Edição nº 596

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 12 de maio de 2014 a 18 de maio de 2014 – ANO 2014 – Nº 596

Arte em trânsito


A artista plástica Renata Lucas, que vem percorrendo o mundo com sua arte, revolve o solo em busca da história, do passado e do futuro e ao mesmo tempo leva o chão para pisar. Ela apropria-se do espaço onde se insere, subverte-o, devora-o, digere-o e transforma-o, reincorporando-o a si mesmo. E seu trabalho faz mais que isso: demonstra um potencial político através de uma intrincada e emaranhada relação com o espaço, que repercute e discute questões contemporâneas. É o que constata a pesquisadora Luciana Benetti Marques Valio em sua tese de doutorado, orientada pela professora Maria José de Azevedo Marcondes e defendida no Instituto de Artes (IA).

Luciana conta que o trabalho artístico de Renata Lucas insere-se na arte contemporânea da primeira década do século 21, uma vez que a prática da artista discute temas atuais como o transitório, o efêmero, a globalização, a instabilidade, o nomadismo, a identidade e a socialidade. São conceitos que não pertencem somente ao campo da arte, mas também ao da Filosofia, da Sociologia, da História e de outros.

A autora da tese analisou 29 obras da artista, produzidas entre 2001 e 2013, por encontrar nelas a possibilidade de discussão sobre a relação da intervenção artística com o espaço público.

A pesquisa teve como objetivo discutir e problematizar os trabalhos de Renata Lucas (que, como Luciana, se graduou no IA da Unicamp), de modo a compreender como é que eles estão tão afinados com o discurso da arte contemporânea e como ressoam potencial político.

Ao investigar essas obras, a doutoranda percebeu a evidente relação das práticas da artista com o espaço onde se inserem, pois ela sequer possui ateliê. Suas intervenções são feitas diretamente nos espaços urbanos e nas instituições onde são realizadas.

O trabalho artístico começa com o convite para a artista fazer uma proposta. A partir daí, ela estuda a planta do edifício; conversa com as pessoas na rua, na vizinhança; e investiga o entorno (a região), com o intuito de compreender o que esse local tem a dizer.

A partir dessa percepção, em conjunto com a sua sensibilidade, a artista cria uma arte para aquele lugar. “Sua tarefa então é permeada de muita negociação, do que pode e do que não pode”, verifica.

Na 53ª Bienal de Veneza, em 2009, por exemplo, Renata Lucas foi convidada pelo curador do evento, Daniel Birnbaum, para mostrar o que sabia fazer. A obra foi construída na entrada do principal pavilhão, o Arsenale. Consiste de uma via/pista de asfalto sobre o Giardini Pubblici, como uma marca de futuro. “Vale lembrar que Veneza é uma cidade onde suas vias são canais e onde não é permitido asfalto. É uma cidade protegida pela ONU como patrimônio histórico da humanidade”, conta Luciana.

Então essa intervenção cria um anacronismo: por que colocar asfalto numa cidade totalmente histórica, que nem carros tem? O mais incrível, destaca ela, é que as pessoas pisam o asfalto com tamanho conforto que nem o percebem, como se a obra sempre estivesse ali.

Luciana diz que, nesse caso, “o pisar o asfalto” constitui-se uma sensação incorporada, impregnada, no corpo, na qual as pessoas precisam pensar para reconhecer que o asfalto naquele lugar seria impossível.

Mas a imagem da pista de asfalto de repente leva a um questionamento: “Aqui era de pedrisco?” A artista então deixa parte deste pedrisco aparente sobre o asfalto, “criando uma imagem como se ele estivesse subindo, como se o futuro entrasse em Veneza”, descreve.

Isso tudo é fruto de uma série de projetos que a artista apresentou à curadoria do evento. “É uma mala de projetos. A artista fez muitas propostas que não puderam ser executadas: ‘não pode fechar um canal, não dá para abrir uma piscina no canal, não dá para mexer na fachada do prédio’”, informa.

Trata-se de um embate técnico: como é que faz, como coloca, pode ou não pode mudar? O patrimônio não autoriza. Esse passo a passo integrou a intervenção que Renata Lucas batizou como “Venice suitcase”.

Para fazer o trabalho, Renata Lucas foi inclusive viver temporariamente em Veneza. Procurou conhecer a cidade e entender sua dinâmica. A própria artista percebeu a dificuldade de ser um patrimônio histórico. Viu o quanto isso também pode ter um peso negativo e sofrer com as consequências de ser uma cidade turística.

É a artista provocando novamente outras reflexões: que cidade é essa? o que se pretende com essa bienal? Isso porque Veneza tem a bienal de arte, de arquitetura, de literatura, de música. Não é somente uma bienal de arte, mas um ambiente cultural que se constitui, tem repercussão e, portanto, é um trabalho muito perspicaz, qualifica Luciana.

 

Documenta

Outro trabalho de Renata Lucas, avaliado na tese da pesquisadora a partir de seu potencial político, foi apresentado na Documenta (13), em 2012, na cidade de Kassel, Alemanha, um dos mais importantes acontecimentos de arte contemporânea do mundo.

