Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 259 - de 19 de julho a 1 de agosto de 2004
Leia nessa edição
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10 anos de Plano Real
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Biasoto e Cano
avaliam 10 anos de Plano Real

CLAYTON LEVY



O então presidente Fernando Henrique Cardoso comemora o primeiro ano de lançamento do Plano Real( Foto: Lula Marques/Folha Imagem)Não houve pacotes, congelamentos ou confiscos. O Plano Real, lançado há dez anos pelo governo do então presidente Itamar Franco, era diferente de tudo que já havia sido tentado para acabar com a inflação. Tão diferente que, à época, pareceu mais um milagre. Não era exagero. Para quem estava acostumado a amargar uma inflação na casa dos 2.500% ao ano em 1993, chegar em junho de 2004 com o IPCA dos últimos doze meses em apenas 6,31%, foi uma mudança e tanto. Num contexto histórico de hiperinflação não há como contestar o mérito do plano. Mas restam outros desafios, como fazer a economia deslanchar, gerando emprego e renda. Em entrevista ao Jornal da Unicamp, os professores Geraldo Biasoto e Wilson Cano, do Instituto de Economia (IE), fazem um balanço da primeira década pós-Real.

Em sua opinião, o Brasil melhorou ou piorou depois do Plano Real? Por quê?


Geraldo Biasoto – Que o Brasil pós Plano Real é melhor que todo o período que seWilson Cano: "Não nos entusiasmemos com eventuais crescimentos de 3% ou 4%" (Fotos: Antoninho Perri) estendeu de 1980 a 1994 não cabem dúvidas. Mas precisamos ter muito claro o que significa ser melhor ou pior e qual é o alcance que um plano de estabilização deve ter em nosso julgamento sobre a economia. Em primeiro lugar, é necessário ter presente que a estabilização monetária que o Plano propiciou foi fantasticamente bem-sucedida. Em todas as experiências históricas, a transição do regime de inflação muito elevada para a estabilidade teve enormes custos em termos de emprego e mesmo fome da população. Não foi o caso do Plano Real, a URV serviu muito bem a seus objetivos de moeda de passagem entre o velho padrão monetário, carregado de expectativas inflacionárias, e o novo, livre da descrença do passado. É lógico que esta transição não teria sido possível sem que o contexto das contas externas brasileiras ganhasse uma estabilidade que há muito tempo havia sido perdida: a disponibilidade de capitais internacionais voltou a dar sustentação ao nosso Balanço de Pagamentos. Com isso, a pressão que, desde 1980, se colocava para a economia pela geração de excedentes exportáveis, foi eliminada, rompendo-se a enorme tensão que sempre estava presente sobre a paridade cambial da nossa moeda. Portanto, dois elementos explicam a estabilização: a) uma eficaz engenhariaGeraldo Biasoto: "A estabilização monetária foi fantasticamente bem-sucedida" (Fotos: Antoninho Perri) de passagem da moeda velha para a nova; e b) o retorno do acesso ao mercado de capitais internacionais, que permitiu que o câmbio passasse de elemento de tensão a verdadeira âncora do sistema de preços internos. Em segundo lugar, é fundamental ter em mente que achar que um plano de estabilização possa cumprir o papel de um projeto de desenvolvimento é uma enorme miopia. Ela é muito própria daqueles que acreditam que é só deixar que o livre jogo das forças de mercado funcione para proporcionar o crescimento. A formulação de políticas setoriais, o redesenho do sistema de crédito, a política industrial, o financiamento da infra-estrutura são aspectos que vão muito além de um plano de estabilização. Por isso tudo, o Plano Real deu as bases sobre as quais a economia e as pessoas passaram a ter condições de avaliar custos e remunerações, o que é indispensável para vida das pessoas e das empresas. Mas é necessário avaliá-lo pelo que ele foi: um plano de estabilização monetária.

