Jornal da Unicamp 185 - 12 a 18 de agosto de 2002
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Eliane: "O que fazer com o trabalhador desqualificado e desempregado?"O que há
entre o trabalhador
e o diploma

Premissa de escolaridade é retórica para culpar desempregado por sua exclusão do mercado, diz pesquisadora
 
 

LUIZ SUGIMOTO

A mudança de rumos da política econômica nos anos 90 sustenta-se no discurso da modernização produtiva, que para obter sucesso exigiria, além de tecnologias e técnicas organizacionais inovadoras, uma nova forma de uso do trabalho, com a valorização dos recursos humanos e a integração do trabalhador vestindo a camisa da empresa. Qualificação, então, passou a ser a palavra de ordem no mercado de trabalho. Hoje ela é colocada como tábua de salvação do assalariado que perdeu o amparo dos sindicatos ora enfraquecidos em função do desemprego, e como essencial ao currículo de quem ingressa na labuta para garantir seu futuro. 

"É justamente esta relação direta que eu questiono. Tento mostrar que o fato de estar qualificado não garante emprego", afirma Eliane Navarro Rosandiski, ao comentar sua tese de doutorado – Modernização Produtiva e a Estrutura do Emprego Formal nos Anos 90 – no Instituto de Economia da Unicamp. Eliane compilou e sistematizou informações das indústrias automotiva e têxtil, com o objetivo de conferir em campo as avaliações teóricas, muitas vezes superficiais, de que o processo de modernização estaria levando a melhores indicadores de estabilidade de emprego, escolaridade dos trabalhadores, remuneração e produtividade.

Os dados tabulados a partir da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS/Mtb) para os anos de 1989 e 1999 atestam que o ajuste do emprego foi essencialmente quantitativo e não qualitativo, e que a melhoria dos indicadores de escolaridade da mão-de-obra ainda empregada resulta fundamentalmente desse processo. No setor têxtil, que contrata muita mão-de-obra, a necessidade de modernização de equipamentos para concorrer com produtos importados provocou o corte de metade dos trabalhadores na década. "De fato, tem-se contratado pessoas com maior nível de escolaridade, mas para ocupar inclusive os cargos de baixa qualificação. Isto ocorre porque os quadros foram muito enxugados no bojo da reestruturação organizacional. Havendo apenas três vagas, pode-se selecionar um trabalhador mais escolarizado, independente de qual seja a qualificação mínima necessária para o desempenho da tarefa", pondera a professora.

Em seu estudo, Eliane segmentou as qualificações em quatro níveis de trabalhadores: periférico baixo, periférico médio, intermediário e superior. Na área têxtil, o trabalhador periférico baixo era contratado por 2,4 salários mínimos em 1989 e, em 99, por 2 salários; a escolaridade subiu de 6 para 8 anos e o funcionário permaneceu nas mesmas ocupações. "Ou seja, aumentou-se a escolaridade, mas paga-se menos", observa a pesquisadora. Em termos de composição da estrutura ocupacional, 70% dos empregos continuam sendo periféricos, mantendo-se os patamares de baixas qualificação e remuneração e alta rotatividade dos trabalhadores alocados nestes grupos.
 

Sem culpa – "Na verdade, está se vendendo ao trabalhador a idéia de que se ele estudar, se correr atrás, vai ter emprego, o que não é verdade. É um discurso falso, que culpa o coitado do trabalhador por estar desempregado. Não é ele quem decide se terá emprego; quem decide empregar não é nem o empresário, que está amarrado pelo cenário concorrencial", critica Eliane.

A pesquisadora acrescenta que, dentro da lógica de modernização, não se pode pegar um parque produtivo, jogá-lo no lixo e comprar um novo, com novas características e novas tecnologias. A modernização se dá em partes, adquirindo-se equipamentos mais eficientes por trechos da linha de montagem. Segundo ela, esta alteração das características produtivas ainda é muito pequena frente a tanta exigência por qualificação.

