Leia nessa edição
Capa
Artigo: Quando o lixo vira ouro
Cartas
Ação antidemocrata e anti-
   republicana
Invasão: rastro de destruição
Repúdio a invasão
Celular e equipamentos de UTI
Deficiência sensorial
Imaterialidade do conhecimento
Endividamento externo
Consórcio: aprimorar produtos
FEM: Prêmio Petrobrás de Dutos
Painel da semana
Oportunidades
Teses da semana
Unicamp na mídia
UNCTAD: instituto virtual
Medicamento: disfunção erétil
O resgate dos lesados
 

3

A cientista política Walquiria Leão Rêgo analisa a ação dos “encapuzados” que invadiram e depredaram a Reitoria no dia 2 de julho

"Uma ação antidemocrática e anti-republicana"

CLAYTON LEVY


A cientista política Walquiria Leão Rêgo, professora do IFCH: “A universidade pública está sendo atacada por todos os lados”Professora livre docente do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, a cientista política Walquiria Leão Rêgo participou ativamente do movimento estudantil na década de 60, quando o combate à repressão imposta pelo golpe militar estava no auge. Participou de passeatas, assembléias, integrou centros acadêmicos e fez teatro universitário numa época em que a censura e a perseguição política pautavam as relações entre o governo e a universidade. Mesmo com toda essa experiência, ela diz que a invasão da reitoria da Unicamp, ocorrida no último dia 2, durante um ato organizado pelo Fórum das Seis, extrapolou tudo o que já havia visto no movimento estudantil. Autora de vários trabalhos publicados, entre eles o livro Em busca do socialismo democrático (Editora da Unicamp, 2001), Walquiria diz que o ato fere os princípios da democracia e chama a atenção pela truculência. Em sua opinião, o episódio exigirá uma ampla reflexão sobre convivência acadêmica, a luta acadêmica e o respeito à coisa pública. Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Paraná, com mestrado e doutorado em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP) e pós-doutorado pela Universidade de Roma, a professora tem como principal linha de pesquisa a sociologia das idéias políticas. Na entrevista que segue, ela faz uma análise da ação ocorrida na Unicamp e das perspectivas para o meio acadêmico a partir desse fato.


Jornal da Unicamp – Que análise a senhora faz da invasão da Reitoria da Unicamp no último 2 de julho?

Walquiria – O que espanta nesse grupo é que eles não representam a comunidade estudantil. Os estudantes estão indignados. Esse grupo não conhece a política do diálogo, portanto não é democrático. Os reitores hoje são eleitos por nós, não são nomeados por algum ditador como era no meu tempo. Há fóruns apropriados para discutir e encaminhar as demandas. Estudantes, professores e funcionários têm o direito de fala e de voto nesses fóruns. Portanto têm de ser capazes de persuadir através do diálogo.

JU – Surpreende que esse tipo de ação tenha sido cometido por um grupo de estudantes?

Walquiria - Há alguns anos o movimento estudantil ensaia se rearticular. Como todo movimento que foi destroçado, essa rearticulação é difícil. Não sabemos quantos anos serão necessários para que atinja novamente o nível alcançado em 1964 e 1968, quando surgiram lideranças muito qualificadas. Nessa tentativa de rearticulação surgiu um pequeno grupo que não tem representação forte no meio estudantil. Esse grupo pensa que tem a verdade nas mãos, quase como outros grupos fundamentalistas que andam por aí. Há alguns anos eles começaram a utilizar a violência, uma violência que o movimento estudantil jamais usou, mesmo durante a ditadura. Eles usam uma selvageria e uma barbárie que não têm nada a ver com a vida acadêmica. Na universidade somos treinados para convencer pelo argumento.

“Na universidade somos treinados para convencer pelo argumento”

JU - Isso representa uma ameaça ao estado de direito?

Walquiria - Se esse se tornasse dominante, coisa que não creio, então poderia se constituir em ameaça ao estado de direito democrático, que pressupõe regras no campo do debate e das manifestações. O estado de direito democrático existe exatamente para limitar o arbítrio das vontades. Regulação e limites são princípios sem os quais a vida social seria impossível. Claro que os invasores da Unicamp, com esse ato violento, não têm o poder de ameaçar o Estado, mas a ação, em si, representa um atentado contra a democracia. É essencialmente uma atitude antidemocrática. Qualquer ato, no processo político, seja uma manifestação, uma passeata, só tem legitimidade se aprovado nos fóruns adequados, como as assembléias. Quem autorizou os invasores a fazer o que fizeram? Que direito eles têm de invadir um patrimônio público? No momento em que invadem a Reitoria também estão cometendo uma arbitrariedade contra toda a comunidade acadêmica.

JU - Chamou a atenção o fato de os invasores estarem encapuzados. O capuz tem algum significado especial?

Walquiria - Isso é uma novidade e tem um aspecto muito perigoso. Toda ação política tem de ser pública. Acho que há uma cultura da violência muito generalizada entre nós e um absoluto desprezo por procedimentos democráticos. Quando um grupo usa esse recurso escuso, que é a máscara – o capuz –, está passando uma mensagem de algo que é ilegítimo, que não foi autorizado pela comunidade. A lógica do simbolismo é muito semelhante as que usam certos grupos de fanáticos que se imaginam serem donos da verdade. Se olharmos na história, veremos que é o mesmo simbolismo dos movimentos autoritários, nazistas, fascistas etc. No Brasil, o movimento estudantil, do qual participei ativamente, não tem a tradição de usar capuzes. O encapuzamento é uma forma de não assumir o ato. Se estou numa democracia, por que esconder a identidade?