Por se tratar de um evento que tem uma periodicidade quinquenal, a artista teve mais tempo para vivenciar melhor Kassel, cuja história é marcada pelo bombardeamento que destruiu completamente a cidade durante a Segunda Guerra Mundial, por ser o centro da indústria armamentista do Terceiro Reich, na época de Hitler.

A proposta de Carolyn Christov-Bakargiev, curadora da Documenta (13), foi abordar os traumas de guerra, incluindo os mais recentes. Por conta disso, o evento estendeu-se a cidades como Cairo (Egito), Cabul (Afeganistão) e Banff (Canadá). Deste modo, as questões sobre a relação Ocidente-Oriente permearam a mostra: como o fato do trauma de Kassel ser decorrente da indústria armamentista do nazismo e, atualmente, a cidade sustentar-se do comércio de armas para as guerras no Oriente.

“A Documenta trouxe isso ao centro do debate. E justamente o trabalho de Renata Lucas está ‘discutindo’ com essa cidade que foi ‘achatada’”, comenta. Trata-se da obra “Ontem, areias movediças”, título homônimo do conto surrealista de Alberto Giacometti.

A artista usou quatro subsolos da cidade para fazer sua arte. Foram eles o porão do Museu Fridericianum, o porão da casa dos Irmãos Grimm, o subsolo da loja Kaufhof e o segundo subsolo do estacionamento, sob a Friedrichsplatz. Nos três primeiros subsolos, a artista construiu – com chapas de madeira compensada e concreto – as partes da base de uma hipotética pirâmide.

O evento da Documenta acontece na área central da cidade, sendo o Museu Fridericianum a edificação principal da mostra, que se espalha em outras áreas da cidade, como outros museus, uma estação de trem e um grande parque.

O que Renata Lucas fez? Pôs uma parte do que seria um vértice de uma pirâmide no porão desse Museu, estabelecendo a primeira discussão na direção do que é a Documenta. No porão da casa onde viveram os Irmãos Grimm [e moradia temporária da curadora da Documenta (13)], a artista construiu o que corresponderia a uma lateral da base de pirâmide. No subsolo da loja de departamentos Kaufhof, foi construído outro vértice da base da pirâmide.

Assim, “é incompleta a hipotética pirâmide, sendo marcada pela sua ‘existência fictícia’ somente nos pontos principais da cidade, fazendo referência ao evento (no Museu Fridericianum); à história cultural da cidade e da Alemanha (na casa que pertenceu aos Irmãos Grimm); e ao comércio (na loja de departamentos Kaufhof)”.

Renata Lucas oferece pontos para uma ligação por meio de uma conexão mental. “Não se encontra uma pirâmide e sim fragmentos para completar o todo”, salienta a doutoranda.

A propósito, ela recorda que o subsolo tem uma carga muito forte durante a guerra. É o lugar onde as pessoas são enterradas e também é o lugar aonde se escondem. Para o místico, uma pirâmide – maia ou egípcia – condensa a vida e a morte.

Além dessas construções, no segundo subsolo do estacionamento, sob a Friedrichsplatz, foi inserido um painel com seis monitores de câmera de vigilância. Apenas um apresentava imagens simultâneas do local. Outros exibiam filmes que a artista produziu.

Esses filmes mostravam lugares da área central de Kassel, sendo invadidos por uma tempestade de areia, varrendo a cidade, tudo muito devagar. O vento depositava areia nas vitrines das lojas, nas calçadas, nos prédios, na praça. Também podiam ser captados por equipamentos móveis ou visualizados nos televisores expostos nas vitrines das lojas.

A areia ia lentamente invadindo tudo de forma aniquiladora. É uma sensação muito desoladora, que pode levar às pessoas a se perguntarem: isso faz parte da Documenta (13)?, a artista refere-se a quê?, que trauma é esse?, quem são essas pessoas? “Estão falando do Afeganistão ou do povo alemão? Afinal, aquela cidade foi destruída porque produzia armas, mas hoje em dia se sustenta com o comércio de armas?”, pergunta a doutoranda. 

A artista parte do pressuposto de que não tem que dar nada pronto, de que o público é inteligente e de que ele buscará montar as peças do “quebra-cabeça”. Somente está exibindo as questões de outra forma. Esse potencial político não declarado do trabalho, nota-se, foi certamente objeto desta pesquisa, relata Luciana.

Ela descreve que o potencial político de Renata Lucas salta dos seus trabalhos. A artista já participou da Bienal de São Paulo de 2006, da Bienal de Sidney de 2008, da Bienal de Veneza de 2009, da Bienal de Istambul de 2011 e da Documenta de Kassel de 2012, entre outros projetos em galerias e em residência artística no exterior e no Brasil.

Sua carreira é marcada por prêmios: Ernst Schering Foundation Art Award (Berlim, Alemanha), Absolut Art Bureau (Estocolmo, Suécia), Wattis Institute for Contemporary Arts (São Francisco, USA), Dena Foundation Art Award (Paris, França), Prêmio Pipa e Marco Antonio Vilaça.

 

Publicação

Tese: “Renata Lucas e os espaços públicos: intrincamento e fissura”
Autora: Luciana Benetti Marques Valio
Orientadora: Maria José de Azevedo Marcondes
Unidade: Instituto de Artes (IA)
Financiamento: Capes