Wilson Cano – Antes de tudo, é preciso que se entenda que esse Plano, não foi, como os anteriores, apenas “um plano de estabilização”. Ele é parte integrante e essencial a um programa mais amplo - o Consenso de Washington - que constitui o conjunto das reformas neoliberais introduzidas no país desde 1990. Sob o ponto de vista da estabilidade, a resposta seria positiva, embora não possamos ignorar que de julho de 94 até hoje, a inflação já aumentou em 250%! Sob os demais problemas, não, como tentarei mostrar. O Plano estava lastrado em várias colunas ou “âncoras”: na nova política cambial, onde o Real foi artificialmente valorizado, barateando sobremodo os gastos com moeda estrangeira; na abertura comercial, com forte diminuição ou eliminação de tarifas de importação, que baratearam ainda mais as importações e na prática impediram que os produtores nacionais remarcassem seus preços, no que muitos quebraram, eliminaram algumas linhas de produção ou se transformaram em comerciantes importadores; na colossal expansão da dívida pública interna, pois o enorme afluxo de dólares para tapar o rombo do balanço de pagamentos, ao ser convertido em moeda nacional, precisava ser esterilizado, para o que se emitia títulos de dívida governamental; nos absurdos juros então vigentes, com objetivo de atrair capitais externos e internos (dívida pública).

O Real estabilizou a inflação, mas não acelerou o crescimento. Por que, em sua opinião, o país cresceu tão pouco nesse período?

 

Biasoto – O Plano Real acabou prisioneiro de seu sucesso. O acesso aos recursos externos e o enorme temor de promover políticas de desenvolvimento que pudessem colocar em dúvida a estabilização acabaram por fazer a estabilidade monetária um fim em si mesmo. As políticas de desenvolvimento só começaram a ganhar alguma dimensão tardiamente, já em 2000, e acabaram abortadas pela mudança de governo.

Cano – Acelerar não é a palavra certa. O Plano simplesmente repetiu o débil crescimento médio da década de 1980, por uma razão muito simples: para que atingisse elevado e persistente crescimento, seria necessário que o fluxo de financiamento externo também o fosse - o que, como sabemos, não ocorre no sistema financeiro internacional, cuja volatilidade, incerteza e risco só aumentaram a partir da década de 1970. Por outro lado, os banqueiros – de cá e de fora – não são idiotas e percebem claramente quando o desequilíbrio financeiro – interno e externo – de um país aumenta muito: simplesmente “dão o fora”. Por outro lado, a elevada taxa de juros e a incerteza sobre os rumos futuros da economia inibiam – e inibem – os empresários privados, os quais, além disso, passaram a não mais contar com os investimentos públicos, drasticamente cortados, como manda o figurino FMI-BIRD. Assim, com o encolhimento do Estado e as limitações do financiamento externo, não há como crescer alto e persistentemente nesse modelo. Não nos entusiasmemos com eventuais crescimentos de 3% ou 4% – neste ano como em outros anteriores – pois a economia, na média, cresce muito menos do que isso, simplesmente porque, quando o financiamento externo se retrai, a crise cambial assoma, e a política econômica se vê prisioneira, criando uma nova recessão.

Os críticos do Plano Real apontam as políticas cambial, fiscal e tributária como o seu principal calcanhar de Aquiles. Qual a sua opinião a respeito?

 

Biasoto – Na verdade, a crítica é mal focalizada. O Plano Real teve diversas combinações de política econômica. No seu início, o câmbio foi fixo e valorizado, com taxa de juro alta e políticas monetária e fiscal relativamente duras. Entre meados de 1995 e 1998, a taxa de juros foi muito elevada para assegurar o influxo de capitais externos com taxa de câmbio extremamente valorizada. A política fiscal foi um pouco mais frouxa em meio a uma reforma do estado com transferência de patrimônio ao setor privado. De 1999 até agora, o câmbio passou a ser flexível e a política de metas de inflação (embora sempre descumpridas) induz a uma taxa de juros muito elevada. Como âncora não temos mais o câmbio, mas o superávit fiscal que compensa o elevado custo da dívida pública e mantém sob controle a relação dívida-PIB. Por fim, uma carga tributária que não pára de crescer. Enfim, não parece haver só um problema de arranjo de políticas, dado que vários já foram utilizados. A questão é a ausência de maior clareza sobre os papéis que cabem ao Estado e à autoridade econômica numa economia continental e de desenvolvimento econômico retardatário e descontínuo. O real problema é que a política econômica de curto prazo continua desvinculada de um projeto de desenvolvimento.

