Edição nº 538

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 03 de setembro de 2012 a 16 de setembro de 2012 – ANO 2012 – Nº 538

‘Mundo real’,
público imaginário

Distribuição precária mantém
espectador longe dos documentários,
apesar do boom do gênero

 

O grande público espectador ainda é uma exceção para os documentários nacionais exibidos no circuito comercial de cinema, apesar do boom na produção, especialmente a partir da última década. Dados da Agência Nacional de Cinema (Ancine) e do portal Filme B, especializado no mercado cinematográfico brasileiro, indicam que 181 documentários foram lançados entre 2000 e 2009. Destes, quase 90% não conseguiram atingir público superior a 30 mil espectadores.

O gargalo está relacionado, sobretudo, à distribuição dos documentários brasileiros, aponta o docente da Unicamp Marcius Freire, referência nacional em pesquisas sobre o gênero. “O documentário permanece pouco tempo na sala de cinema, assim como os filmes nacionais de uma maneira geral. Eles ficam em cartaz, no máximo, uma semana, e naquela salinha menor. Na melhor das hipóteses, passam a ser exibidos em horários inviáveis para um público mais amplo. Há no Brasil uma grande dificuldade, o nó da questão, que é o problema da distribuição. Os filmes são produzidos, mas não são mostrados. A distribuição está nas mãos das grandes corporações, as majors norte-americanas. E some-se a isso um desinteresse geral do público brasileiro pelo filme nacional”, sustenta.

Freire é docente do Departamento de Cinema do Instituto de Artes (IA) e orienta pesquisas relevantes nesta área. Ele cita a dissertação de Tereza Noll Trindade, que investigou a produção e exibição de documentários no circuito comercial para o seu mestrado. O estudo foi defendido no final do ano passado junto ao Programa de Pós-Graduação em Multimeios.
Conclusão pertinente do trabalho de Tereza Trindade é a que evidencia um círculo vicioso no meio cinematográfico nacional, gerado por esta contradição entre o boom e o baixo público espectador. “Um filme em cartaz, que não atinja um público mínimo, resulta em prejuízo para o Estado que o financiou. Trata-se de um produto cultural que não atinge a sociedade. É prejuízo para o exibidor, que não sustenta seu negócio, e diminui sua margem em reinvestimento em novas salas. Ademais, prejudica o realizador, que será provavelmente alvo de críticas pelo pouco alcance de sua obra. Em suma, afeta o próprio público que não vê o filme porque ele permanece pouco tempo em cartaz”, aponta a pesquisadora, em seu estudo.

Mas se há um público espectador reduzido, o quê tem alimentado, portanto, o crescimento substancial do gênero no país? Marcius Freire lança mais dados que, segundo ele, “desmistificam” o boom dos documentários brasileiros. Segundo o docente, de todas as produtoras que se aventuraram na realização de documentários no país na década de 2000, cerca de 80% o fizeram apenas uma única vez. Há, portanto, um grande número de diretores que produziu apenas um filme. Conforme Freire, foram 162 realizadores para os 181 documentários lançados no período.

“São esses dados que, de certa forma, desmistificam este boom do documentário. E por que tantos cineastas estão fazendo documentário? Para participar de editais. De acordo com as regras atuais, ter realizado um filme, um longa-metragem, coloca o candidato em condições muito mais favoráveis no processo seletivo. E o documentário é o gênero mais barato. Com uma câmera acessível e um computador pessoal, consegue-se produzir e editar um filme. Então, os documentários acabam sendo uma porta de entrada para o mundo audiovisual”, expõe. 

Embora a qualidade não seja preponderante para o baixo número de espectadores, Marcius Freire não deixa de criticá-la. “Já participei como jurado de alguns festivais e posso dizer que a qualidade não é das melhores. Percebe-se que não há, muitas vezes, o conhecimento necessário para se trabalhar com esta matéria-prima, que é o ‘real’”, reconhece.

