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Os especialistas Jorge Larrosa, Maria do Rosário Longo Mortatti, Ricardo
Azevedo e Regina Zilberman, todos conferencistas do 16º Cole, falam
sobre o papel da leitura e da educação na sociedade contemporânea

Quatro leituras do nosso mundo (e de suas armadilhas e contradições)

ÁLVARO KASSAB

A leitura assume hoje um papel crucial, deixando de ser apenas sinônimo de conhecimento. Ela passou a significar, dentre outras coisas, inclusão e maior capacidade de compreensão dos mecanismos – e fenômenos – que regem o mundo contemporâneo. Nesse sentido, considerando o programa do 16º Cole, quatro dos (Foto:Antoninho Perri)conferencistas do congresso fazem uma leitura dos seguintes temas:

LEITURA

Jorge Larrosa – A leitura é, para cada um, o que encontra na leitura. Às vezes, sem tê-lo buscado (porque nem sempre se encontra o que se busca). Às vezes, inclusive, sem saber o que encontrou (porque nem sempre se sabe o que vai ser encontrado). Em última instância, a leitura – ao menos a que me interessa –, é uma aventura pessoal. Nada mais (e nada menos).

Maria do Rosário Longo Mortatti – Atualmente, em sociedades letradas, saber ler (e escrever), saber utilizar a leitura (e a escrita) nas diferentes situações do cotidiano são necessidades tidas como inquestionáveis tanto para o exercício pleno da cidadania, no plano individual, quanto para a medida do nível de desenvolvimento de uma nação, no nível sociocultural e político. Mas a justificativa da necessidade da leitura (e escrita) centrada em finalidades de ordem pragmática, apenas, nem sempre se apresenta tão inquestionável assim. De fato, comparativamente ao que ocorria há algumas décadas, por exemplo, a leitura e a escrita (da palavra escrita) parecem ser, contemporaneamente, menos importantes no cotidiano de imensa maioria da população brasileira, no que se refere seja à sobrevivência pessoal, seja à obtenção de informações e conhecimento. Não saber ler (e escrever) não impede, por si só, a sobrevivência de um indivíduo, seu acesso à maioria das informações de que necessita, um emprego digno; do mesmo modo, saber ler (e escrever), por si só, não garante que se obtenham meios mais dignos de sobrevivência, ou informações mais precisas para as necessidades cotidianas.

De fato, finalidades pragmáticas são muito pouco para convencer pessoas e movê-las a suprir a necessidade dessas habilidades. Penso que a primordial e fundadora justificativa para a necessidade da leitura (e escrita), que antecede a satisfação de necessidades pragmáticas, centra-se no fato de se tratar de atividades especificamente humanas, que se relacionam com a formação do ser humano, com a constituição dessa condição de ser humano, que envolvem sua interação com outros seres humanos, sua inserção em um grupo social, sua inserção na história, sua consciência de si, do mundo e dos outros.

Ler (e escrever) é, para o ser humano, necessidade tão essencial quanto comer, morar e amar.

Regina Zilberman – A leitura é um processo de interação entre o sujeito e o mundo, em que esse aparece na condição de texto a ser decifrado. Que o real é um texto sugerem-no tanto a reflexão de Walter Benjamin sobre a origem da linguagem, quanto a pedagogia de Paulo Freire, que parte da leitura do mundo para que se desenvolva a habilidade da leitura da escrita.

Ricardo Azevedo – É fundamental que nossa escola consiga formar pessoas que saibam ler e escrever com desenvoltura, o que nem sempre tem acontecido. Mais que isso: é preciso formar pessoas que tenham pensamento crítico e saibam não só ler a vida e o mundo como comecem a dar idéias e propor interpretações a respeito da vida e do mundo.

ARMADILHAS DO MUNDO

Jorge Larrosa – Ao invés de “armadilhas do mundo”, gostaria de falar das “armadilhas da linguagem” (ainda que, seguramente, ambas sejam a mesma coisa). E a linguagem é ardilosa quando articulada para enganar, para consolar, para conformar, para tranqüilizar, para procurar certezas e seguranças, para falsear a realidade, para entorpecer, para fechar os olhos.

Maria do Rosário Longo Mortatti – No Brasil muitas têm sido as dificuldades para que se efetivem plenamente esse dever do Estado e direito do cidadão, como vêm revelando, de forma alarmante, resultados de avaliações de estudantes e sistemas de ensino, nos últimos anos. Os avanços quantitativos em relação à inclusão educacional não têm sido suficientes para garantir, sobretudo a crianças e jovens, ao menos o ensino fundamental completo e de qualidade, especialmente no que se refere à leitura e escrita, dificultando assim, o acesso efetivo aos conhecimentos considerados socialmente básicos e indispensáveis. E, em conseqüência, não têm contribuído para formar letrados...