"O critério da qualificação serve para alguns postos, os mais nucleares, da gerência para cima. Para servir café, cuidar da limpeza e realizar outros trabalhos periféricos, a qualificação não faz tanta diferença. Em dez anos de modernização observou-se que não existe um determinismo tecnológico tão forte, capaz de alterar a composição da estrutura do emprego. Então de onde está vindo esse aumento da escolaridade? Vem muito mais de uma retórica do que de uma necessidade", conclui Eliane

Do topo à marginalização

Em sua tese de doutorado, Eliane Rosandiski ressalta que as empresas romperam com as antigas formas de controle do trabalho, em que o Estado e os sindicatos cumpriam papel decisivo. Diante do acirramento das condições de concorrência, as empresas buscaram uma maior autonomia para flexibilizar as relações de trabalho e adequá-las às flutuações na produção. O resultado foi uma "internalização" de decisões, tais como requisitos mínimos de qualificação para o trabalhador, formas de remuneração e jornadas, devendo-se destacar o ambiente propiciado pelo enfraquecimento do movimento sindical.

Segundo a pesquisadora, esta reestruturação não levou a um ambiente de trabalho mais qualificante, salvo exceções. Na indústria automotiva é possível afirmar que, em seu topo, surgiu um ambiente ocupacional compatível com a retórica da modernização – melhores indicadores de escolaridade, tempo de serviço, remuneração e produtividade. No entanto, esta cadeia apresenta uma especificidade: os trabalhadores desqualificados, demitidos das montadoras, contam com um setor bastante segmentado. "Eles podem ser realocados nas empresas de auto-peças de primeira e principalmente de segunda linha. A desqualificação é redistribuída ao longo da cadeia", diz Eliane.

Já na indústria têxtil, onde predomina a função de baixa qualificação, o resultado da modernização é trágico. "Quando se automatiza o processo produtivo, imediatamente se desqualifica o trabalhador e não há como recolocá-lo na própria cadeia, pois a função deixa de existir e ele é mesmo eliminado", atesta a pesquisadora. "Para contornar os efeitos negativos do desemprego tecnológico até existem programas de treinamento, mas sua ação é limitada, pois muitas vezes estão dirigidos para uma função que logo se esgota. O escoamento de mão-de-obra é muito maior que a capacidade de absorção da indústria, mesmo porque estamos vivendo uma recessão", acrescenta.

Diante desse quadro, a professora também critica a proposta de desregulamentação do trabalho, tão em voga. "Tirar a proteção trabalhista é condenar o empregado de nível periférico, que continua descartável, a uma situação de marginalização. E este é o grande problema do momento: o que fazer com o trabalhador desqualificado e desempregado, sem idade ou condições para se qualificar e que não encontra espaço na sociedade?", é a questão colocada por Eliane. Para ela, diante da crescente desregulamentação, mesmo os trabalhadores que ocupam postos superiores na estrutura ocupacional sentem-se ameaçados, pois apesar do discurso da qualificação, a manutenção do emprego passa a depender unicamente das condições de lucratividade da empresa.
  
SETOR TÊXTIL
Variação de Emprego e Distribuição por Escolaridade
Variação do Emprego 1989-1999
Indústria Transformação - 23,90%
Setor Têxtil - 51,51%
Faixas de Escolaridade 1989 1999
Analfabeto  1,8  0,9
1gr. Incompleto  72,5 48,2
1 gr. Completo  16,4 31,9
2 gr. Completo 6,9  16,1
Sup. Completo 2,0 2,8
Fonte: RAIS (Relação Anual de Informações Sociais) – Não inclui segmento de confecções e microempresas.
 
MONTADORAS
Variação de Emprego e Distribuição por Escolaridade
Variação do Emprego
1989-1999
Indústria Transformação -
 23,90%
Montadoras  -
37,21%
Faixas de Escolaridade
1989
1999
Analfabeto 0,3  0,0
1gr. Incompleto 61,9 21,7
1 gr. Completo 22,7 33,8
2 gr. Completo 11,4  34,0
Sup. Completo 3,7  10,4
Fonte: RAIS (Relação Anual de Informações Sociais)