Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 259 - de 19 de julho a 1 de agosto de 2004
Leia nessa edição
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Artigo: Direitos de propriedade
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Artigo

Direitos de propriedade
e pesquisa pública

SERGIO SALLES-FILHO

O tema das relações público-privadas é recorrente e, como tal, retorna à baila de tempos em tempos. Como analisar as relações público-privadas na produção de conhecimento? Como as organizações públicas devem se relacionar com o mercado? Por que exigir direitos de propriedade de uma cultivar desenvolvida por uma instituição pública de pesquisa? O que a universidade tem a ver com comércio de tecnologia? Seriam essas práticas justificáveis do ponto de vista social? Essas e outras questões sempre estiveram presentes nos laboratórios, salas e corredores das organizações públicas de pesquisa e ensino.

Em ciência e tecnologia tudo o que é amplamente divulgado trará o melhor e maior benefício social, certo? Errado, nem tudo, nem sempre. Depende de um conjunto de fatores nada triviais. Analogamente, tudo o que é apropriado privadamente restringirá os benefícios sociais, certo? Errado, depende, igualmente, de um certo conjunto de variáveis, essencialmente as mesmas que justificam a assertiva anterior.

Em ciência e tecnologia, assim como em tudo o que envolve conhecimento e aprendizado, as condições de apropriação variam consideravelmente. Normalmente, aproveita mais quem já sabe algo a respeito daquilo que está sendo divulgado. Como os níveis de conhecimento, informação e de habilidades para lidar com conhecimento e informação são, por definição, desiguais, é razoável esperar que a apropriação do conhecimento seja, também, desigual. E isto independente da existência de algum mecanismo formal de apropriabilidade (e.g. patentes, direitos de autor, direitos de melhorista etc.).

Sergio Salles-Filho é pesquisador do Departamento de Política  Científica e Tecnológica, do Instituto de Geociências da Unicamp (IG).Um mundo livre de direitos de propriedade poderia produzir tanto conhecimento quanto possível e isto não obrigatoriamente resultaria em ampla apropriação social de benefícios. Da mesma forma, um mundo pleno de direitos de propriedade tampouco seria capaz de gerar benefícios sociais de larga amplitude. A relação entre apropriabilidade e benefício social não é direta nem simples. Basicamente, os indivíduos têm capacidades diferentes para se apropriar de um novo conhecimento. Como regra geral, os mais qualificados o farão com mais rapidez e sucesso, muitas vezes aumentando a distância que os separam dos menos qualificados. Nestas circunstâncias, a divulgação sem critérios pode resultar em piora das condições sócio-econômicas de um dado conjunto de atores sociais.

Isto se agrava se houver um quadro regulatório que preveja direitos de propriedade (um mundo como o nosso, com direitos de propriedade estabelecidos e amplamente aceitos). Se você não quiser apropriar-se de um dado conhecimento, não se iluda, porque alguém o fará, utilizando todo o aparato institucional existente (de direito ou de fato).

Um exemplo eloqüente foi o que ocorreu com as tecnologias agrícolas durante o momento histórico que se convencionou chamar de Revolução Verde (meados dos anos 1950 a início dos anos 1970). Baseada no desenvolvimento de variedades de alto rendimento e nos chamados insumos químicos e mecânicos, a Revolução Verde foi um largo (e aberto) processo de difusão de um novo padrão técnico-econômico para a agricultura, mais tarde conhecido como padrão produtivista.

Os países menos desenvolvidos foram alvos explícitos da difusão desse padrão. Embora houvesse iniciativas de educação dos agricultores para uso dos pacotes tecnológicos portadores do novo padrão e investimentos em instituições públicas de pesquisa e extensão, a adoção do novo conhecimento foi essencialmente irregular. E o foi não porque falharam as instituições de pesquisa e assistência técnica (podem até ter falhado, mas a culpa não lhes pode ser atribuída sem mediações), ou porque a informação não chegava a todos igualmente. A desigualdade sócio-econômica cresceu na maioria das regiões e as heterogeneidades se acentuaram.

Na verdade, a base produtiva já era profundamente heterogênea. Heterogênea em sua capacidade técnica, em sua condição sócio-econômica, em suas relações com o mercado etc. Aquele novo conhecimento, amplamente difundido, sem grandes empecilhos de escala e sem restrições legais de reprodução (não havia cobrança de royalties, direitos de melhorista ou coisa similar), ajudou a criar desigualdades sociais e produtivas. Valeram-se mais e melhor do novo padrão aqueles produtores que já tinham certo nível de relação com o mercado e certo nível de modernização tecnológica. Inovou mais quem já inovava antes.