Por outro lado, conforme o docente da Unicamp, os documentários com temáticas culturais, esportivas e sobre personalidades, têm atingido públicos maiores. Ele menciona o filme Vinicius, de Miguel Faria Jr, que, até o momento, é o documentário mais visto no país, com mais de 270 mil espectadores. “O grande campeão de bilheteria é Vinicius, sobre a vida e a obra do poeta e músico Vinicius de Moraes. O documentário sobre Wilson Simonal contou com um bom público também. Mais recentemente teve o do Nelson Pereira dos Santos e da Dora Jobim sobre Tom Jobim, A música segundo Tom Jobim… É um filme genial porque não tem narração nem entrevista – elementos quase obrigatórios no gênero. É a música de Jobim o tempo todo, um verdadeiro deleite”, sugere.

Otimismo

Apesar de reduzido, o público dos documentários tende a se ampliar, confia Marcius Freire. No âmbito do cinema alternativo, o festival brasileiro É Tudo Verdade tem importante função na formação e expansão dos espectadores de documentários, exemplifica. Já em sua 17ª edição, a mostra, criada pelo crítico e curador Amir Labaki, exibe documentários nacionais e internacionais. “O É tudo verdade tem o papel significativo no sentido de despertar o público para o que chamamos de educação do olhar”, conceitua.

No contexto mais amplo, outro fator que deve estimular o aumento do público espectador, conforme Freire, é o esgotamento da ficção hollywoodiana e o interesse cada vez maior pelo “outro”. “Em razão de o mundo ter se tornado essa aldeia global tão pequena, há um interesse pelo ‘outro’, sobretudo, por este ‘outro’ culturalmente tão diferente de nós. E os documentários têm essa função de trazer o ‘outro’ para perto. Além disso, a ficção hollywoodiana tem se esgotado, tanto que a moda é a inspiração em videogames e a fusão de produtos que são veiculados em outras plataformas, como a internet”.

Inovação

À procura de novas alternativas desde as origens do gênero, os documentaristas têm inovado no modo com que a imagem cinematográfica expõe o “real”. “O documentário já não busca retratar, simplesmente, uma ‘realidade’ que está dada no mundo. Ele vai além. E isso acontece desde o Cinema verdade”, situa o pesquisador da Unicamp.

O movimento referido por Freire surgiu no final dos anos 1950 e empenhou-se em captar a “realidade”, sem fins didáticos ou históricos, mas nela interferindo de forma explícita. O cineasta e antropólogo francês Jean Rouch (1917-2004), que orientou o docente da Unicamp em seu doutorado, é reconhecido como o precursor do Cinema verdade.

“Hoje em dia, aqui no Brasil, documentaristas, como o Cao Guimarães, inovam muito bem. Seus documentários A Alma do Osso [2004], Da Janela do Meu Quarto [2004],  O Fim do Sem-Fim [2001] e Andarilho [2007] são filmes primorosos, que embaralham as noções de ficção e documentário. E Guimarães é um artista plástico de formação. Outro filme nessa linha é o Serras da Desordem, que mistura ficção, realidade e cenas históricas. O seu autor, Andrea Tonacci, coloca personagens reais, como o índio Carapiru,  para reviver o seu próprio passado. É um filme primoroso”, indica.

O estudioso da Unicamp avalia que o documentário está se transformando permanentemente ao longo do tempo, influenciado pelas recentes tecnologias e novas formas de expressão. “No começo dos anos 1950, Jean Rouch introduziu muitas inovações no cinema”, retoma Freire. “Ele fez Moi un noir [Eu, um Negro], que veio influenciar a Nouvelle Vague. Jean-Luc Godard disse, explicitamente, que foi inspirado por Jean Rouch. O filme Acossado, de Godard, poderia ser chamado de ‘Eu, um branco’, segundo alguns críticos e o próprio realizador, porque ele é muito calcado no Eu, um negro”, compara.

 

Publicação

Dissertação: “O documentário chegou à sala de cinema. E agora? O lugar do documentário no mercado audiovisual brasileiro na perspectiva de seus agentes: da produção à exibição (2000-2009)”
Autora: Tereza Noll Trindade
Orientador: Marcius Freire
Unidade: Instituto de Artes (IA)