Cano – Eles têm razão, pelo menos em parte: na cambial, porque a valorização encarece nossas exportações, ao mesmo tempo em que cria a ilusão de um dólar (permanente) barato para importações de contratação de empréstimos. Mas, quando na crise ele encarece, aí vem a quebradeira dos devedores, e o eterno choro junto às tetas do Estado, como está fazendo a Rede Globo, por exemplo. Na fiscal e na tributária, porque o Estado viu-se obrigado a aumentar a carga tributária, que, nos mandatos de FHC, subiu de 28% para 34% do PIB, com o que os empresários e a mídia (curioso é que o trabalhador não percebe que ele é o maior prejudicado!). Mas, o que eles não dizem, é que os 8% de aumento simplesmente serviram para pagar o colossal aumento do volume de juros pagos pelo Estado, que hoje se situa em torno de 9% do PIB... O dilema, portanto, para que a carga baixasse, se situa em um ou mais vértices do seguinte triângulo: a) baixar drasticamente os juros sobre a dívida; b) dar um novo calote (à la Collor) e proceder a um forte alongamento de seus vencimentos; c) cortar ainda mais os gastos correntes e de investimentos públicos (onde: educação, saúde, estradas, salário do funcionalismo...?).

Os defensores do Plano Real acreditam que o Brasil estaria agora encerrando uma “década preparatória” e entrando numa fase de colheita pós-plano, com perspectiva de um crescimento médio anual de 3,5% a 4% ao ano. O senhor concorda com essa avaliação? Por quê?

Biasoto – Essa é a visão de que basta estancar o déficit público e colocar a inflação sob controle para que este animal adormecido, o capitalismo brasileiro, desperte e inicie o espetáculo do crescimento. O problema é que, na história da economia mundial, apenas dois países experimentaram este tipo de espetáculo: a Inglaterra da Revolução Industrial e, neste século, os Estados Unidos. Todos os outros processos de desenvolvimento são derivados de composições e articulações entre classes capitalistas locais e internacionais, com a presença e mediação do Estado, inclusive os casos japonês, alemão e coreano. Hoje, o superávit fiscal toma entre 8% e 10% do PIB das mãos das empresas e das pessoas e os transfere para os possuidores de títulos da dívida pública. Não que o Estado tenha se endividado tanto, o fato é que a riqueza das pessoas físicas e jurídicas está aplicada em títulos, sob pena de gerar processos especulativos nos mais diversos mercados, o Estado é o único agente que pode remunerar esta massa de riqueza. Ou seja, nós subtraímos da economia a demanda que impulsionaria o crescimento e os agentes que recebem o pagamento de juros continuam nas aplicações financeiras porque não têm horizonte para investir. Podemos até ter um crescimento de 3%, mas ele baterá rapidamente nas contas externas e na falta de articulação entre o investimento público e o privado. Não há como crescer de forma sustentada sem que o Estado defina com clareza, e apóie por meio de uma política industrial, de crédito e de comércio exterior, um espaço de ação para os capitais nacionais e internacionais.

Cano – Essas pessoas, sinceramente, não estão defendendo o país, mas sim seus interesses de rentiers, com a especulação e o ganho fácil sobre os ativos financeiros, mormente com os das dívidas públicas. Elas sabem, mas escondem – e a mídia infelizmente ou não se dá conta disto ou finge disto não se dar conta – que o país já trilha 25 anos de crise, e que a possibilidade de crescimento alto e persistente não existe nesse modelo. Agora, tentam reinventar a roda, com as exportações agrícolas. Ora, foi com elas que nos inserimos no capitalismo e no mercado internacional, e conhecemos muito bem nossa história. Pretendem, ainda que inconscientemente, retornar à era prévia à Crise de 1929... É por isso que querem “acabar com a era Vargas”.

O PT no governo oscila entre a crítica e a continuidade do Plano Real. Qual o sentido dessa dicotomia?

 

Biasoto - O PT vive o dilema do governo FHC de forma ainda mais dramática porque é muito menos legítimo frente aos olhos do mercado. As perguntas, ninguém admite, mas circulam nas cabeças dos agentes do mercado: Pallocci terá apoio total do Presidente e do PT se o mercado internacional restringir efetivamente os fluxos de capitais? É possível passar todo o tempo sem uma recaída populista que mude a política econômica? O dilema se resolve por uma adesão ainda mais ferrenha à política implantada em 1999: superávit fiscal, câmbio flutuante e taxa de juros elevada. Na ausência de capacidade de formulação própria, o PT comprou a política que tanto combateu.

Cano – É a dicotomia do absurdo: lamenta a herança maldita, ao mesmo tempo que dá continuidade – e em alguns casos apro-funda, como na Reforma da Previdência e nos projetos de reforma sindical e trabalhista – ao pro-cesso que a originou. O sentido só pode ser um: o credo que orienta a política econômica é o mesmo: subordinação às finanças nacional e internacional.

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