Essas dificuldades evidenciam, dentre tantíssimos outros aspectos, uma das principais dentre as muitas armadilhas que ameaçam certas tentativas de busca de solução dos problemas de (falta de) leitura em nosso país: aquela em que se aprisionam os que buscam soluções facilitadoras.

Muitas vezes cheios de boas-intenções, outras vezes saturados de ingênua arrogância, muitos dos responsáveis pela educação e pela formação de leitores no país tendem a propor e implementar processos perversos de achatamento de horizontes de expectativa de leitores e de educadores. É o que ocorre quando, visando à adaptação às precárias condições da maioria dos que se querem formar como leitores, à razão, se sobrepõem falaciosas e demagógicas determinações de necessidades e finalidades de leitura assim como de oferta de textos e condições de leitura. Em outras palavras: a quem pouco tem, pouco deve ser dado.

Considerando a miséria social e cultural que assola este país, podemos concluir que vivemos em uma sociedade semiletrada. Assim, tornam-se muito frágeis não apenas as demandas e as justificativas pragmáticas em relação à necessidade de saber ler (e escrever) mas também as propostas e práticas relativas ao incentivo e ao ensino da leitura (e escrita) fundamentadas no falso suposto da mera adaptação ao gosto, aos usos e às funções pragmáticas dessas atividades, como ocorrem em nosso país, atualmente. Tais justificativas podem ser bastante eficientes para a proposição de metas que gerem bons resultados estatísticos e políticos; mas certamente são ineficientes para contribuir para alcançarmos, não uma situação ideal, mas uma situação de predomínio da razão crítica, ao menos.

Regina Zilberman – O mundo é enigmático, precisando ser decifrado, o que suscita a inteligência e a emoção dos seres humanos.

Ricardo Azevedo – São muitas mas uma das mais ardilosas diz respeito à política. No Brasil, o debate e a reflexão política andam escassos. Fomos transformados numa sociedade despolitizada e isso é muito ruim. A política é a forma que os homens inventaram para construir o futuro. Uma pessoa despolitizada fica confusa, cética e desesperançada, seja ela jovem ou não.

EDUCAÇÃO

Jorge Larrosa – A educação não teria a ver com uma língua comum a todos, que diga a verdade, que inquiete, que indague, que toque o mundo, que desperte, que abra os olhos?

Maria do Rosário Longo Mortatti – Saber ler (e escrever) e saber utilizar a leitura (e escrita) supõem aquisição e utilização de habilidades e conhecimentos que precisam ser ensinados e aprendidos, estando relacionados também com a escolarização e a educação e abrangendo processos educativos que ocorrem em situações tanto escolares quanto não-escolares.

Tais habilidades e conhecimentos, porém, não se esgotam na mera aprendizagem de decodificação (leitura) ou codificação (escrita) da palavra escrita. A necessidade de formação do ser humano e as exigências de uma sociedade letrada envolvem a necessidade de letramento, ou seja, de os indivíduos também saberem utilizar a leitura (e a escrita) de acordo com as contínuas exigências de seu processo de constituição como ser humano, que ocorre nas relações interindividuais, na interação social de que participa.

Se é direito individual buscar meios para essa formação humana, é dever do Estado proporcionar, especialmente por meio da educação escolar, o acesso de todos os cidadãos ao direito de aprender a ler (e a escrever), como necessidade fundamental de seu processo de constituição como ser humano e, em decorrência, como uma das formas de inclusão social, cultural e política e de construção da democracia.

Regina Zilberman – A educação pode oferecer os caminhos para que o mundo se abra à leitura de um sujeito; portanto, deve apresentar-se de modo instigador, e não dogmático.

Ricardo Azevedo – Sinto falta do debate político dentro da escola. Não penso em doutrinações nem em arautos da verdade única. Refiro-me a debate, à livre crítica da sociedade que aí está, a reflexões, discussões e propostas para a sociedade que gostaríamos de construir. O quanto antes nossos jovens forem despertados para essa discussão e minimamente informados e conscientizados dos problemas e dificuldades a serem enfrentados, melhor.

EXCLUSÃO

Jorge Larrosa – Não seria a prática de um diálogo por meio do qual as pessoas falassem uma língua amigável, que a todos abrigasse?

Maria do Rosário Longo Mortatti – Se considerarmos a quantidade de iletrados neste país (que ainda não foi “medida” e também não se confunde com estatísticas sobre analfabetismo), devemos mesmo nos questionar a respeito do alarmante índice de excluídos (mesmo que alfabetizados; mesmo que até portadores de “diploma universitário”) do direito a adentrarem e participarem no mundo público da cultura letrada, o direito à participação em um mundo que vem sendo proibido a tantos, justamente em nome de um suposto “respeito” a suas precárias condições culturais e sociais, justamente em nome de sua “salvação”.

E principalmente nossas crianças e jovens assim como seus professores precisam ser incluídas no usufruto desse direito, já, antes que muitos tenham morrido de “bala ou vício”, sem nem terem sabido da “dor e delícia” de serem humanos, de fato.

