ANO XVII - 16 a 22 de dezembro de 2002 - Edição 202
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Livro de ex-aluno da Unicamp mostra que esporte
chegou antes de Charles Miller, tido como pioneiro pela historiografia

Padres introduziram
futebol no Brasil, revela historiador

MANUEL ALVES FILHO

O professor José Moraes dos Santos Neto, autor de Visão do jogo: revelações e histórias pitorescasO futebol, esporte mais popular do Brasil, é uma fonte inesgotável de polêmicas. Discussões sobre qual o clube mais antigo em atividade ou que equipe tem maior torcida no País são freqüentes nas rodas de torcedores. Embora estejam longe de ser superadas, essas divergências assumem uma importância menor diante de nova tese formulada pelo historiador José Moraes dos Santos Neto. Formado pela Unicamp e integrando atualmente o quadro de docentes do Colégio Pio XII, em Campinas, ele é o autor do livro Visão do Jogo - Primórdios do futebol no Brasil, que acaba de ser lançado pela editora Cosac & Naify. Em 118 páginas, recheadas de imagens históricas e dados inéditos, o escritor apresenta evidências que abalam um mito. Segundo Neto, como gosta de ser chamado, Charles Miller não seria o introdutor do futebol nestas plagas, como registra a história oficial. A modalidade teria chegado aos campos de terra batida tupiniquins por intermédio de jesuítas. Se a versão for verdadeira, terá sido um gol de placa dos padres do final do século 19.

As conclusões contidas na obra de Neto estão fundamentadas em vários anos de pesquisa em torno do futebol, em documentos obtidos nos acervos do Colégio São Luís, Mosteiro de Itaici e Arquivo do Estado de São Paulo e em entrevistas com descendentes diretos dos pioneiros do esporte no Brasil. Conforme o escritor, as informações coletadas por ele não deixam dúvidas: a modalidade já era praticada por aqui desde a primeira metade da década de 1880. Charles Miller, que nasceu em São Paulo e foi criado e educado na Inglaterra, só retornou ao País em 1894, quando trouxe na bagagem um livro de regras do association football, uma camisa do Banister School e outra do St. Mary, duas bolas, uma bomba para enchê-las e um par de chuteiras.

Ao resgatar os primórdios do futebol, Visão do jogo faz revelações no mínimo curiosas. Segundo o livro, o responsável indireto pela introdução do esporte que viria a se tornar o mais popular do País foi o jurista, jornalista, diplomata e político Rui Barbosa. Em 1882, o então deputado pelo Partido Liberal apresentou à Câmara do Império, a pedido de D. Pedro II, um parecer sobre a Reforma do Ensino Primário e das Instituições Complementares de Instrução Pública. O objetivo era erguer um sólido sistema educacional, capaz de reverter indicadores dramáticos, como o que apontava que apenas 16% da população brasileira era alfabetizada. "No capítulo referente à educação física nas escolas, Rui Barbosa defendeu a introdução de exercícios ao ar livre, racionalmente variados, de maneira que os músculos funcionassem harmoniosamente", explica Neto.

Preocupadas em se adaptar à nova realidade, as melhores instituições de ensino decidiram enviar comitivas a vários colégios europeus. "Lá, pela primeira vez, o futebol virou uma opção para o Brasil", conta o historiador. Em São Paulo, uma das escolas que se destacaram na introdução de novas práticas esportivas foi o Colégio São Luís de Itu, onde estudava parte dos filhos da elite paulista. De volta da excursão à França, Alemanha e Inglaterra, primeira pátria do futebol, os padres jesuítas do São Luís, que funciona atualmente na Avenida Paulista, na Capital, trouxeram algumas novidades. Entre elas estava o posteriormente chamado esporte bretão, modalidade que passou a integrar, entre 1880 e 1890, as práticas esportivas dos estudantes do colégio. Ou seja, um dos primeiros chutes numa bola de futebol no Brasil teria sido dado numa cidade localizada a menos de 70 quilômetros de Campinas, cidade natal de Neto, um apaixonado torcedor da Ponte Preta.

