Jornal da Unicamp 182 -  29 de julho a 4 de agosto de 2002
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Livro resgata crônicas de Coelho Netto, escritor que usava artifícios literários em jornal governista para denunciar desmandos de Floriano Peixoto

MANUEL ALVES FILHO

O Centro de Pesquisa em História Social da Cultura (Cecult), do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, e a Editora Mercado de Letras acabam de lançar a primeira obra da coleção “Letras em Série”, projeto que resulta de minuciosas pesquisas junto à produção cronística na imprensa paulista e carioca ao longo dos séculos XIX e XX. Cada publicação focalizará um autor, apresentando várias crônicas, devidamente acompanhadas de anotações críticas e referências históricas. O escolhido para dar início à série foi Coelho Netto, escritor maranhense radicado no Rio de Janeiro, mas que teve passagem marcante por Campinas. No início do século passado, ele foi professor de literatura do Colégio Culto à Ciência e um dos fundadores do Centro de Ciências Letras e Artes (CCLA).

A organização, a introdução e as notas do livro que abre a coleção ficaram a cargo de Ana Carolina Feracin da Silva. Ela concentrou sua pesquisa numa série de crônicas publicada por Coelho Netto sob o título de Bilhetes Postais no jornal O Paiz, do Rio de Janeiro, entre os anos de 1892 e 1893, logo após a proclamação da República. De acordo com a pesquisadora, são 150 textos que retratam a cena social e política de um período bastante conturbado da vida brasileira, marcado por perseguição à imprensa, fechamento do Congresso e fortes contestações ao modelo republicano conduzido pelo presidente Floriano Peixoto. Todas as crônicas foram assinadas pelo autor com o pseudônimo “N”.

Ana Carolina explica que muitos amigos de Coelho Netto, como os escritores José do Patrocínio, Olavo Bilac e Pardal Mallet, foram presos ou desterrados por conta das críticas que faziam ao governo federal. Naquela época, alguns desses literatos, com exceção de José do Patrocínio, que escrevia no Cidade do Rio, jornal de sua propriedade, trabalhavam no jornal O Combate, publicação que fazia franca oposição a Floriano Peixoto. Coelho Netto, entretanto, escrevia para O Paiz, jornal que se revelou governista. A despeito disso, afirma ela, a série Bilhetes Postais constituiu-se numa espécie de trincheira de luta, por meio da qual o escritor maranhense denunciava os desmandos dos poderosos de então e falava sobre temas como o jogo do bicho, a carestia da carne e a substituição do bonde puxado por tração animal pelo movido à eletricidade.

Para conseguir sobreviver à mão forte da censura, esclarece Ana Carolina, Coelho Netto valeu-se de alguns artifícios. Ele mascarava as críticas usando metáforas e jogos de palavras. “Além disso, ele tratava de temas aparentemente díspares, para poder transmitir a mensagem desejada. Ou seja, começava uma crônica falando de moda, passando a imagem que se tratava de um tema leve para mulheres. Em determinada altura do texto, porém, dava um jeito de encaixar uma crítica política ou social”, diz. Conforme a pesquisadora, isso pode parecer um tanto estranho ao leitor atual, mas a intenção do autor era perfeitamente entendida por seus contemporâneos.

As notas de rodapé elaboradas por Ana Carolina têm exatamente a função de explicar ao público de hoje essas sutilezas. De acordo com ela, o tema mais recorrente da série Bilhetes Postais é a mulher, que era tratada por Coelho Netto sempre em tom licencioso. Ele também criava personagens, dos quais afirmava receber cartas. Esse recurso permitia que entrasse em inúmeros assuntos, que invariavelmente desembocavam em referências à inoperância da administração municipal, aos equívocos da política nacional e até mesmo ao sensacionalismo perpetrado pela imprensa. “Foi o modo que ele encontrou para intervir, à sua maneira, em situações tão tensas. É possível flagrar as contradições entre as manchetes de O Paiz com o conteúdo das crônicas de Coelho Netto. Enquanto o jornal defendia os interesses do governo, o cronista falava da iminência de o edifício social cair por terra por conta do desrespeito às leis e aos princípios democráticos”.