Regina Zilberman – A leitura integra um sujeito consciente e lúcido a um real que requer constantemente seu deciframento e interpretação; mas o acesso às práticas de leitura depende de instituições que habilitem o indivíduo a alcançar esse resultado. A exclusão é o contrário disso; ela mesma deveria ser excluída, mas talvez seja o que mais está presente no contexto social e pedagógico nacional.

Ricardo Azevedo – Um bom item para a pauta de discussões políticas no âmbito escolar. Existem exclusões sociais, culturais, tecnológicas ou raciais no Brasil? Quais, como, onde e por quê? E mais: que fazer?

BRASIL

Jorge Larrosa – A resposta é fácil: a alegria é o critério supremo. Ainda me atrevo a traduzir “alegria” por vontade de viver. Algo assim como se sentir vivo, apesar de toda dor. Isso se aplica também para a leitura, também para a educação: a vontade de viver, o critério supremo.

Regina Zilberman – Quando Roger Bastide disse que o Brasil é uma “terra de contrastes”, expressou uma verdade que se tornou um chavão. Nem por isso deixa de ser válida para definir nosso país. Nossos índices educacionais são baixos, e nossa performance, insuficiente; mas, em nenhum lugar do planeta, realizam-se eventos culturais do porte do Cole, em Campinas, ou das Jornadas Literárias de Literatura, em Passo Fundo, duas cidades que não são capitais, que contam com um público de estudantes e professores, e reúnem, a cada dois anos, mais de cinco mil pessoas.

Ricardo Azevedo – Sou otimista. Creio na construção de uma sociedade brasileira melhor e mais justa mas isso só será possível por meio de muita discussão e quando nossos cidadãos se derem conta de que são responsáveis pela sociedade em que vivem. A escola tem papel fundamental nisso. O que queremos? Preparar alunos para manter o que aí está ou formá-los para construir uma sociedade mais inteligente, criativa, competente e equilibrada?

PERFIS

Jorge Larrosa
Jorge Larrosa é professor de Filosofia da Educação do Departamento de Teoria e História da Educação da Universidade de Barcelona. É doutor em pedagogia e realizou estudos de pós-doutorado no Instituto de Educação da Universidade de Londres e no Centro Michel Foucault da Sorbonne em Paris. Foi professor convidado em várias universidades européias e latino-americanas. Dentre as suas diversas publicações, destacam-se: La experiencia de la lectura (1996), Pedagogia profana (1998) e La experiencia de la lectura. Ensayos sobre literatura y formación (1999).

Maria do Rosário L. Mortatti
É professora no curso de Pedagogia na Unesp-Marília, onde atua junto ao programa de pós-graduação em Educação. É coordenadora do grupo de pesquisa “História do Ensino de Língua e Literatura no Brasil”. É graduada em Letras (Unesp-Araraquara), mestre em Educação (Unicamp), doutora em Educação (Unicamp) e livre-docente em Metodologia da Alfabetização (Unesp). Publicou, entre outras obras: Os sentidos da alfabetização (Editora Unesp); Educação e letramento (Editora Unesp); Leitura, literatura e escola: sobre a formação do gosto (Martins Fontes); e Em sobressaltos: formação de professora (Editora da Unicamp).

Regina Zilberman
Licenciou-se em Letras pela UFRS e doutorou-se em Romanística pela Universidade de Heidelberg, na Alemanha. Foi professora da PUC-RS. Realizou o pós-doutoramento no Center for Portuguese & Brazilian Studies, da Brown University, Rhode Island (EUA). É pesquisadora 1A do CNPq. São suas publicações, entre outras: Do mito ao romance: tipologia da ficção brasileira contemporânea; A literatura infantil na escola; Um Brasil para crianças; Estética da Recepção e História da Literatura; A leitura rarefeita; Roteiro de uma literatura singular; A terra em que nasceste: Imagens do Brasil na literatura; A formação da leitura no Brasil; Fim do livro, fim da leitura? ; O preço da leitura; O tempo e o vento: história, invenção e metamorfose; e Como e por que ler a literatura infantil brasileira.

Ricardo Azevedo
Escritor e ilustrador, nascido em São Paulo, 1949, bacharel em Comunicação Visual (FAAP) e doutor em Letras (USP). Tem dado aulas e palestras sobre literatura infantil por todo o país. Tem vários artigos publicados sobre problemas do uso da literatura de ficção na escola. Autor de mais de cem livros, entre os quais, Trezentos parafusos a menos, (Companhia das letrinhas); Um homem no sótão (Ática); Armazém do folclore (Ática); O sábio ao contrário (Senac/Ática); Histórias de bobos, bocós, burraldos e paspalhões (Projeto); e Ninguém sabe o que é um poema (Ática). Diversas vezes premiado, é pesquisador na área da cultura popular. Tem obras publicadas no México, Portugal, França, Holanda e Alemanha.

Mais sobre o 16º Cole na página 7

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