Edição nº 613

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 10 de novembro de 2014 a 16 de novembro de 2014 – ANO 2014 – Nº 613

O republicanismo democrático de Condorcet


Chega em boa hora o livro de Condorcet Escritos político-constitucionais, organizado, traduzido e apresentado por Amaro de Oliveira Fleck e Cristina Foroni Consani, prefaciado por Newton Bignotto e publicado pela Editora da Unicamp. O texto nos revela um pensador da política, dono de grande vigor analítico, de força normativa e impressionante poder de antecipação de campos problemáticos e conceituais. Está dividido em cinco partes. Na primeira, em “Ideias sobre o despotismo (1789)”, Condorcet expõe tipologicamente sua teoria sobre suas formas, em destaque: o despotismo direto e o indireto e suas diferentes modalidades de atuação. Ambos os tipos portam graves e profundos perigos à liberdade, sendo o indireto o mais perigoso porque menos perceptível aos cidadãos. Um exemplo disso, em relação à representação, se refere ao fato de que o despotismo indireto existe mesmo “[...] quando, apesar da resolução da lei, a representação não é nem igual nem real, ou quando se está submetida a uma autoridade que não é estabelecida pela lei” (p. 30). O despotismo de tipo legislativo pode ocorrer quando a representação do povo cessa de ser real ou se torna demasiadamente desigual. Prevenir-se-á esse perigo vigiando a composição das leis que prescrevem a forma segundo a qual se devem eleger os representantes (p. 33). Crucial advertência diz respeito ao despotismo dos tribunais ou do despotismo judiciário: “Ele é mais inevitável ainda se esses tribunais têm alguma participação na potência legislativa, se eles formam um corpo entre eles, se seus membros são julgados por eles próprios” (p. 36). Na segunda parte, “Ao corpo eleitoral, contra a escravidão dos negros (1789)”, lembra que a escravidão atenta contra os direitos da natureza e que nenhum homem pode, por nenhuma escritura, tornar-se propriedade de outro homem. Com isso rompe com justificativas teóricas e morais antigas da escravidão, talvez até mesmo com as de J. Locke. Na terceira, escreve “Sobre a admissão do direito de cidadania às mulheres (1790)”. O escrito sem dúvida antecipa as reflexões de John Stuart Mill sobre a questão, em especial o trabalho Sujeição das mulheres, escrito em 1869.

Pode-se dizer que Condorcet, como todos os pensadores do século XVIII, defendeu intensamente a necessidade de normas, porque acreditava na sua indispensabilidade à racionalização da vida em sociedade. A liberdade deveria ser fundada nas normas: sem elas, sequer a liberdade seria possível; restaria apenas o seu contrário, o arbítrio de todos e a liberdade de ninguém. Neste ponto, vale a pena perceber sua concepção de lei e de reformas institucionais, ambas de grande originalidade, pois pensadas conforme a importância que se confere aos procedimentos legislativos. A preocupação com o processo legislativo e seus procedimentos recebe forte argumento em favor do debate e da participação ampla da cidadania. Evidentemente isso se articula com a preocupação com a boa e justa Constituição, que devia estar em relação direta com sua força normativa, cuja eficácia residiria em sua capacidade de modelar cidadãos inquietos, ativos, e demandantes por melhorias progressivas das instituições e do agir político. 

Finalmente, chega-se ao “Plano de Constituição (1793)”. Seu ponto central reside no desenho institucional elaborado por Condorcet. Aqui, claramente, promove a conciliação entre democracia representativa e democracia direta, isto é, estabelece canais formais para a deliberação política e para o controle dos representados sobre os representantes. Como se sabe, a representação foi e ainda é uma das grandes categorias da política. Condorcet compreendeu muito bem a questão e sua complexidade, por isso procurou estabelecer controles sobre sua qualidade e legitimidade democráticas. A peculiaridade de sua proposta se ancora sobre três bases: a multiplicação dos espaços deliberativos e decisórios, o estabelecimento de tempo político (ou intervalos) para o agir coletivo e o estabelecimento de poderes positivos e negativos que criam a possibilidade de reversibilidade das decisões tomadas, aproximando os cidadãos das atividades políticas (pp. 73-76). 

Por todas essas razões, vale lembrar que as reflexões de Condorcet interpelam fortemente nosso presente político. Têm muito a nos dizer sobre nossas crises de representação e de participação na vida pública. Não há como não invocar para elas a ideia benjaminiana do anjo da história, que, no seu quase voo através da ventania, mira o passado, mas bem que gostaria de se deter, despertar os mortos e recompor o que foi feito em pedaços.


Walquíria G. D. Leão Rego é professora titular do Departamento de Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp.

 







SERVIÇO

Título: Escritos político-constitucionais
Autor: Condorcet
Organização, tradução e apresentação: Amaro de Oliveira Fleck e Cristina Foroni Consani
Editora da Unicamp
Páginas: 208
Preço: R$ 38,00