Apesar da importância de Coelho Netto, Ana Carolina reconhece que o escritor é praticamente desconhecido do público atual. Considerado o “príncipe dos prosadores brasileiros”, ele foi autor de mais de 100 volumes, entre romances, contos, livros de memória de crônicas. Ainda assim, ganhou ao longo do tempo a pecha de ser adepto de uma literatura estéril e ornamental, que não teria compromissos com questões sociais e políticas. A pesquisadora credita esse tipo de equívoco a um certo desconhecimento da obra de Coelho Netto e do movimento da crítica literária do início do século passado, que elegeu alguns cânones e desprezou outros literatos. “Os críticos talvez tenham feito esse tipo de análise com base numa parte da sua obra, quando ele já era acadêmico e evidentemente já não mantinha mais a mesma postura da juventude”, avalia.

O projeto “Letras em Série” nasceu em 1998. A partir de então, Ana Carolina debruçou-se sobre a obra de Coelho Netto. Ela utilizou como fontes de pesquisa, além das edições de O Paiz, livros históricos e de memória de vários autores. A edição é enriquecida com diversas imagens, algumas reproduzidas da Revista Ilustrada, publicação do final do século passado. O trabalho contou com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). O objetivo da coleção, segundo ela, é colocar em discussão obras de escritores preocupados com questões políticas e sociais e que deixaram, por meio dos seus textos, o testemunho de uma determinada época. Isso vale tanto para literatos “malditos”, como Coelho Netto, como para os cânones. O segundo volume da coleção deverá falar sobre a obra de Bastos Tigre e o terceiro, de Machado de Assis.

Uma crônica

À Cidadã...

A pruderie da intendência não consente que o transeunte faça concorrência ao corpo de bombeiros no serviço altamente higiênico da irrigação das ruas da cidade. As mangas podem molhar as calçadas, podem mesmo alagar a cidade num dilúvio profilático contra os micróbios que passam despercebidos às vassouras mecânicas da Gary, mas o burguês, o pacato, o respeitável e apertado burguês esse não tem direito de pôr as mangas de fora; a intendência não permite e alega umas tantas coisas cheias de moralidade e higiene que põem o pobre contribuinte em calças pardas. Clebs, o cachorrinho, pode alçar a perninha nos muros da intendência, Clebs não paga multa, Clebs tem imunidade; o burguês, esse não; se pára nas esquinas onde, graças à extinção dos conventos, não há mais frades de pedra para consolo dos espíritos religiosos e liquidação dos apertados, um fiscal pundonoroso, seguindo o rastilho úmido do “útil mesmo brincando”, cobra a regra fisiológica, às vezes mesmo antes da operação final, quero dizer, das últimas reticências...

A intendência, respeitando com severa austeridade os princípios pudicos da decência, anda de olho alerta e, mal pressente que um homem, impelido pela sua própria condição de eterno derivativo, vai se cosendo ao muro, prudentemente, cautelosamente, franzindo a cara num esforço, chega-se-lhe ao ouvido e, em vez de fazer com as armas o pxiu carinhoso e soberanamente diurético, pede-lhe dez mil, réis em nome dos princípios sisudos da municipalidade. O homem paga sem tugir, para a corta, porque o fiscal, no seu grande zelo de mantenedor da limpeza pública, não consente que o desgraçado leve a termo o seu desabafo cor de cerveja Spaten. É por isso que o povo anda cheio de necessidade. Mas, honrada e sóbria fiscalização urbana, ainda que mal pergunto – ode quereis que o munícipe, vassalo, contribuinte e alistado alije? Onde, em que ponto, em que número? Se estamos sem número, sem cômodo próprio para esses misteres, em que o fisco anda a imiscuir-se como o célebre bichinho dos rios da Amazônia.

Ó, preclaríssima intendência, respeito imensamente as vossas intenções de saneamento, estou de pleno acordo com as posturas municipais... mas parece-me que são demasiadamente fortes contra as posturas individuais; deixai cada um ponha onde bem lhe parecer... já que não há retiros suficientes para satisfação de quantos são violentamente atacados pela corrente interna para os quais, nos primeiros tempos, a prudência das mães inventou a represa das fraldas...

Ou cubículos ou uma postura municipal obrigando-nos a usa calças de pano esponja... porque, apesar da carestia dos gêneros, é muito 10, de cada vez que...

27 de julho de 1892