Na oportunidade, um dos integrantes da missão que percorreu a Europa, o padre José Mantero, que mais tarde se tornaria reitor do Colégio São Luís, havia trazido do estrangeiro duas bolas. Estas consistiam em câmaras de ar sob um envoltório de couro, chamado de capotão. "Porém, à medida que as câmaras importadas foram se desgastando, os jesuítas as substituíram, com resultados satisfatórios, por bexigas de boi", relata Neto em seu livro. Até 1887, conforme o escritor, padres e alunos jogavam juntos, mas não praticavam o chamado association football, que pressupõe a formação de dois times e a existência de um conjunto de regras. Em vez disso, eles promoviam um bate-bola na parede. "Isso fazia parte de uma estratégia gradual de apresentação do esporte aos alunos", esclarece o historiador.

Pouco tempo depois, o futebol começa a tomar a forma que conhecemos até hoje, com pouquíssimas alterações. Neto narra em seu livro: "Em seguida, os padres introduziram duas pequenas marcas em paredes opostas do pátio e dividiram a turma em dois times, camisas verdes de um lado e camisas vermelhas de outro. O jogo passou a ter um objetivo concreto, isto é, levar a bola até a parede do time adversário e lavrar um tento fazendo bater no espaço delimitado pelas marcas". As equipes formadas por 11 jogadores e as traves vieram na seqüência, coincidindo com o período em que a modalidade tornou-se mais organizada e freqüente. Ao deixarem o São Luís, já formados, os estudantes levaram o futebol para outras cidades e estados, fazendo com que ele se difundisse em todo o Brasil. Tal tarefa foi reforçada pela chegada dos imigrantes e pela expansão das ferrovias, uma vez que o esporte era praticado paralelamente tanto pela elite quanto pela classe operária.

Mas, afinal, Charles Miller não teve qualquer mérito na introdução e difusão do futebol no Brasil? Conforme o historiador Neto, o filho de imigrantes ingleses teve, sim, importância nesse aspecto. Foi ele quem levou o esporte para dentro dos clubes freqüentados pela elite paulistana, que mais tarde formariam uma liga, espécie de embrião do que é hoje a Federação Paulista de Futebol. A despeito da posição segregacionista dos "futebolistas aristocráticos", que não admitiam a participação dos times populares nos torneios, a modalidade ganhou força dentro dessas organizações. O escritor adverte, porém, que seu livro não pretende esgotar o assunto em torno da origem do futebol brasileiro. "Ele apenas coloca o tema em discussão. Não há verdade absoluta. Acredito que o assunto mereça mais pesquisas, para que possamos compreender melhor essa gênese", pondera.

Além de trazer novos dados sobre a origem do futebol brasileiro, Visão do jogo brinda o leitor com outras informações saborosas sobre o esporte. O autor revela, por exemplo, qual é a origem da expressão "futebol varzeano", explica o duelo primordial entre "futebol de dribles" e "futebol de passes" e reproduz com incrível precisão, baseado em notícias de jornais da época, os lances da primeira disputa internacional da Seleção Brasileira de Futebol, a Copa Roca. A partida, ocorrida na Argentina, diante do time da casa, em 27 de setembro de 1914, terminou em 1 a 0 para o Brasil, gol de Rubens Salles.

O detalhe curioso é que os argentinos chegaram a empatar com um gol de mão de Leonardi, num gesto que seria repetido por Diego Maradona, o maior jogador portenho de todos os tempos, na Copa de 1986. Numa atitude que provocaria espanto e até uma certa indignação em uma parte dos torcedores atuais, um dos jogadores da Argentina, Galup, dirigiu-se ao árbitro e admitiu que o tento fora marcado de forma irregular. Diante da confissão, o juiz voltou atrás e anulou o gol. A iniciativa do atleta argentino mereceu aplausos dos jogadores de ambas as seleções. Como se vê, o fair play de hoje não é igual ao de antigamente.