Pode-se então pensar o seguinte. A difusão de uma nova tecnologia ou de um novo conhecimento, sem qualquer avaliação de seus impactos e sem controle de propriedade (apenas com a motivação – bem intencionada – de torná-la pública), pode (reparem que eu disse pode, não disse deve) favorecer os que, na partida, já estão melhor posicionados. Nessa linha, os resultados da pesquisa pública, difundidos sem critérios, podem favorecer os mais fortes e excluir os mais fracos.

Na literatura econômica o tema aparece, sobretudo, pela definição de critérios que identificam (e separam) bens públicos e bens privados. Na verdade, há numerosa produção a respeito e ainda hoje se admite a possibilidade de separar, ex-ante, um bem público de um bem privado. Resumidamente, não apropriabilidade e não rivalidade identificariam um bem público. Ou seja, se não há mecanismos de apropriabilidade privada (difícil ou impossível apropriar-se do beneficio gerado) e se não há rivalidade no uso (o consumo por um não exclui a possibilidade de consumo por outros), caracterizar-se-ia a condição de bem público. O conhecimento científico seria, nessa perspectiva, um típico bem público.

Com tal identificação poder-se-ia definir o que deve ser feito pela pesquisa pública (ou mesmo justificar sua existência). Essa visão supõe que a separação público privado é um bom guia de políticas públicas para garantir o maior benefício social do investimento (no caso, investimento em pesquisa e em C&T). A idéia geral é: à pesquisa pública cabe produzir bens públicos e à pesquisa privada, bens privados. Se um dia isso já fez sentido prático, hoje definitivamente não faz. Pensar que conhecimento científico é sempre um bem público é um equívoco que pode ter conseqüências desastrosas dos pontos de vista social e econômico. No mundo em que vivemos, quer se goste dele ou não, conhecimento científico (e ainda mais tecnológico), de qualquer natureza, é sempre muito bem vindo e tem valor e apropriabilidade economicamente mensuráveis.

Há uma separação lógica, um divisor de águas muito claro entre as organizações públicas de pesquisa e o mercado. Ninguém duvida que são mundos muito diferentes, com funções sociais diferentes. E é justamente por terem papéis diferentes dentro de uma mesma sociedade que a um não é dado ignorar como o outro funciona. O conhecimento produzido por um será utilizado pelo outro, de uma forma ou de outra.

O fato de um novo conhecimento ter sido produzido com recursos públicos não quer dizer que deva ser amplamente disponibilizado. As organizações públicas de ensino e pesquisa devem avaliar as conseqüências da divulgação do conhecimento gerado em seus laboratórios. Nesta linha, conhecer e saber usar direitos de propriedade não é mais que uma obrigação dessas instituições. É um passo importante para efetivamente tornar público aquilo que foi financiado com recursos públicos.

Um exemplo interessante é o que a Embrapa vem fazendo com as cultivares que desenvolve. Combinando sua elevada competência em pesquisa com uma habilidade ímpar em manejar instrumentos de propriedade intelectual (leia-se, a Lei de Proteção de Cultivares), a Empresa ajudou a reestruturar parte do mercado nacional de sementes induzindo a formação de mais de uma dezena de fundações privadas de produtores de sementes habilitados a comercializar suas variedades. Trata-se de organizações de pequenos e médios produtores de sementes que de outra forma estariam excluídos do mercado, especialmente em decorrência do avanço das empresas multinacionais na década de noventa.

A Embrapa só pôde fazer isso porque tem forte competência em pesquisa, está articulada com a produção e soube incorporar conhecimento e habilidade para regular formas de apropriação do conhecimento que ela própria gera. Se ela simplesmente abdicasse dos direitos de propriedade e disponibilizasse suas variedades desconhecendo o comportamento e a organização do mercado de sementes ela estaria contribuindo para concentrar e desnacionalizar ainda mais o mercado brasileiro de sementes.

A questão aqui não é defender que haja direitos de propriedade sobre o conhecimento por razões ideológicas ou pecuniárias. Esse é um outro assunto, para outro debate. A questão é não se dar ao luxo de, pelas mesmas razões, desconhecer as conseqüências do marco institucional de propriedade intelectual (de direito e de fato) sobre a produção e divulgação do conhecimento.

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