“Em nome de quem, por quem eles falam, quem são eles?”

JU - O que pode acontecer se esse tipo de movimento se ampliar?

Walquiria - Não acredito que esse método se ampliará, dado o repúdio que está recebendo da maioria dos outros estudantes e da comunidade acadêmica como um todo. Os estudantes estão amedrontados. Um grupo autoritário, quando quer se impor pela força, age exatamente como esse, ou seja, age pela intimidação.

JU - Isso não é meio fascista?

Walquiria - Não é meio fascista; é absolutamente fascista. Sou uma estudiosa do fascismo italiano. Um dos métodos mais espantosos era exatamente semelhante a esse, se mascarar, agir à noite, invadir as casas das pessoas e arrebentar tudo em nome de nada. As milícias fascistas adotavam a violência pela violência. Ostentavam o mais absoluto desprezo pela política do diálogo, do debate, da argumentação.

JU - Nesse caso, o uso desses métodos representa um retrocesso?

Walquiria - Bertolt Brecht dizia que a mãe do fascismo está sempre grávida. Essa é uma advertência que devemos levar em conta. Nunca se pode dizer que isso acabou. Na Europa, mesmo depois de toda a tragédia da experiência dos fascismos, surgiram há pouco tempo grupos como os skinheads, os neonazistas, etc.

“Em nome de quem, por quem eles falam, quem são eles?”

JU - Chega a ser preocupante que esse tipo de movimento esteja surgindo no meio universitário?

Walquiria - É muito preocupante. Mas não dá para dizer que são só estudantes porque eles se mascararam. Portanto há algo ainda obscuro nesse episódio. Afinal, ninguém deliberou em público ao menos, para autorizar semelhante ação. Ninguém lhes concedeu uma delegação especial para isso, nós não estamos em meio a uma revolução armada. Afora o fato desolador de que a realização do ato contou com a participação dos estudantes da Unicamp, considero ainda mais preocupante, é que segundo vários observadores, houve a participação de elementos estranhos ao corpo acadêmico.


JU - O que isso pode significar?

Walquiria - Pode significar que a democracia ainda não mora no coração das pessoas. Que nós ainda temos de lutar muito pela consolidação efetiva dos valores democráticos. Significa, principalmente, que a política do diálogo ainda não se tornou um pensamento generalizado. Isso significa que ainda temos de ensinar muito sobre teoria democrática, teoria republicana, fazer muitos seminários, discutir muito dentro da universidade. 0 Há várias experiências demonstrando que, às vezes, pequenos grupos violentos podem provocar danos gravíssimos a uma sociedade, às vezes abrindo feridas incicatrizáveis e retardando o avanço da democracia.

JU - Até que ponto esse tipo de ação tumultua a vida acadêmica?

Walquiria - O tumulto pode ocorrer sem violência. A universidade é uma instituição de docência e pesquisa. Ela é também o lugar onde se faz política, mas política democrática. Eu tenho de apresentar ao interlocutor os meus argumentos. Se os argumentos dele forem mais fortes que os meus, eu tenho de saber aceitar. Sem isso a vida social seria impossível. Imaginemos se em toda partida de futebol o time derrotado resolvesse partir para a violência contra o vencedor. A política democrática é a arte da negociação. Jamais a violência. Principalmente na universidade, onde os alunos, por dever de ofício, estudam os pensadores clássicos da democracia. Em nenhum desses autores eles vão encontrar respaldo para o ato que fizeram contra a Reitoria. É uma situação em que eles romperam o pacto estabelecido pelas regras do processo democrático. Mesmo durante as greves os processos de negociação continuam. Por isso a invasão da Reitoria é um ato da maior gravidade, por ser absolutamente arbitrário. Por exemplo, nos países mais democráticos, existe uma coisa chamada auto-regulamentação da greve feita pelos próprios grevistas, a fim de não lesar direitos de outros cidadãos. Isto se chama levar a sério o respeito à cidadania e a seus direitos. Isto se chama responsabilidade na ação política, se você quiser, revela a existência de cultura democrática.

JU - A senhora acha que esse episódio enseja uma reflexão sobre o momento que a universidade está vivendo?

Walquiria - Acho que não podemos silenciar sobre esse episódio. Temos de denunciar, torná-lo um fato público que nos obrigue à reflexão. A universidade pública está sendo atacada por todos os lados. Pela falta de verba, pela mídia, por vários governos. Esse acontecimento agrava o quadro de sua crise aguda. Mostra que, além dos ataques externos, estão acontecendo entre nós coisas terríveis. Precisamos explicar com seriedade a natureza desta violência. Sobretudo essa que está aparecendo na universidade. Isto nos obriga a pensar seriamente sobre o fato de estarmos experimentando atos de barbárie no seu âmbito. Retorno incessantemente a questão que me parece central nisto tudo. Em nome de quem, por quem eles falam, quem são eles?

SALA DE IMPRENSA - © 1994-2003 Universidade Estadual de Campinas / Assessoria de Imprensa
E-mail: imprensa@unicamp.br - Cidade Universitária "Zeferino Vaz" Barão Geraldo - Campinas - SP