homem do Povo”. A publicação despertou a ira de conservadores.

Ainda muito jovem, integrou o movimento modernista e assumiu a militância política, filiando-se ao PCB (Partido Comunista Brasileiro). Durante um comício em Santos, em 1935, Pagu é presa pela primeira vez. Dois anos depois, foge do presídio, mas é detida novamente e condenada a mais dois anos de prisão. Ao deixar o presídio, no início da década de 40, passa a se dedicar ainda mais à militância do partido, percorrendo vários países. Em uma viagem à China, trouxe ao Brasil as primeiras sementes de soja.

Pagu é autora dos romances “Parque Industrial” e A “Famosa Revista”. Além de jornalista, escritora, tradutora e militante política, também se dedicou ao teatro. Freqüentou a Escola de Arte Dramática de São Paulo. Traduziu A Cantora Careca, de Ionesco, e dirigiu a primeira peça de Arrabal encenada no Brasil. Chegou a assinar uma coluna no jornal A Tribuna, de Santos.

Depois da separação de Oswald de Andrade, Pagu casou-se com o jornalista Geraldo Ferraz, com quem teve um filho e com quem permaneceu até morrer de câncer, em 12 de dezembro de 1962, em Santos.

O que foi encontrado
2

retratos de Pagu

2

fotos de Pagu (uma com Geraldo Ferraz e outra em saída de presídio)

1

carteira profissional original de Pagu, expedida em 30 de abril de 1946

1

medalha recebida por Pagu no Festival de Teatro Amador de Santos em 1959

1

placa de homenagem póstuma a Pagu, feita pela Câmara Municipal de Santos em outubro de 1998

1

prova do jornal Diário da Noite de 22 de abril de 1938. A matéria relata uma das prisões de Pagu

4

carteiras de identificação profissional de Geraldo Ferraz

4

fotos de Geraldo Ferraz

1

caderno de recorte de jornais com anotações de Geraldo Ferraz, incluindo uma matéria feita por ele após a morte de Pagu, em 1962.


'Foi um presente
dos deuses da memória'

“Estou tendo meu dia de princesa”, brincou Selma ao visitar a Unicamp a convite daSelma na sala de pesquisa do AEL: "dia de princesa na Unicamp" (Fotos: Antoninho Perri) socióloga e professora Elaine Zanatta, supervisora de Pesquisa do Arquivo Edgard Leuenroth. Foi Elaine a primeira a ter contato com o material recolhido pela catadora, entregue por Marcelo Chaves, seu ex-aluno do curso de Arquivo oferecido pelo Departamento de História. “Se ela teve um dia de princesa, nós também recebemos uma princesa. É a primeira vez que acontece um episódio desse tipo em toda a história do AEL. Foi um presente dos deuses da memória, justamente no ano em que o Arquivo comemora seus 30 anos de existência. Trata-se de um presente duplo: pela beleza e originalidade das fotos e da documentação, e pelo desbravamento de Selma”. Na avaliação da pesquisadora, o material tem uma importância histórica e iconográfica grande para a memória da própria Patrícia Galvão, de Geraldo Ferraz e para a história da cultura brasileira.

Na opinião de Elaine, todo o episódio envolvendo a doação é revelador no que diz respeito à importância da conscientização sobre o destino a ser dado a documentos históricos. “Selma sequer sabia quem era Patrícia Galvão, mas percebeu que ali havia algo importante. Essa sensibilidade é algo fantástico. Foi fundamental sua atitude de guardar a documentação, de procurar alguém que ela imaginava que fosse apta ou capaz de avaliar os documentos. Isso aponta para a questão da memória natural, da forma como as pessoas podem participar. Não é um pré-requisito ser letrado para saber o que é importante. Basta ter sensibilidade e identidade”, lembra aNa sala da sua casa com o filho Jefferson (Fotos: Antoninho Perri) supervisora do AEL.

Elaine não tem dúvida de que Selma, de “uma forma simples e desavisada”, identificou-se com a trajetória de vida de Pagu. “A consciência de Selma não é apenas da memória, mas também de cidadã. Ela percebeu, por meio da leitura dos recortes de jornais, que Pagu buscava algo diferente, sob o ponto de vista da perspectiva política, para o mundo em que vivia. Algo a tocou, o que fez com que desse uma atenção diferenciada ao material”, especula.

Elaine ressalta que a doação para a guarda definitiva do material é importante na medida em que a documentação se constituirá na Coleção Patrícia Galvão, que vai se juntar a milhares de outros registros depositados no acervo sobre a história social e política que se seguiu à fundação do Partido Comunista (1922).

A especialista lembra que o Fundo Hermínio Sacchetta (jornalista paulistano, 1909-1982), cujo conteúdo abrange o período de 1933 a 1969, tem entre seus documentos a reprodução de um prontuário policial – com a respectiva peça judicial – de uma prisão de Pagu no Bosque da Saúde, São Paulo, em 1936, “por ato de propaganda e atuação comunistas”. O AEL é depositário de parte expressiva da história dos movimentos sociais e da militância política do Brasil do século 20. Nesse contexto, o material sobre a intelectual paulista é mais uma peça a enriquecer o acervo.
No jardim formado com plantas e enfeites encontrados no lixo: conscientização e cidadadina (Fotos: Antoninho Perri)

As peculiaridades do achado de Selma também são ressaltados pela especialista. “Os documentos registram um forte caráter pessoal e original. Os retratos de Pagu, por exemplo, são registros iconográficos belíssimos, assinados por fotógrafos expressivos da época. A futura coleção é importante pela complementaridade que traz e pela forma como foi resgatada”. Ganham a Unicamp, a pesquisa, o público e a história social brasileira.


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